No
capítulo intitulado "A luta", Euclides da Cunha inicia-o chamando a
atenção para o contexto de conflitos que permeavam a região. Esses conflitos se
inserem no contexto da Lei de Terras de 1850, na tradição Messianista na sociedade e na ampliação das Forças Armadas na
política após a Guerra do Paraguai. Com o objetivo de disciplinar o direito
agrário no país a Lei de Terras acabou por consolidar a terra como mercadoria,
fortalecendo o latifúndio e as oligarquias, promovendo problemas de natureza política,
social e religiosa; posto que a reorganização oligárquica da terra favorecesse
a manutenção da concentração de terras e a exploração pelos grandes
proprietários.
As
oligarquias agrárias, cuja origem remonta as sesmarias passando à aristocracia
imperial, insatisfeitas com o centralismo político da monarquia, reivindicavam
cada vez mais autonomia para administrar os seus negócios. Do ponto de vista
objetivo, tratava-se de consolidar em cada província, sua própria estrutura de
poder assegurando o domínio regional sem a interferência do governo central –
conforme a época das sesmarias em que cada capitania respondia pela
administração política, jurídica, militar e eclesiástica do domínio territorial.
Com efeito, após a Guerra do Paraguai ocorre à organização
sistemática desse processo pelo Estado, quando se inicia a “politização dos
militares e a militarização da política brasileira.[1]” Ao
lado destes aspectos políticos, a questão climática causa o horror e o desespero
nas populações camponesas do nordeste. As secas que devastaram os sertões de
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará ocasionaram a crise na
produção, a fome e o deslocamento em massa de populações para as capitais e a
região sudeste – secas de 1877/79[2].
De
fato, os movimentos pré Canudos como o do Reino Encantado e da Pedra Bonita
surgem nesse contexto como uma reação dos camponeses a estrutura social e
condições materiais a qual estavam submetidos. Liderados por beatos que
surgiram após a Confederação do Equador, produto da miséria e seca que flagelavam
os sertanejos ao lado do centralismo e da ordem senhorial dos grandes
proprietários. O Reino Encantado de 1836, na divisa de Pernambuco e Paraíba, acabou
vencido pela Guarda Nacional e destruído em 1838. Ainda
em 1838, o beato José Pereira de Pedra Bonita em Pernambuco, inspirado pelo
Sebastianismo organizou uma matança e após ceifar a vida de animais, velhos,
crianças e as mulheres do povoado acabou assassinado pelo próprio irmão quando,
a seguir, a Guarda Nacional atacou a comunidade executando os sobreviventes.[3]
O governo da Bahia, quando confronta o povoado de Canudos, já enfrentava diversas insurreições e desordens em diversas cidades e vilarejos do sertão, como em Lençóis, Lavras Diamantina, Jequié. Por diversas razões, sobretudo, ligadas a terra, ao clima, a miséria e o fanatismo religioso, mobiliza camponeses e jagunços contra os poderes locais e a ordem estabelecida. Produto da tradição positivista de tendência darwinista, a “genealogia euclidiana” se estende da terra ao homem, culminando na luta entre civilização e barbárie. Nessa perspectiva, atribui o modo de vida e a cultura do homem sertanejo - caráter predador, errante, ocioso, displicente - às condições adversas do ambiente em que ele desenvolve-se, posto em uma sequência linear que avança do colono desbravador, aventureiro e "saqueador da terra" ao jagunço "saqueador de cidades", cujo fim último é apenas a sobrevivência.
Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala” chama a atenção para esse traço da colonização portuguesa, de modo que salienta a empresa da colonização lusitana a se sustentar sob a “corajosa iniciativa particular” do colonizador português que “concorrendo às sesmarias, dispôs-se a vir povoar e defender militarmente, como era exigência real, (...)”. Freire argumenta que assentada na “família rural/patriarcal”, desenvolveu-se aqui uma sociedade “(...) defendida menos pela ação oficial do que pelo braço e pela espada do particular”. Assim, estavam lançadas as bases em que estabelecer-se-iam os padrões que determinariam as relações sociais no Brasil; em vez de servidão, submissão; no lugar de movimento social; coragem pessoal.
