sexta-feira, 27 de maio de 2011

Cadeia


Quando trabalhei com encarcerados vi muitas coisas que gostaria de não ter visto e ouvi outras tantas piores. Conheci gente perversa, sádica, cruel, cínica. Muito piores que muitos dos presos. Companheiros de trabalho. Presos vinham me contar que falavam de mim pelas costas, me avisavam pra ficar esperto. Não que confiasse integralmente no que muitos deles me diziam, sei como é o jogo, mas, confiava, sobretudo, no que via e no meu “desconfiometro” - intuição. Antes de conviver com presos já convivi com funcionários públicos e policiais e sei como são os melindres.
Nessa época trabalhava com uma equipe de estagiárias de psicologia e serviço social da UNIP, meninas bonitas que pareciam saídas do elenco da "Malhação." Novas, solteiras, loiras, saradas, sensuais. Isso bastava para todos os agentes penitenciários me detestarem. Sem dizer que eu ainda era jovem, coordenador, inteligente e sabia me impor. Percebia como me fuzilavam com os olhos quando passava e principalmente quando o diretor do presídio me chamava a sua sala. Demonstravam bastante hostilidade ainda porque eu era da capital e tinha bem mais conhecimento do mundo do que eles que nunca haviam saído daquela província. Fora isso tudo a convivência era boa! Fiz até algumas amizades que mantenho até hoje, sobretudo com uns veteranos. Gente digna da espécie humana e que honra o Estado – muito mais do que altas autoridades do executivo e judiciário.

Porem, não é sobre eles que tratam essas linhas. Quero falar sobre dois presos em particular - Célio e Marco. Os dois eram traficantes. O primeiro era mato-grossense, fazia transporte de cargas e também era assaltante. O segundo era local e estava na sua segunda cadeia. O primeiro era esperto, malandro escolado, nascido e criado no crime. O segundo era veterano, mas, de classe media, traficava por opção. Tinha uma loja de carros e a mulher era professora da rede publica do município. Gostava do crime, das drogas e da vida de bandido. Ambos estavam na faixa dos 45, mas não aparentavam. Enfim, nos víamos e conversávamos todos os dias. Eu falava do trabalho e das minhas andanças - SP/RJ - e eles da cadeia e dos seus B.Os. Quando passei a dormir no alojamento nosso contato aumentou. Sempre fumava cigarros deles e eles do meu. Uma vez até me ofereceram uma cachaça que um agente deu a eles. Tinha um motorista de bonde que sempre levava algum agrado pra eles. Era gaúcho e sempre tomava chimarrão conosco, compartilhando a cuia e o fumo.

O mato-grossense, de tão simples, ninguém dava nada pra ele. Era até visto como bobo por aqueles que se achavam mais espertos. Bobo era quem pensava que ele fosse bobo. Respeitado na cadeia pelos presos de todas as facções - PCC e CRBC - e não pertencia a nenhuma. Respeitado pelos funcionários mais antigos e pelo diretor. Tinha a confiança de todos e desfrutava de certas regalias. Quando passei a dormir no alojamento do presídio, costumava sair depois do meu horário de expediente - 16H - para ir a um boteco no final da rua, cerca de 500 metros do presídio. Distante 100 metros dele ficava a vila dos funcionários – diretores e outros mais antigos e graduados do sistema. Esse preso saía dia sim e dia não para fazer alguns trabalhos na vila – o que por sinal é ilegal. Em uma outra ocasião falarei só das ilegalidades que vi e ouvi por lá. Após algumas idas e vindas encontrava com ele pelo caminho. Como ele estava lá há mais tempo do que eu sabia aonde eu ia. Um dia quando cheguei lá encontrei ele e outro preso tomando umas cervejas e beliscando uma tábua de frios. Evidente que disfarcei a surpresa! Na hora me cumprimentaram e me chamaram a mesa. Evidente que também sentei e tomei umas com eles, comi e nem paguei nada, não deixaram. Quando saíram, perto das 18, que é a hora da contagem deles, o mato-grossense foi até o balcão e pendurou a conta com o proprietário – o que significa que já era freguês. Eu fiquei lá até as 19 que era à hora da janta na cadeia. Depois desse dia quando nos encontrávamos na hora do almoço eu sempre perguntava a ele e ele devolvia: “vai lá hoje?” Tomamos várias outras diversas vezes. Os assuntos eram quase sempre a vida na cadeia, direitos humanos, crime, futebol, família e mulher. Quando ficava até mais tarde sempre encontrava funcionários lá do presídio também, inclusive em horário de trabalho - muitos eram alcoólatras  Uma vez levei uma lata de cerveja pro outro preso. Coloquei-a - a cerveja - em um saco plástico e entrei sem problemas. Impressiona o que alguma atenção e coisas que sequer pensamos a respeito delas adquirem enorme importância e valor quando se esta privado da liberdade e longe dos seus - isso, de certo modo, compartilhava com eles. 

