sexta-feira, 21 de março de 2014

Braços abertos e Recomeços: trabalho, autoritarismo e profilaxia social.

Esse ano foi lançado o Programa "Braços Abertos" da Prefeitura de São Paulo. Trata-se de iniciativa voltada à recuperação dos dependentes químicos que sobrevivem na Cracolandia e entorno. Pode-se dizer que se trata de um complemento ao federal "Crack é possível vencer" lançado em 2012. Essa semana o governo do Estado de São Paulo anunciou o Programa "Recomeço", voltado preferencialmente aos dependentes químicos atendidos pelo Cratod. Se trata de uma iniciativa que pretende disponibilizar oportunidades nas Frentes de Trabalho. Algumas coisas são dignas de nota nessas iniciativas, porque celebrá-las o governo, a imprensa chapa branca e a sociedade carente, alienada ou conivente se encarregam disso.

Não constitui novidade, por exemplo, constatar que os "pacotes de bondades" governamentais sejam oferecidos em anos eleitorais. Além disso, relevante é o fato de que venham sempre acompanhados de enorme aparato midiático - campanhas publicitárias, propaganda, eventos, cerimoniais. Desde a época do DIP, desconfio que muitas políticas publicas ainda sejam gestadas nas Secretarias de Segurança e nos departamentos de marketing das Secretarias de Comunicação governamentais. Passando das semelhanças, são as diferenças pontuais que definem a sua gênese. 

O primeiro deles - o federal - resulta da articulação entre a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Ministério da Justiça e da Saúde. O municipal paulistano tem a frente à recém criada Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, articulando Assistência Social, Saúde e Segurança Urbana.  Por sua vez, a estratégia do Governo do Estado resulta de parceria entre a Secretaria de Justiça e Cidadania e a do Emprego e Relações de Trabalho.  Pode-se perceber, uma nítida tendência a vincular todas essas iniciativas a valores da ordem dos Direitos Humanos, Justiça e Cidadania, a despeito dos interesses imobiliários na região, do aparato repressor, do controle social clínico-profilático, da exploração da mão-de-obra e do assistencialismo paternalista perpassando e orientando todo o processo.

Com efeito, o caráter profilático não constitui novidade, a população pobre carioca conhece-o desde o inicio do século passado tanto quanto a santista ou a paulistana - que habitavam a região portuária e a várzea do centro da capital -, empurradas para as periferias e morros das cidades. Trata-se das exigências de uma nova ordenação do espaço publico surgida em fins do século XIX e inicio do XX em decorrência da urbanização e industrialização. Razões econômicas, na medida em que a cidade se torna um lugar de produção e não somente de comércio. Do ponto de vista político, o crescimento das cidades e o surgimento do proletariado implica em tensões e conflitos com a burguesia, colocando a necessidade de organizar e controlar o meio urbano. O controle social se impõem ante a necessidade de se organizar o corpo urbano, estabelecer a cidade como unidade homogênea e coerente - jurisdição, administração - de modo a otimizar a produção da população e o controle de fluxos comerciais e monetários pelo Estado, subordinados a um poder único e regulamentado. Assim o Estado passa a controlar e mensurar a população por meio de estatísticas de natalidade, mortalidade, quantidade de população ativa; registrando, monitorando e inspecionando tanto quanto possível a sociedade. Trata-se de um poder político capaz de esquadrinhar a população urbana.

De fato, conforme Foucault, o “controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo.” O surgimento do Estado moderno com a sua burocracia, aparelhos, funcionários, saberes, controles e normas homogêneos e permanentes cumpre a estabilidade econômica de acordo com os interesses da burguesia liberal. No século XIX, conforme as exigências econômicas – produção – e políticas – controle – o medico e a medicina adquirem autoridade e poder policial na sociedade. A medicina social consiste em determinar as condições de salubridade e em estabelecer as políticas sanitárias na cidade de modo a manter a estabilidade necessária a ordem e a produção social.

Poder disciplinador capitalista.

Mens sana, corpore sano. (Juvenal poeta Romano, 55-127)

A base material do poder disciplinador capitalista encontra-se na organização do modo de produção. O ideal apoia-se na moral burguesa. Assim, ficam patentes os valores sob os quais estavam se assentando a nova sociedade surgida entre os séculos XVIII e XIX. "Esta é uma sociedade que se institui sobre o pressuposto da positividade do trabalho." Afinal, são John Locke e Adam Smith que desfazem a imagem negativa do "trabalho como patrimônio da pobreza, como fardo exclusivo dos que não possuem propriedade”, definindo-o como a origem de toda a “atividade criadora e da riqueza."

As grandes cidades europeias surgem no contexto da Revolução Industrial. Em 1851 Paris possui 1.226.980 de habitantes e Londres atinge um milhão antes, na última década do século XVIII. A explosão demográfica, o fenômeno das multidões, a urbanização precária, o crescimento vertiginoso e desordenado das cidades, as fábricas, o proletariado explorado e a sua condição de miséria são as marcas que as caracterizam no século XIX – qualquer semelhança com as grandes capitais brasileiras de hoje não é mera coincidência!

