O último dia que estive em uma boca eu passei umas duas horas - em
Santos (PCC). Tinha ido acompanhar um amigo a pagar uma dívida do dia
anterior. Havia 6 caras - dois vendedores, dois seguranças, o patrão e
outro olheiro. Chegamos, explicamos a situação e ficamos esperando o
cobrador. O patrão chamou o cara no zap, mas, explicou que ele estava
desligado, talvez demorasse, se quiséssemos esperar que esperássemos.
Esperamos. Nessas situações, paira sempre uma tensão no ar - medo,
ansiedade, espanto, frustração. Não sei se porque já vivi muito, não
fico assim nem uma coisa nem outra, me concentro mais nos meus sentidos e
consigo perceber quase tudo à minha volta.
O patrão é um cara que
sobrevive lá há 8 anos - lembro dele da primeira vez que lá estive. Ele
também me reconhece, mas, eu não desperto interesse algum da parte dele.
Já me acostumei com a combinação de deslumbramento e arrogância - da
parte dos novatos -; e a altivez mesclada com indiferença dos veteranos e chefes.
Interessante é como nessas situações, evitar o contato visual é regra -
uma das principais de sobrevivência. Ninguém se encara ou olha nos olhos
- só espreita ou passa o olho muito discretamente. Apesar disso, a
autoafirmação entre todos também é regra, via provocações, brincadeiras
agressivas, piadas ofensivas, etc. Os donos do pedaço, senhores da vida
e da morte na comunidade, parecem os meninos da 6ª série - imaturos,
cheios de testosterona, ignorantes, desafiadores, porém, nada
inofensivos. Não vi arma alguma, mas, todos sabem que elas estão ali ao
alcance da mão.
Havia um mais velho, mais ou menos da minha idade - o
patrão é mais novo e todos os outros não ultrapassam os 25. Percebi na
hora que esse mais velho era o mais sóbrio, maduro, arisco, sinistro.
Olhei pra ele assim que cheguei e acenei com a cabeça, ele retribuiu só
com os olhos. Depois, evitava cruzar o olhar com ele e percebi que ele
me olhava de soslaio, entre curioso e desconfiado. Quase não falava, e
quando o fazia era pra reclamar e/ou esculachar alguém. Tava na cara que
já estava nessa vida há um tempo, e devia estar cansado dessa porra de
vida! Tava na cara ainda que diante dessa situação, era o mais perigoso
de todos, disposto e capaz de tudo. O patrão parecia entediado, tentava
se distrair com o celular, com os outros, jogando conversa fora, falando
ou fazendo piadas sem muito sentido. As vezes me olhava, mas, eu sou do
tipo que só o dinheiro interessa. Havia um outro rapaz, vendedor, cerca de 20
anos, talvez menos, só fumava maconha, ria e cantava uns funks
horrorosos - naquelas poucas horas ouvi um que mandava a mina "sentar na
Glock" e outro no "38". Na boa, o fetiche pelo estupro só não é maior
que pelas armas.
Os demais eram tudo de rua, como 90% - ou mais - da
clientela da boca. A boca emprega, por assim dizer, alguns dos
dependentes químicos moradores de rua. Na verdade, moradores de rua,
significa que são pessoas que sobrevivem no entorno da boca, numa
cracolândia que tem ali mesmo na comunidade - uma favela de barracas de
plástico, restos e papelão. Na comunidade, o tráfico integra as pessoas
ao mesmo tempo que as distingue - todos são moradores, mas, nem todos
são do tráfico. O tráfico confere status, respeito, temor. Para uns, os
caras são como celebridades da favela, pra outros, como os
administradores, juízes de paz, mediadores de conflitos, seguranças,
etc. Todos se conhecem e se respeitam ou toleram - igual aquele cão de
rua que todos "cuidam" e desprezam. Até mesmo os moradores de rua são
incorporados - os que são funcionários do tráfico mais que os reles
dependentes.
É notável ainda, como a cordialidade atravessa a lógica
"corporativa" do tráfico. Entre os funcionários, muitas coisas
distinguem os da comunidade dos moradores de rua - dependentes químicos.
Por exemplo: os jovens da comunidade são vendedores e seguranças,
enquanto que os da rua são sempre aviões ou no máximo olheiros. Os
meninos da comunidade, estão sempre mais ou menos apresentáveis, porque
são conhecidos e/ou parentes de moradores. Os da rua estão sempre
descalços, sujos, descabelados, maltrapilhos, idênticos aos demais
moradores de rua dependentes químicos que sustentam o tráfico 24 horas
por dia, 7 dias por semana. Sim, os escravos do vício e do tráfico são -
quase todos - negros, e andam descalços como os seus antepassados. O
assédio dos patrões e superiores na hierarquia, é idêntico ao que se
constata em qualquer empresa - o Tráfico S.A. em tudo reproduz a
cordialidade brasileira, a hierarquia e a burocracia personalizadas do
lado de cá.
Uma moradora passou e cumprimentou o patrão, perguntou se
ele iria na festa na casa dela a noite. Ele disse que sim, ela desafiou:
"quero ver"! Ele agradeceu e assegurou que sim. Um morador de rua
trouxe um pacote de meio quilo de café - o traficante perguntou se ele
conseguiria fraldas (disse até a marca e o tamanho). Outro trouxe um
celular, outro aparelhos de barbear caros. Uma jovem famélica suportou
insultos e humilhações por causa de um real - pra levar uma pedra de 5. A
senhora do café da associação de moradores passou, cumprimentou, parou e
pegou uma quantia de dinheiro - minutos antes fez cara de desgosto
quando eu pedi para beber agua. Deu pra notar que por me ver na boca, me
julgou um cão vadio indigno da empatia daquela gente que "faz" pela
comunidade. Um fracassado que envergonha a espécie humana. A boca revela
as pessoas, o pior delas - a perversidade, a hipocrisia, a indiferença.
A boca é desumana - as relações são desumanas. É fácil desumanizar-se
num lugar em que a medida das pessoas são a sua utilidade,
subserviência, conformismo, mediocridade, indiferença, enfim,
desumanidade - qualquer semelhança com diversas outras corporações não é
mera coincidência, tudo são só negócios e lucro....
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