Um dia o guarda da portaria já havia saído da guarita. Me avisou que quando estivesse na rua podia pular a cerca – nem precisava chamar ninguém pra entrar. Fiz isso diversas vezes também. Os guardas de muralha - AEVP - que me conheciam comentavam depois, “ei Funap, te vi ontem pulando a cerca lá hein.Traz uma gelada da próxima vez, pô!” Uma vez esse traficante da cidade me contou sobre um agente veterano que tinha raiva de mim porque, como se diz lá: eu "não pagava simpatia pra agente." Contou-me que ele me queimava, dizia que eu era ingênuo, otário, que eu não sabia de porra nenhuma de nada e era ainda abusado porque pensava que a "Funap fosse mais do que era". Nunca duvidei, palavras ao vento voam. Também não gosto de intrigas e nem de fuxico, mas, sei como funcionam as coisas nesse tipo de ambiente em que a convivência forçada é temperada pela desconfiança e hostilidades mutuas. Ele pensava que era respeitado porque intimidava mas, não tinha dignidade pra merecer respeito, sequer dos seus companheiros de trabalho, ao contrario, era digno de pena e detestado. É o tipo que todos sabem como terminam seus dias – assassinado, viciado, louco, suicida. Uma vez fiquei na sala dos AEVPs vendo futebol. Depois fiquei algumas horas conversando e fui me deitar na madrugada. O sujeito teve que levantar pra abrir o portão pra eu passar. Dormia, levantou-se injuriado e de cuecas. De fato, funcionário qualificado, preparado, digno. Um "servidor" na acepção estrita da palavra. Em uma rebelião é o primeiro a morrer - e só de cuecas. 

Esse preso uma vez fez "uma presença" pra mim. Jogou um pó na minha mão. Falou que era só "uma presença" de camaradagem porque eu era "um cara firmeza e humilde." Senti-me na obrigação de retribuir e levei um de Sampa pra ele. Endoidou: queria me pagar pra eu levar mais pra ele. Recusei, enrolei e disse não. Ele falou que lá na cidade não tinha daquela qualidade. Precisou tomar até Diazepan pra dormir. Falei que estava retribuindo – e sei que no fundo ele fez isso pra me testar. Testou e minha credibilidade aumentou – viu que eu não era só mais um figurão excêntrico e falastrão, tampouco um cínico e corrupto. Nessa época vi e ouvi sobre o uso de drogas por presos e funcionários. Vi até um contraventor - banqueiro do jogo do bicho - fazer churrasco, ser recebido com escolta da comunidade e fogos na saída, sendo acompanhado e abraçado por funcionários – tipo um Don Corleone. Por sinal os mesmos funcionários que espancavam nóias e ladrões de supermercado e bicicleta.

Eu nunca me envolvi com nada porque sei da importância e acredito no meu trabalho – educação. Sobretudo porque acredito que mais do que o discurso, minha pratica deveria ser diferente da dos demais agentes do sistema. Nesse sentido, penso que a base dessas relações pautou-se pela confiança e respeito mútuos, coisa que não existe entre os que vivem nesse mundo. De qualquer forma sei que isso os fez refletir sobre as pessoas e a condição deles e do sistema, porque, embora eu disponha de mais recursos para isso, esse processo é uma via de mão dupla. Não sou ingênuo, mas não julgo, fiz o meu trabalho de buscar recuperar – a dignidade, o respeito, a autoestima, o senso crítico, a esperança – até enquanto pude e acreditei ser possível, apesar das condições. Aprendi que os caminhos são muitos, tantos quanto à complexidade da espécie humana e as suas relações  bem como que o maniqueísmo serve apenas aos acomodados e autoritários. Sei também que se um dia encontrar com qualquer um deles também não tenho o que temer.

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