O postulado liberal da positividade do trabalho sustenta que sujeitos “que estão fora da sociedade, pessoas que não pautam suas existências pelos valores constitutivos da vida social – o trabalho, a propriedade e a razão -, tem como único meio de sobrevivência atacar essa organização exterior a elas." Assim, a questão do trabalho se apresenta sob vários aspectos para a burguesia: exigências de produção, urbanização, as multidões (mob), o proletariado, a miséria e as péssimas condições de vida e problemas sanitários decorrentes disso tudo. Nessa perspectiva, as contradições intrínsecas ao capitalismo colocam em oposição à burguesia e o proletariado e, em xeque os seus valores e ideais, acirrando a luta de classes. Desse modo, constata-se que o trabalho e a miséria decorrente da falta dele percorrem toda a sociedade, abalando os seus alicerces, apontando novas estratégias de resistência e organização as classes expropriadas.

Nas potencias capitalistas, caracterizadas pelo protestantismo de caráter individualista e puritano, “a pobreza era uma demonstração de deficiência moral, os pobres mereciam ajuda, mas essa era dada de uma posição moral superior” - qualquer semelhança com a visão de algumas ONG's no Brasil atualmente não é mera coincidência. Nessa perspectiva, as soluções previstas a época - caridade, trabalhos forçados, autoajuda, políticas sanitárias - buscam "limpar" a cidade da pobreza e da miséria. "A ideia da necessidade impositiva do trabalho e de dispositivos penais para os que não se submetessem a ele percorre a sociedade de ponta a ponta. A Nova Lei dos Pobres de 1834 mantém o princípio de auxílio aos sem trabalho, mas modifica drasticamente as condições em que é oferecido. Todos os requerentes do auxílio público deveriam entrar nas Casas de Trabalho (Workhouses) – a disciplina e a intensidade do trabalho lá dentro, deveriam ser sensivelmente mais rigorosas do que nas fábricas, de forma a atuarem como estimulo a busca de emprego. Trata-se, portanto, de uma instituição destinada a introduzir (ou reintroduzir) seres não moralizados à sociedade do trabalho."

Em 1840 esta lei vigora em toda a Inglaterra e essas Casas de Trabalho ficariam conhecidas entre os pobres como a “Bastilha” inglesa. "Seus altos muros e a disciplina carcerária, que previa a separação dos membros da família, trabalho pesado para os homens, refeições magras e em silêncio, a proibição de fumar, as visitas raras sob observação e pouquíssimo conforto, contribuíram para formar essa imagem." Quase duzentos anos depois, as políticas de combate ao Crack, sobretudo, nos grandes centros urbanos dissimulam as mesmas características – o postulado falacioso da “positividade” do trabalho, “humanização” pelo trabalho, laborterapia, a internação compulsória, a criminalização e repressão da pobreza, miséria, a medicalização da sociedade, controle social, políticas sanitárias e profiláticas desumanizadoras, autoritárias e de exclusão.

Senão como é possível a exploração do trabalho sob as condições mais precárias – subemprego – “humanizar”? Adaptação e ajustamento a sociedade burguesa é o principio e a medida civilizatória? O trabalho compulsório, repetitivo, opressivo, fatigante, degradante é o que torna o indivíduo sadio, equilibrado, realizado como ser humano, pessoa, cidadão? O caráter altivo da caridade e compaixão, essencialmente assimétrico, injusto e opressor que reduz a questão social ao indivíduo e a política a moral é que o farão? O ímpeto profilático-sanitário e controlador da medicina social – de caráter cartesiano - que antes desumaniza e pasteuriza o tratamento é que poderá ressocializar e humanizar o sujeito - ou objeto? Despido arbitrariamente e por principio da vontade e juízo, sanidade e vigor, técnica e competência, direitos e cidadania, como se espera que o Estado e a sociedade que sistematicamente os ignoram possam ser, afinal, os seus redentores? Ou ainda é “a questão social um caso de polícia” na democracia legalista-autoritária brasileira do século XXI – política de encarceramento e/ou extermínio? Que sabem os médicos, juristas, advogados, psicólogos, políticos, religiosos, entre outros técnicos e especialistas sobre as razões que levam uma pessoa ao vício e as ruas? Que sabem sobre a indiferença, a invisibilidade social, a dor, o desprezo, o medo, a tristeza, a raiva, o abandono, a fome, a solidão e violência que compõe o mosaico da cidade que devora? Sabem apenas aquilo que veem na TV, leem no jornal ou nas pesquisas e relatórios daqueles que estão no campo e, ainda assim, subordinados à primazia da imparcialidade e objetividade científicas abstendo-se de qualquer empatia ou envolvimento que não seja estritamente técnico-burocrático. Os programas e políticas sociais de enfrentamento do Crack oscilam entre a lógica da "guerra as drogas" e a do assistencialismo paternalista. Nem numa perspectiva remota cogita-se inverter a lógica objeto X sujeito nesse processo – afinal, o indivíduo é um "zumbi" ou pouco menos do que isso, não pode, portanto, ser um interlocutor ou parte ativa em um processo que diz respeito a sua vida! -, nem mesmo expandir as suas possibilidades e potencialidades humanas e sociais, assegurando e ampliando os seus direitos, antes mero ajustamento na base da pirâmide, a porta e a entrada de serviço da Casa Grande conforme a conveniência e tradição ad infinitum!