Assentada na família rural patriarcal, essa ordem se constituiria em uma “(...) força social que se desdobra em política”. Freire vai argumentar que do século XVI ao XVIII a colonização portuguesa no Brasil caracterizar-se-ia pelo domínio quase que exclusivo da família rural e semi-rural. Assim, a obra da colonização brasileira deveu-se a organização familiar de caráter senhorial, não ao Estado português ou a alguma companhia burguesa de comércio[4].
Raimundo Faoro, por sua vez, ressalta que a Península Ibérica caracteriza-se por constituir a sua sociedade “(...) sob os signos da guerra e da conquista”. O período turbulento de consolidação do Estado português, observa Faoro, privilegiou o desenvolvimento de uma “concepção ibérica da natureza humana”, uma “cultura da personalidade”, que definia-se pelo valor dado a autonomia do homem e a ausência de qualquer tipo de dependência[5]. Assim, o centro de toda organização na colônia seria a família rural patriarcal, assentada no latifúndio, estabelecida na ordem do Estado patrimonial português, caracterizada por relações de poder mediadas pela violência. Deste modo, nesse contexto, cada estrato social elabora e justifica a sua conduta através de um sistema organizado assentado em relações de poder que estabelecem o "outro" não apenas como “estranho”, mas como o “inimigo” e a "mentira" que se opõe à "verdade" e/ou o "mal" que se opõe ao "bem" numa ordem estabelecida pela dominação e exploração - luta de classes em estado bruto.
Produto do Positivismo do século XIX, em Euclides tudo revela as contradições entre a terra e o clima, entre os homens e o ambiente, a civilização representada pela República e a barbárie pelos que a rejeitam, compondo um mosaico aonde estas se mesclam e adaptam-se, produzindo homens e cultura singulares, amalgamando uma complexa trama de relações sociais determinadas pela força, pelos "contrastes e confrontos", titulo bastante apropriado de outra sua obra. Minucioso observador, a crítica de Euclides não se abstém dos aspectos estruturais relevantes na composição do meio sertanejo - a força política da Igreja e das oligarquias latifundiárias diante da complacência estatal -, tampouco ignora, no entanto, as notáveis qualidades do camponês simples e rústico.
Assim, destaca que Antonio Conselheiro era homem cuja reputação de místico, profeta e justo sobre as paragens do sertão, atravessava todo o nordeste já há duas décadas, incomodando os poderes locais - políticos, econômicos e eclesiásticos. Entre o confronto do Conselheiro e o povo de Canudos com o magistrado local - motivado por determinações econômicas, políticas e sociais, dissimulado por razões comerciais -, passaram-se 15 dias até o enfrentamento com as tropas militares - surpreendidas por outra tropa de jagunços apoiada por habitantes das cidades satélites fiéis ao Arraial do Conselheiro. O desfecho desse primeiro combate nos arredores do povoado de Uauá, a despeito das reduzidas baixas entre os soldados em comparação com o elevado numero de mortes entre os Canudenses, consagrou a bravura e a ousadia da tropa de Canudos espalhando o mito do “heroísmo santo e abençoado” entre a população local, sobretudo, devido à retirada apressada, desorientada e abatida dos soldados.
Após a primeira retirada das tropas oficiais, organizou-se a segunda expedição com efetivos redobrados - em armamentos, suprimentos e homens -, no esteio das noticias e boatos que se espalhavam nos povoados e nas capitais sobre o fracasso militar. Observador atento - dos fatos, do meio, dos homens e da historia -, Euclides logo identifica os motivos do fracasso de uns e o sucesso de outros. Assim, chama a atenção para o “combate de movimento” dos jagunços - tropas móveis, irregulares, "agindo folgadamente" conforme as vicissitudes do terreno e da luta, em oposição à guerra de posições levada a efeito pelas tropas regulares. Deste modo, o historiador Euclides não negligencia o traço característico do sertanejo, herdeiro do “colono e do bandeirante”, guerreiros e conquistadores que com forças reduzidas subjugaram tribos, quilombos organizados e revoltas nativas - "dividir para fortalecer". Nesse sentido, sustenta que tanto o jagunço "solerte e bravo" impunha esse tipo de luta as tropas, quanto "a natureza excepcional que o defendia" – atento observador da historia e do campo de batalha. Amparado na luta pela natureza “tão rude e hostil quanto si próprio”, o jagunço - um “esquadrinhador nativo da caatinga” -, torna-se o "guerrilheiro-tugue, intangível..." Eis a aliada que o estrategista teórico ignora, apegado as suas infalíveis táticas, sofisticada parafernália bélica e rigorosa disciplina militar.
