quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Impressões do tráfico.

O último dia que estive em uma boca eu passei umas duas horas - em Santos (PCC). Tinha ido acompanhar um amigo a pagar uma dívida do dia anterior. Havia 6 caras - dois vendedores, dois seguranças, o patrão e outro olheiro. Chegamos, explicamos a situação e ficamos esperando o cobrador. O patrão chamou o cara no zap, mas, explicou que ele estava desligado, talvez demorasse, se quiséssemos esperar que esperássemos. Esperamos. Nessas situações, paira sempre uma tensão no ar - medo, ansiedade, espanto, frustração. Não sei se porque já vivi muito, não fico assim nem uma coisa nem outra, me concentro mais nos meus sentidos e consigo perceber quase tudo à minha volta. 

O patrão é um cara que sobrevive lá há 8 anos - lembro dele da primeira vez que lá estive. Ele também me reconhece, mas, eu não desperto interesse algum da parte dele. Já me acostumei com a combinação de deslumbramento e arrogância - da parte dos novatos -; e a altivez mesclada com indiferença dos veteranos e chefes. Interessante é como nessas situações, evitar o contato visual é regra - uma das principais de sobrevivência. Ninguém se encara ou olha nos olhos - só espreita ou passa o olho muito discretamente. Apesar disso, a autoafirmação entre todos também é regra, via provocações, brincadeiras agressivas, piadas ofensivas, etc. Os donos do pedaço, senhores da vida e da morte na comunidade, parecem os meninos da 6ª série - imaturos, cheios de testosterona, ignorantes, desafiadores, porém, nada inofensivos. Não vi arma alguma, mas, todos sabem que elas estão ali ao alcance da mão. 

Havia um mais velho, mais ou menos da minha idade - o patrão é mais novo e todos os outros não ultrapassam os 25. Percebi na hora que esse mais velho era o mais sóbrio, maduro, arisco, sinistro. Olhei pra ele assim que cheguei e acenei com a cabeça, ele retribuiu só com os olhos. Depois, evitava cruzar o olhar com ele e percebi que ele me olhava de soslaio, entre curioso e desconfiado. Quase não falava, e quando o fazia era pra reclamar e/ou esculachar alguém. Tava na cara que já estava nessa vida há um tempo, e devia estar cansado dessa porra de vida! Tava na cara ainda que diante dessa situação, era o mais perigoso de todos, disposto e capaz de tudo. O patrão parecia entediado, tentava se distrair com o celular, com os outros, jogando conversa fora, falando ou fazendo piadas sem muito sentido. As vezes me olhava, mas, eu sou do tipo que só o dinheiro interessa. Havia um outro rapaz, vendedor, cerca de 20 anos, talvez menos, só fumava maconha, ria e cantava uns funks horrorosos - naquelas poucas horas ouvi um que mandava a mina "sentar na Glock" e outro no "38". Na boa, o fetiche pelo estupro só não é maior que pelas armas. 

Os demais eram tudo de rua, como 90% - ou mais - da clientela da boca. A boca emprega, por assim dizer, alguns dos dependentes químicos moradores de rua. Na verdade, moradores de rua, significa que são pessoas que sobrevivem no entorno da boca, numa cracolândia que tem ali mesmo na comunidade - uma favela de barracas de plástico, restos e papelão. Na comunidade, o tráfico integra as pessoas ao mesmo tempo que as distingue - todos são moradores, mas, nem todos são do tráfico. O tráfico confere status, respeito, temor. Para uns, os caras são como celebridades da favela, pra outros, como os administradores, juízes de paz, mediadores de conflitos, seguranças, etc. Todos se conhecem e se respeitam ou toleram - igual aquele cão de rua que todos "cuidam" e desprezam. Até mesmo os moradores de rua são incorporados - os que são funcionários do tráfico mais que os reles dependentes. 

É notável ainda, como a cordialidade atravessa a lógica "corporativa" do tráfico. Entre os funcionários, muitas coisas distinguem os da comunidade dos moradores de rua - dependentes químicos. Por exemplo: os jovens da comunidade são vendedores e seguranças, enquanto que os da rua são sempre aviões ou no máximo olheiros. Os meninos da comunidade, estão sempre mais ou menos apresentáveis, porque são conhecidos e/ou parentes de moradores. Os da rua estão sempre descalços, sujos, descabelados, maltrapilhos, idênticos aos demais moradores de rua dependentes químicos que sustentam o tráfico 24 horas por dia, 7 dias por semana. Sim, os escravos do vício e do tráfico são - quase todos - negros, e andam descalços como os seus antepassados. O assédio dos patrões e superiores na hierarquia, é idêntico ao que se constata em qualquer empresa - o Tráfico S.A. em tudo reproduz a cordialidade brasileira, a hierarquia e a burocracia personalizadas do lado de cá. 


Uma moradora passou e cumprimentou o patrão, perguntou se ele iria na festa na casa dela a noite. Ele disse que sim, ela desafiou: "quero ver"! Ele agradeceu e assegurou que sim. Um morador de rua trouxe um pacote de meio quilo de café - o traficante perguntou se ele conseguiria fraldas (disse até a marca e o tamanho). Outro trouxe um celular, outro aparelhos de barbear caros. Uma jovem famélica suportou insultos e humilhações por causa de um real - pra levar uma pedra de 5. A senhora do café da associação de moradores passou, cumprimentou, parou e pegou uma quantia de dinheiro - minutos antes fez cara de desgosto quando eu pedi para beber agua. Deu pra notar que por me ver na boca, me julgou um cão vadio indigno da empatia daquela gente que "faz" pela comunidade. Um fracassado que envergonha a espécie humana. A boca revela as pessoas, o pior delas - a perversidade, a hipocrisia, a indiferença. A boca é desumana - as relações são desumanas. É fácil desumanizar-se num lugar em que a medida das pessoas são a sua utilidade, subserviência, conformismo, mediocridade, indiferença, enfim, desumanidade - qualquer semelhança com diversas outras corporações não é mera coincidência, tudo são só negócios e lucro....

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