Grosso modo, modifica-se a lógica da caridade e impõe-se o princípio da autoajuda – individualização da questão política e social - como concepção determinante de vida, estabelecendo a primazia dos postulados liberais do individualismo e do laissez-faire. Semelhante o panorama histórico ora exposto, o trabalho inserido em um amplo contexto de exploração, miséria, revoltas e repressão faz com que a política se volte para a questão social, por sua vez, evidenciando a falência do modelo funcional-conciliatório do Estado de Bem Estar Social como resposta da barbárie do Capitalismo à classe trabalhadora. Com efeito, não é apenas uma questão de competência ou incompetência o retumbante fracasso dessas políticas em termos de recuperação, confiança e adesão dos usuários ou “beneficiários” – a questão é o modelo essencialmente arbitrário, injusto, excludente! Por fim, qualquer dependente químico, seus familiares ou amigos sabem que é impossível deixar o vicio sem abandonar o ambiente e o circulo de relações e atividades que o envolve, portanto, "Braços Abertos" na Cracolandia só pode ser peça publicitária pra classe média egoísta, soberba e bovarista - o crack, o tráfico, os companheiros de vicio, as paredes, as ruas espreitam. Varrer o lixo da parte mais abandonada da cidade, explorar a função mais baixa na hierarquia publica e o mais baixo salário de todos: eis o “tratamento” pra dependência química, o que se supõem que irá recuperar a autoestima destruída do usuário de crack – uma vassoura e o cargo de Gari! Prefiro supor que o prefeito e a sua assessoria desconhecem o estudo sobre a estigmatização, discriminação e a invisibilidade que sofrem os garis e trabalhadores da limpeza urbana - "Homens Invisíveis - Relatos de Uma Humilhação Social", do psicólogo Fernando Braga da Costa – para supor que essa seja uma alternativa viável para recuperar ou tratar a dependência química e a exclusão. Não basta emprego e moradia, não adianta tratamento e acompanhamento, nada vai adiantar mantendo as pessoas no mesmo ambiente, sem construir outros vínculos, relações e perspectivas!

O "Recomeço" completa a tragédia da farsa das políticas publicas para tratar a questão do crack na sociedade, na medida em que o hospital para atender a população dependente química da região central da cidade estará sob o controle de um "laranja" governamental. De fato, Sérgio Buarque de Holanda observou que no Brasil, historicamente o Estado é uma extensão da família. Faoro sentencia que o "patrimonialismo" faz da política um negócio privado como outro qualquer, cujo o único objetivo é o lucro. Será? Acho que não, ainda existem homens públicos altruístas e abnegados, senão vejamos o caso do renomado  psiquiatra e professor da Unifesp Ronaldo Laranjeira, notório "proibicionista" e "pesquisador" do crack, homem  de confiança da política autoritária, profilática e repressora do governo do Estado de São Paulo! Com efeito, o professor Laranjeira não é apenas pesquisador e "especialista" no assunto, ele é "o especialista" do governo - Coordenador da política anticrack da Secretaria de Estado da Saúde, do referido Programa Recomeço e Presidente da entidade "filantrópica"  ligada a Unifesp, "Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina"! Grande currículo esse o do professor Laranjeira! Evidente que não foi por outra razão que a entidade presidida pelo abnegado professor conseguiu o contrato de R$ 114 milhões para administrar o futuro Hospital para tratar os dependentes químicos na região da Cracolândia em São Paulo! Afinal, a entidade é filantrópica, "sem fins lucrativos", o professor não recebe salário para presidir a entidade, não houve concorrência para a escolha da sua entidade porque apenas ela atendia as exigências do edital, enfim, só os celerados e levianos pra levantar questionamentos e/ou criticar iniciativa tão cara - literalmente! - para os moribundos massacrados pelo vício! Assistencialismo e autoritarismo, política e negócios! Assim é que se leva faz "política publica" no Brasil: com laranjas, oportunistas, demagogos, autoritários, tecnocratas, burocratas, especialistas, altruístas e abnegados, propaganda e muito dinheiro publico. 


Referencias

BARRETO, Lima, Crônicas escolhidas.
BRESCIANI, Maria Stella M., Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza.
ENGELS, Friedrich, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.
FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder.  
MARX, Karl, Manifesto Comunista.
SINGER, Paul, Economia política da urbanização.

http://www.estadao.com.br/noticias/vida,entidade-de-chefe-de-programa-anticrack-do-estado-vai-gerir-hospital-para-viciados,1147969,0.htm

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