Como Euclides apreende, a natureza não apenas esconde o jagunço, mas, o ampara transformando o campo de batalha em labirinto de emboscadas promovidas por "atiradores invisíveis" - tanto na emboscada, quanto na espionagem às tropas nas cidades e acampamentos, misturados, escondidos e dissimulados entre a população."A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Anteu, indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos." (Anteu, filho de Poseidon e Gaia, na mitologia grega, foi um Titã cuja invencibilidade resultava do contato direto com a Terra. Foi derrotado por Hércules quando este o suspendeu no ar em combate).
Conhecedor da Historia e Filosofia, Euclides é preciso e objetivo nas metáforas, ao mostrar-nos, assim, a simbiose entre o homem e a terra. Euclides era, além de dedicado cientista, um homem público comprometido com o desenvolvimento do seu país. Deste modo, estava atento as determinações políticas por trás da “cortina de fumaça da artilharia”, lançando o olhar sobre as motivações regionais e nacionais, naquilo que considerou - não sem algum exagero - a nossa Vendéia (conflito civil que se seguiu a Revolução Francesa, de caráter camponês, religioso e contrarrevolucionário que estendeu-se pelo norte da França durante cerca de cinco anos causando aproximadamente 200 mil mortes). Guardadas as devidas proporções, em todos os aspectos, havia naquele período, sobretudo, entre os protagonistas da recém criada Republica brasileira, um enorme temor em relação a movimentos de caráter contrarrevolucionário – monarquistas - nas forças armadas, políticas e civis. Embora não tenham encontrado resistência de caráter monarquista, as forças Republicanas enxergavam com extrema desconfiança e hostilidade qualquer manifestação critica ou mesmo exterior aos círculos republicanos, sobretudo, após as Revoltas da Armada e o movimento Federalista gaúcho.
Na
incipiente República, o olhar atento do homem público tampouco ignora os
embates entre o Estado e a União, determinados mais por interesses locais no
jogo do poder do que por aspectos de caráter constitucional, em termos de
independência e autonomia entre os poderes e/ou Estados e União. Percebe,
assim, que as diferenças - veleidades e vaidades - entre o governador baiano,
suas forças e os comandantes militares da União os dividem, fortalecendo os
jagunços - sobremaneira subestimados em numero, disposição e competência por
ambos. É nesse contexto de construção da "soberania nacional" que se
lança o olhar euclidiano sobre o movimento de Canudos.
A importância da natureza como aliada do sertanejo, diante das condições adversas em que viviam os homens daquelas terras, em termos de recursos naturais e materiais - espécie de cumplicidade ambígua -, caracteriza o seu relato minucioso, preciso e contundente. Não há meias palavras, tergiversações, retórica. Euclides se posiciona e não minimiza a revolta, a desilusão e a critica em relação a Republica que havia idealizado, lutado e ajudado com sacrifícios e altruísmo a construir. Na sua pena, além do cientista, jornalista e político, sobretudo, revela-se o homem solidário com os seus iguais, porem, não idênticos.
