segunda-feira, 23 de abril de 2018

Educação e a miséria do mercado


Estou paulatinamente deixando de procurar emprego na educação. São muitas as razões, sobretudo a retração da oferta de vagas formais, achatamento dos salários, precarização das relações de trabalho, além da elevada concorrência de trabalhadores, conforme o sucateamento da educação - péssima formação combinada desvalorização da carreira docente. Não são recentes, porém, essas questões, há alguns anos pairam sobre a sociedade - não subestimo o interlocutor com explicações desnecessárias, não faltam informações a esse respeito.   

Faz 30 meses que estou desempregado - não sem trabalho. Desde então, todos os meses - até mais de uma vez ao mês - sou chamado a participar de processos seletivos. Conforme a minha formação, tenho amplas experiências e conhecimentos em educação, pesquisa, projetos sociais e movimentos populares. Por isso, estive em diversos processos seletivos, sobretudo, do Sistema S. 

Considerando minha formação, são poucas as oportunidades de trabalho na minha área, o mercado para sociólogos é bastante restrito, sobretudo, em decorrência da indefinição formal das suas competências e campo de atuação. A ausência de regulamentação do exercício da profissão, dentre outras razões, levam a essa marginalização no mercado, permitindo que profissionais de outras áreas disputem e ocupem espaços, assumindo funções que não são, necessariamente, da sua competência. Esse é o panorama em que se insere essa reflexão – “crise” do mercado (política e econômica), precarização sistemática do mundo do trabalho, ausência de regulação do exercício da profissão. 

Todavia, esses são os fatores exteriores e evidentes que incidem sobre os trabalhadores na atualidade e, em especial, sobre a minha profissão. Existem outros, porém, subjacentes que dissimulam características arraigadas na nossa sociedade, destaco duas delas; a cordialidade e a intolerância. A cordialidade é um conceito elaborado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. O senso comum, por sua vez, associa cordialidade à gentileza, afabilidade, doçura, simpatia. Entretanto, a cordialidade expressa a “razão” da emoção, caracterizando sujeitos movidos por paixões, afetos, motivações pessoais de ordem subjetiva. O indivíduo cordial é aquele que ignora e/ou desdenha a objetividade, impessoalidade, imparcialidade e a universalidade. Ele é o avesso do direito, da democracia e da ética. Por essa razão é contraditório - e deprimente -, constatar pessoas supostamente qualificadas, afirmarem ao mesmo tempo, tendências corporativas "modernas", e que a empresa ou a equipe funcionem como "uma família", ou seja, opera na ordem dos afetos e vínculos pessoais, nada a ver, portanto, com competências ou qualificações avaliadas de forma objetiva.

A intolerância, por sua vez, é intrínseca à cordialidade, posto que o homem cordial tem aversão ao desconhecido, ao estranho, ao outro. A sua racionalidade opera na lógica pessoal, o oposto da universalidade da democracia, da impessoalidade da ética, da imparcialidade da justiça e da objetividade do direito. O intolerante é um dogmático, repudia o diálogo, o debate e a dúvida – é inconcebível para ele quaisquer divergências, questionamentos, problematizações e a crítica, esta, no sentido estrito, ou seja, radical, que aprofunda e busca a raiz da questão. Conforme funcione na lógica das emoções, também tem pouco apreço pela ciência, posto que o método pressupõe a especulação, a pesquisa e a universalidade. 

A cordialidade e a intolerância, são as características latentes e arraigadas que marcam o mercado de trabalho na atualidade. Faz 30 meses que estou desempregado e, como disse, participando de inúmeras seleções, em diversas cidades e organizações, na educação, projetos sociais, ambientais, pesquisa, políticas públicas e organização comunitária. No entanto, essas características são anteriores, apenas mais acentuadas recentemente, conforme a onda reacionária avança sobre a sociedade. 

Na última seleção em que estive – Senac de São Paulo para atuar na Fundação CASA -, algumas coisas me chamaram a atenção, quais sejam: a presença maciça e acachapante de candidatos egressos ou vinculados a instituição, a cordialidade indisfarçável dos selecionadores com os candidatos da casa, a disparidade na formação dos candidatos – um sociólogo, uma assistente social, uma psicóloga, um engenheiro, um administrador de empresas e uma pedagoga -, indicando pouca objetividade no processo seletivo, a convocação de todos os candidatos que estiveram na “dinâmica de grupo” para a próxima etapa - “aula teste” e entrevista. Não sou selecionador, mas, a despeito da minha longa experiência na educação e da adquirida em diversos processos seletivos, me parece suspeito que pessoas que “travem” durante a dinâmica, chorem, exponham argumentos, ou melhor, opiniões equivocadas, contraditórias e até preconceituosas sejam aprovadas para participar de outra etapa da seleção.  Nesse processo, um candidato admitiu que não tinha perfil para a função, outra tentou problematizar e aprofundar uma questão, perdeu-se no raciocínio, travou e terminou aos prantos. Isto, porém, não é tudo, conforme a vaga fosse para “docente de desenvolvimento social”, a pérola veio da pedagoga, afirmando que o problema dos adolescentes pobres cumprindo MSE em meio fechado é “falta de amor em casa”, que “muitos não conhecem carinho”, por isso "são violentos, agressivos, marginais." Enfim, para essa educadora, com diversas passagens pelo Senac e experiências na Fundação CASA de Osasco, Guarulhos, São Paulo e Franco da Rocha, a questão não é pública, é assunto privado – de família -, não é de direito, mas, de ordem afetiva, não é política ou técnica, antes de caráter moral, posto que basta aos indivíduos "amarem-se uns aos outros." Trata-se de um procedimento perverso de punição da pobreza e responsabilização exclusiva da família e do indivíduo, a despeito das responsabilidades públicas e sociais, pela condição precária da qual são vítimas.

