quinta-feira, 28 de abril de 2011

Cifras Negras

Carlos Tu, Dentinho, Carlão, Teixeira, Téia, Batata, Nanico, Ceará, Beiço, Ratão, André, Bruninho, Gordinho, Big Lu, Joá, Mikinha, Tuta, Carlinhos Body Gloves, Ricardinho Berimbau, Diguinho, Russo, Pelézinho, Japônes. São vinte e três os mortos que consigo me lembrar agora e que em algum momento conviveram comigo - nas ruas, na escola, no futebol, nas drogas, nas baladas, nas bocas. Os últimos quatro morreram ano passado e retrasado (2010/2009), o primeiro em 92. Alguns foram baleados e sobreviveram - Piri, Piter, Luizinho, Marco Loco, Mineiro. Outros incontáveis foram presos ou ainda estão. Relevante nessa historia, a despeito dos cadáveres, é que ela seja para a sociedade e, sobretudo, o Estado irrelevante! Do ponto de vista objetivo, rigorosamente nada aconteceu - ninguém foi punido ou responsabilizado por elas. Os últimos quatro, por exemplo, simplesmente desapareceram! Todos sabem que foram executados e quem matou, até aonde foram "desovados", menos o Estado. Quem quiser acreditar nisso acredite, até porque as estatísticas e os discursos dos especialistas são mais palatáveis e confortáveis do que a realidade...

O finado Tu morreu de gaiato, aos 16 anos, andando com os caras errados foi baleado algumas vezes na casa de um deles. Dentinho foi baleado pela policia no final dos anos 80 ou em 1990. Teixeira consta que foi morto em tocaia por comparsas do crime, dizem até que por alguns parentes. Se achava muito bandidão, roubava até na área, inclusive tentou tomar um boné do meu primo e tomou um "atropelo" de nós – meu e do meu primo. Téia roubava na quebrada e por isso subiram ele – foi esfaqueado dentro de um barraco na favela. Batata, Nanico, Carlão, Mikinha, Berimbau, Ceará e Body Gloves tinham tretas com a polícia e foram executados com requintes de crueldade por eles. Ceará, Body Gloves e Batata, inclusive, tinham dezenas de homicídios - alguns policiais civis e militares entre eles. O Ceará participou em 91 de um roubo – divulgado pela mídia e pela policia como tentativa de sequestro - de um dos filhos do Collor - sendo o responsável pela morte de um dos seus seguranças, um ex-delegado da PF. Quando “atropelei” o Teixeira com o meu primo foi ele quem "passou um pano" pra mim nessa treta. 

O Body Gloves ficou famoso, saía em jornais, roubava bancos e carros fortes, consta que era ligado ao crime organizado, cresceu demais - muito dinheiro, muitas tretas, muitos B.Os, muitos inimigos. O Beiço "subiu" em um assalto de moto na Freguesia do Ó - estava com um simulacro de 380 que era do Alex e eu emprestei pro Fabio, que emprestou pra ele, sendo baleado pelas costas pelo dono da moto quando dava partida nela. Ratão, Russo, Diguinho, Pelézinho e o Japônes foram tretas do tráfico – furto de drogas e um tentando tomar a "biqueira" do outro. 

O André “tretou” com os caras errados. Era sobrinho de um bandido antigo e famoso no bairro – um cara ligado ao trafico, jogo, assalto a bancos. Por isso se achava “bandidão” e intocável. Consta que discutiu com uns moleques – que com certeza ele julgava que não fossem mais do que isso mesmo – e os ameaçou devido à reclamação da sua tia que era proprietária de um pequeno comercio em Perus. No mesmo dia eles voltaram e o quebraram na bala na frente da loja e da sua tia. Os outros eu não sei ao certo, só sei que conhecia e soube algum tempo depois que foram mortos, em versões contraditórias e fontes duvidosas. Têm pelo menos outros quatro que eu sei que morreram também e não me lembro sequer o nome, embora tenham convivido comigo - lembro só do apelido de um, Nado. Há vários também que ninguém sabe o paradeiro, como o Nêne, o Valva, o Curumim, o Kiko, o Doda. 

Essa é uma parte da minha história, da minha vida, não toda a minha historia e vida. Era pra essa realidade que eu voltava quando saia da Sociologia e do largo São Francisco, após ouvir gente presunçosa falando com empáfia sobre aquilo que eles pensam conhecer porque leem livros ou planilhas. Depois de sair da Secretaria de Segurança, do núcleo de pesquisa da PUC, da Funap. Gente que frequenta os altos círculos acadêmicos ou políticos, diversos oportunistas que ignoram a realidade embora vivam em função dela. "Sou da Paz" só para o "Criança Esperança" - peças publicitárias. A paz na periferia encontra-se no cemitério. Por isso repudio a burguesia presunçosa e outros oportunistas da classe media que sobrevivem, ganham dinheiro com isso e desprezam ou se compadecem dessa realidade! Porque essas historias nada dizem para quem não vive ou viveu essa realidade – e nem viverá -, na verdade, atrapalham as suas mirabolantes teorias sobre "a realidade" e furam as suas infalíveis estatísticas. Esses são considerados "Cifras Negras" - um dado estimado e não verificável estatisticamente é conhecido como Cifra Negra. No país do racismo institucionalizado até a estatística furada só podia ser negra, como as vitimas de ontem e hoje! As teorias e estatísticas é que são mais palatáveis e ajudam a movimentar recursos. As mortes servem para manter esse estado de coisas - staus quo. Porem aqui ninguém vira estatística e nem é esquecido.


3 comentários:

  1. Certos posts (a maior parte) eu nao consigo nem comentar, acrescentar o que? Só fico de cara, lendo e relendo...outro dia eu disse que as autoridades ficam como urubus a espera de que os moribundos acabem de morrer...que percebo nas entrelinhas dos discursos que eles tem o pessoal que ja esta nas bocas e nas cracolandias como perdidos... os colocam nas estatisticas dos que morrerao em breve e pronto, ta resolvido. Outro dia apareceu o Governador de SP dizendo que tem que ter porta de entrada e porta de saida para o pessoal que for sair da rua para se tratar. Na boca dele isso me pareceu "nao podemos tirar eles da rua enquanto nao tivermos certo o que faremos com eles depois, eu nao vou levar ninguem pra minha casa...". Ele parecia pensar..."caramba...porque diabos alguem quer recuperar esses moribundos? Vamos esperar morrer ou mandar matar"

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  2. Não é difícil morrer nesta vida: / Viver é muito mais difícil.
    Vladimir Maiakóvski

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  3. Brilhar para sempre,
    brilhar como um farol,
    brilhar com brilho eterno,
    gente é para brilhar,
    que tudo mais vá para o inferno,
    este é o meu slogan
    e o do sol.
    Vladimir Maiakóvski

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