"O povoado triste e de todo
decadente reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que
morre, desconhecida a historia, entre paredes de taipa." (pp.112)
O relato de Euclides, antes, porem, diz-nos muito tanto sobre a dureza do sertão e a resiliência do sertanejo, quanto à visão do homem urbano, cosmopolita e esclarecido que ele representava. Apreende-se, nos seus relatos, o impacto e o atrito ocasionado pelas contradições entre a "civilização" – urbana e republicana - e a "barbárie" - o sertão messiânico. A distancia entre os homens não era apenas material, geográfica e temporal - posto que se considera no arcabouço do conceito de civilização, antes as características de desenvolvimento cultural, científico, moral e político. Assim, o seu olhar atento revela não apenas os antagonismos de ordem cultural, sobretudo, aqueles assentados nas condições materiais estabelecidas pelo latifúndio e as oligarquias locais. Deste modo, a campanha de Canudos, de ambos os lados, caracteriza-se por determinações estruturais. Do lado dos militares, além do forte traço positivista, percebe-se a crença na superioridade incondicional e irrestrita da civilização e tudo o que ela representa - o Estado, as leis, a ordem, o progresso. Por sua vez, ao lado dos populares, a convicção na fé, no bem, na verdade e na justiça divinas, revela a realidade de privações e abandono materiais que subjugavam o sertanejo, abandonados as relações sociais de subserviência, violência e dependência da terra às quais se submetiam há três séculos. Desse modo, percebe-se em ambos a condição que se impõem de antagonismo latente e deslumbramento hostil e prepotente, assentado na convicção da superioridade - mística ou material -, que se afirmava na ignorância e desprezo em relação ao outro – incompatível com qualquer projeto republicano.
Enquanto pela manhã os oficiais militares acreditavam que "almoçariam" em Canudos, o profeta tinha a convicção que a sua "vitória era fatal" e, mais ainda, que "os invasores não veriam sequer as torres das igrejas sacrossantas". Esse foi o ambiente encontrado por Euclides, pano de fundo perfeito para um morticínio de proporções épicas. As forças do governo - exercito e polícia -, conforme a mais estrita e rigorosa tradição militar francesa e prussiana - táticas, estratégias, armamentos -, rendiam-se impotentes diante da incompatibilidade imposta pelo terreno acidentado e o adversário guerrilheiro, disperso, invisível e indelével; batidos Pires Ferreira e Febrônio de Brito – oficiais militares -, ressabiados pela assombrosa derrota, ressentindos pelo clamor da opinião pública, apelam ao governo, resignavam em apelar ao experiente, condecorado, emblemático e sanguinário coronel Moreira Cesar.
Moreira Cesar era produto da era Floriano Peixoto – o jacobino da Republica. Condecorado veterano das Revoltas daquele período - Armada e Federalista. Assim, havia naquele momento componente perigoso na sociedade, resultante do clima tenso e de temor ocasionados pelas constantes revoltas que caracterizaram os primeiros anos da Republica recém inaugurada. Clima por sua vez, propício aos excessos, desmandos e a consagração de homens severos e bárbaros como Moreira Cesar. Assim, no vácuo da Republica e das Revoltas subsequentes, temos o surgimento e o embate de um lado, de movimentos de caráter nativista exacerbados e, de outro, uma espécie de jacobinismo no âmbito do governo republicano. Nesse contexto, o Exercito consagrava-se como protagonista e Moreira Cesar como o seu estandarte. Em Canudos a sua expedição traria o seu emblema e se consagraria como a vingadora contra os inimigos da República.
A
mobilização e o assalto vertiginoso e célere a Canudos viriam acompanhados pelo
previsível e inexorável fracasso, conforme o militar e historiador Euclides
avistava. A megalomania de Moreira Cesar subestimava tanto o sertão quanto o
sertanejo e, exigia uma espécie de "Blitzkrieg" da época – campanha arrasadora,
implacável e aniquiladora. Penso quanta falta não lhe fez breve leitura das
campanhas de Aníbal e Napoleão – sintomático do desprezo militar brasileiro
pela historia. Subestimava que as vitórias dos sertanejos granjeavam cada vez
mais simpatizantes e adeptos, avolumando as suas tropas, posto que Canudos
fosse também o principal povoado daquela região – estima-se em 25 mil
habitantes a população do povoado, menor apenas que a capital baiana. A mística
do arraial santo crescia com a fé e a crença na invencibilidade contra o
"mal" republicano, personificado no "Anticristo" Moreira
Cesar, representante da República, expressão máxima do governo maldito – laico,
republicano, urbano, liberal.