Em um dado momento da atividade, um tanto entorpecido, lembrei que o “combate a pobreza e as desigualdades sociais”, por exemplo, são questões políticas e sociais, não da esfera individual ou privada, posto que consta dos Princípios Fundamentais da Carta de 88 – silêncio absoluto, olhares de espanto e reprovação, seria eu “o comunista”, em meio aos liberais ignorantes que desconhecem ou desprezam o postulado básico do liberalismo, o Estado de Direito? Enfim, esses foram alguns alguns dos aprovados na dinâmica, convidados para a próxima etapa – aula-teste e entrevista.É bom que se diga, os selecionadores não eram da área de RH, eram o coordenador da área de desenvolvimento social e a coordenadora pedagógica, portanto, pessoas da área educacional e projetos sociais. 

Até aí, a cordialidade prevalecia, a despeito da intolerância mais ou menos dissimulada, conforme problematiza-se e se questionam contradições e equívocos em algumas falas, durante as atividades propostas. No dia da aula-teste e entrevista, porém, chega a hora da intolerância mostrar-se sem retoques. Conforme havia indicado, na fase anterior, todas as questões relacionadas ao cumprimento das MSE, educação e desenvolvimento social, abordava-as à partir da dimensão institucional – ECA, LDB, PCNs, Lei da Aprendizagem –, técnica – pedagogia crítica - e da primazia dos Direitos Sociais e Humanos que consagram a nossa Carta Democrática, afinal, são questões públicas, políticas e sociais. 

As aulas-testes são um espetáculo à parte. Duas características chamam a atenção: a pirotecnia disposta em parafernália tecnológica apropriada para entreter e distrair, e o adestramento para o mercado de trabalho sem qualquer estímulo ao senso crítico, na perspectiva da autorresponsabilização e autoajuda. Além disso, chega a ser constrangedor – para dizer o mínimo -, o mal-estar indisfarçável dos selecionadores quando se coloca a questão fora dessa ordem, ou seja, na perspectiva POLÍTICA, SOCIAL E DE DIREITOS. Em um dado momento da seleção, lembrei que os objetivos da educação, dentre eles, a profissionalização consta da LDB e são direitos dos adolescentes, portanto, a apropriação, valorização e defesa dos seus direitos, bem como o fortalecimento da democracia, passam pela promoção e o conhecimento desses direitos – percebi na hora que a questão é outra, direitos é extravagância, alegoria, luxo, retórica vazia para demagogos oportunistas. 

Para finalizar, tudo muito bem enfeitado com trechos e citações de autores consagrados na educação, ciências sociais, psicologia, filosofia, como Paulo Freire, Jean Piaget, Erich Fromm, Pierre Bourdieu. Seria cômico, se não fosse trágico, constatar o nível exorbitante de cinismo, oportunismo e demagogia com que se utilizam, da obra e nome desses grandes intelectuais, como grife e/ou pedigree para ornamentar projetos indigentes, cujo único objetivo é justificar elevados “custos” e proceder a formação o mais superficial e subserviente ao mercado possível. É nauseante observar como descolam, deliberadamente, a obra e o nome desses autores da sua biografia. 
Paulo Freire foi um intelectual-militante popular e socialista, dedicou sua vida e obra as questões populares e sociais do seu tempo, sua obra articula educação e política, foi ainda um quadro político de esquerda e fundador do PT. Erich Fromm foi um dos grandes psicanalistas e filósofos da Escola de Frankfurt, capaz de articular marxismo com psicanálise, foi ainda membro do círculo comunista alemão ao lado de Wilhelm Reich e um dos grandes estudiosos e combatentes do nazi-fascismo. Bourdieu foi um sociólogo francês estruturalista, em “O poder simbólico”, analisa as produções simbólicas como instrumentos de dominação, destacando os aspectos políticos dos sistemas simbólicos, afirma que a classe dominante impõe a legitimidade da sua dominação através de instrumentos como a arte e a educação. 

Enfim, durante o processo, muitas contradições vieram à tona, muitas críticas à boca, sentimento profundo de indignação, revolta, asco. Engoli tudo – ou quase -; lembrei apenas que muitos dos citados não eram meros intelectuais de gabinete, todos foram homens públicos e comprometidos com as causas populares e sociais de seu tempo. Se a desonestidade fizesse concessão ao pudor, se envergonhariam de citar esses grandes homens, militantes, intelectuais! Cansado de tanta farsa, dissimulação, encenação, oportunismo, desonestidade. Exausto do mercado e de tanta mediocridade. Não procuro mais emprego no Sistema S, não quero mais participar dessas farsas de processos seletivos e projetos, porque isso é uma afronta e um golpe baixo à educação.







   

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