A terceira expedição fez-se no final do verão de 1897, consumida sistematicamente pelo clima e natureza inóspitos e implacáveis. Assim, além disso, a disposição do soldado brasileiro, conforme a sua tradição, diferente das tropas europeias rigorosamente treinadas e disciplinadas, moldava-se de um lado, pelo seu espírito intrépido e, de outro, pelo caráter do seu líder - Moreira Cesar. Deste modo, Euclides observava os perigos que se apresentavam a tropa naquele contexto:
"Os grandes estrategistas têm,
instintivamente, compreendido que a primeira vitória a alcançar nas guerras
está no debelar esse contágio de emoções violentas e essa instabilidade de
sentimentos que com a mesma intensidade lançam o combatente nos mais sérios
perigos e na fuga". (pp.143)
De tal modo Moreira Cesar ordenou o assalto rápido, renunciando a artilharia, oferecendo o combate no terreno inimigo. Assim perdeu-se no labirinto do arraial, entre os escombros das casas, abandonado pela artilharia; desfez-se e sucumbiu ao assalto sorrateiro da jagunçada dispersa, furtiva, ágil e em vantagem numérica e estratégica. Diante do iminente fracasso, restava o desespero e a cavalaria e, com ela pereceria o grande coronel Moreira Cesar.
Impôs-se assim a retirada - fuga desesperada - e o fim da terceira expedição, sob os despojos de farto armamento e munições, centenas de cadáveres, entre eles os dos veteranos oficiais Moreira Cesar e Tamarindo. Solapada a imponência do governo, aliada a brutalidade dos combates, revigorava-se o "misticismo e a rudeza" do jagunço. Se a segunda expedição já causara comoção publica na capital federal, a queda da terceira, com os seus oficiais mártires, precipitariam o terror. O pânico, aliado a ignorância, prepotência e a desinformação, era o combustível da reação e do ódio. Afinal, não só era imperativo vencer, como ainda justificar o fracasso, assim, os jagunços miseráveis e abandonados do sertão foram promovidos a artífices da contrarrevolução monarquista a serviço das casas nobres lusitanas – o terror antirrepublicano. Eis o mantra do desatino:
"A República estava em perigo; era
preciso salvar a República."
"Não há quem há esta hora não
compreenda que o monarquismo revolucionário quer destruir com a República a
unidade do Brasil." (pp.158)
A guerra tornara-se total - incondicional e irrestrita -; travada nas ruas da capital e nos gabinetes oficiais, nas redações inflamada pela pena da imprensa. Assim, não bastava à mobilização federal, era imperativo acionar as forças policiais dos Estados e arregimentar batalhões civis para a revanche. A guerra de desinformação e terror seguia célere e sem limites:
"É que estava em jogo, em Canudos,
a sorte da República. (...) Diziam-no informes surpreendedores: aquilo não era
um arraial de bandidos truculentos apenas. Lá existiam homens de raro valor —
entre os quais se nomeavam conhecidos oficiais do Exército e da Armada,
foragidos desde a revolta de setembro, que o Conselheiro avocara ao seu
partido." (pp.161)
Com
um enorme contingente de soldados - totalizando cerca de um terço (perto de 12
mil homens) de todo o efetivo à época, mobilizados em 17 Estados pelo próprio
Ministro da Guerra - e reforço de artilharia pesada, iniciou-se a quarta
expedição contra o arraial de Canudos. Em junho de 1897, duas colunas estavam
em ação, à primeira sob o comando do General Silva Barbosa vê-se em situação
desesperadora diante das emboscadas levadas a efeito pela jagunçada entocada
sob as ordens do líder Pajeú. No Morro da Favela, (...) "a primeira coluna
estava aprisionada. Por mais estranho que se afigure o caso não havia aos
triunfadores um meio de sair da posição que tinham conquistado." O seu
comandante, veterano da Guerra do Paraguai, assegurava ainda em relatório que
nem naquela guerra havia presenciado cerco e fogo tão implacável quanto ao que
estavam ali submetidos.
"(...) o chefe expedicionário se
confessou impotente para descrever a imensa "chuva de balas que desciam
dos morros e subiam das planícies num sibilo horrível de notas", que
atordoavam. Por sua vez o comandante da 1.ª coluna afirmou em ordem do dia, que
durante cinco anos, na guerra do Paraguai, jamais presenciara coisa
semelhante." (pp.176)
A segunda coluna, sob o comando do General Savaget, após longa e penosa marcha e inúmeras emboscadas, consegue em fins de junho chegar ao campo de batalha em socorro da primeira. A tempestade de fogo de artilharia vinda do Morro da Favela duraria meses. O destemor da jagunçada diante do fogo dos canhões impressiona, atemoriza e abala o moral da tropa. Em julho, exauridos pelas privações, sacrifícios e baixas dos combates, é organizado o "Grande Assalto" a Canudos. Todo o efetivo foi mobilizado - cerca de 3,5 mil soldados investem contra o povoamento. Recebidos com emboscadas e fuzilaria, são forçados a recuar ao final do dia com quase mil baixas - dentre eles os comandantes de brigadas, Carlos Teles, Serra Martins e Antonino Néri. O "Grande Assalto" é um retumbante fracasso. Eis o panorama perturbador e fatal naquele momento:
"A luta pela República, e contra os
seus imaginários inimigos, era uma cruzada. Os modernos templários, se não
envergavam a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz aberta nos copos
da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável. Os que daquele modo se abatiam
à entrada de Canudos tinham todos, sem excetuar um único, colgada ao peito
esquerdo em medalhas de bronze, a efígie do marechal Floriano Peixoto e,
morrendo, saudavam a sua memória — com o mesmo entusiasmo delirante, com a
mesma dedicação incoercível e com a mesma aberração fanática com que os
jagunços bradavam pelo Bom Jesus misericordioso e milagroso (...)" (pp.202)
Traço
do “jacobinismo” no qual se assentava à primeira Republica – ímpeto vingativo, ensejo
de fúria que nada diz respeito à construção de uma ordem nacional que se impõem
para além da força bélica. Quando Euclides chega a Salvador, no inicio de
agosto e diante do fracasso do "Grande Assalto", o General Artur
Oscar já havia mobilizado cerca de 5 mil reforços e a famosa "Brigada
Girard", temida pela sua ferocidade demonstrada em combate, formada por
1.090 homens apresentou-se no campo de batalha no dia 15 com menos de 800
homens - tendo inclusive declinado o seu comandante. "De 25 de junho, em
que trocara os primeiros tiros com o inimigo, até 10 de agosto, tivera a
expedição 2.049 baixas."
No final de agosto o próprio Ministro da Guerra, Marechal Carlos Machado Bittencourt, instala-se em Monte Santo - local em que se instalou a base de operações - com um novo reforço de três mil homens, seguindo-se combates ferozes a cada dia mais difíceis devido ao cansaço e as privações, ocasionados pelo esgotamento de recursos materiais e suprimentos – água, remédios e alimentos. Em setembro, o exército toma a Fazenda Velha, ponto estratégico para o bombardeio a Canudos. Bloqueada a estrada da Várzea da Ema, fecha o cerco ao arraial após 04 meses de luta.
O Marechal Bittencourt era homem experimentado no Paraguai, de temperamento frio, impassível, lacônico. Disciplinado, completava a sua frieza o rigor extraordinariamente técnico-burocrático. Assim, venceu a guerra antes superando as dificuldades de ordem logística que o terreno impunha organizando "(...) um corpo regular de comboios, atravessando continuamente os caminhos e ligando de modo efetivo, com breves intervalos de dias, o exército em operações a Monte Santo. Este resultado pressagiava o desenlace próximo da contenda."
Todavia, apenas em outubro, após a mobilização de cerca de seis mil homens as suas tropas conseguem tomar as ruínas da "igreja nova." A despeito do reduzido efeito prático, tal feito foi bastante celebrado. No entanto, a guerra ainda não havia terminado, as tocaias dos jagunços seguiam espreitando por entre os escombros da vila, através de túneis, buracos, becos, arbustos, morros. Diante das elevadas baixas o exército incendiou o que havia restado da terra, queimando tudo o que sobrara - corpos, casas, animais, armas. Assim, a campanha de Canudos estava encerrada. O Conselheiro falecera ainda em setembro de 97, encerrando o reduzido ânimo que ainda sobrava nos combatentes moribundos que restavam. Ao final, sobram apenas alguns poucos resistentes, muitas mulheres, crianças, idosos e moribundos famélicos para a sanha feroz das tropas ensandecidas e embrutecidas.
"Numa das refregas subseqüentes ao
assalto, ficara prisioneiro um curiboca ainda moço que a todas as perguntas
respondia automaticamente, com indiferença altiva:
"Sei não!" Perguntaram-lhe por
fim como queria morrer. "De tiro !" "Pois há de ser a faca!" contraveio,
terrivelmente, o soldado. Assim foi. E quando o ferro embotado lhe rangia nas
cartilagens da glote, a primeira onda de sangue borbulhou, escamando, à
passagem do último grito gargarejando na boca ensangüentada: "Viva o Bom
Jesus !..." (pp.212)
O final é trágico e vergonhoso, de formação militar, Euclides repugna a ação do exercito: "Os soldados impunham invariavelmente à vítima um "viva à República", que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta à garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão. Um golpe único, entrando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido... Tínhamos valentes que ansiavam por essas cobardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso, os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades."
Por fim, não renuncia a consciência, assumindo a missão de denunciar o crime, posto que a "(...) História não iria até ali." A despeito da denuncia, da analise e da crítica contundente de Euclides, o exercito brasileiro, poucos anos depois levaria a efeito campanhas vergonhosas e assassinas contra o próprio povo – Contestado e 1924 em São Paulo. No Brasil da República Velha, segundo a visão da classe política e das oligarquias que ela representa, “a questão social é caso de polícia[6]”. A clareza de Euclides sobre o papel da Republica deveria ser a divisa do Estado:
"Decididamente era indispensável
que a campanha de Canudos tivesse um objetivo superior à função estúpida e bem
pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões. Havia um inimigo mais sério
a combater, em guerra mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um
crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à
artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer
para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas
retardatários." (pp.226)
Canudos inaugura o século XX republicano brasileiro. É emblemático que aconteça durante a vigência do primeiro governo civil. O conflito “republica versus monarquia”, dissimula à questão agrária latente, o fardo das elites oligárquicas representantes dos barões do Império incrustadas no Estado e todas as contradições do antigo regime de uma sociedade assentada na dominação, exploração, concentração do poder político, econômico e da terra. Canudos não cabia nem no antigo regime oligárquico, tampouco nesse novo ideal republicano civilizado e urbano de elites. Quando o jovem jornalista Euclides foi ao Arraial de Canudos, o moribundo ideal republicano pelo qual havia se entregado com dedicação e entusiasmo jazia sob a cova rasa de homens, mulheres e crianças trucidados impiedosamente pelas forças armadas republicanas. Contemporâneo de Machado de Assis logo percebeu a miséria do jornalismo que estigmatizava o sertanejo, a pobreza e o Conselheiro e criminalizava as suas reivindicações e modo de vida – tal qual João do Rio e Lima Barreto uma década depois. Mais de um século depois e após três décadas de democracia, ainda hoje ignoramos o “inimigo mais sério a combater” e, “a questão social” continua sendo “caso de polícia”.
Referencias
CARDOSO,
F. H., Autoritarismo e Democratização,
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
CUNHA,
Euclides, Os Sertões, acessado in: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000091.pdf
(em maio de 2015).
FAORO,
Raimundo, Os donos do poder: formação do
patronato brasileiro. 8ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1989.
FREIRE,
Gilberto. Casa grande e senzala, Brasília:
UnB, 1963.
[1] CARDOSO,
F. H., Autoritarismo e Democratização,
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
[2]http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1214:reportagens-materias&Itemid=39
[4] FREIRE,
Gilberto. Casa grande e senzala, Brasília:
UnB, 1963.
[5] FAORO,
Raimundo, Os donos do poder: formação do
patronato brasileiro. 8ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1989.
[6] Frase
atribuída ao ex-presidente e ex-governador de São Paulo Washington Luis.
http://observatoriodaimprensa.com.br/tv-em-questao/a-questao-social-como-caso-de-policia/
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