- (...) Vamos ao coronel... Quero
pedir-lhe que te recomende ao doutor Castro, deputado.
A citação acima é um trecho do livro “Recordações
do escrivão Isaias Caminha” do escritor Lima Barreto. Caminha é o jovem
interiorano simples, sonhador e deslumbrado com a atração da cidade grande, urbana,
cosmopolita, com o prestigio e poder resultantes do diploma de bacharel –
retrato sem retoques do país dos coronéis e dos bacharéis do poder. Sem
exageros, Lima Barreto foi um dos maiores cronistas de sua época, senão um dos
maiores do país. A sua obra resume o seu tempo – a sociedade, política, cultura
-, seu olhar aguçado atravessa o caráter que define a nossa gente e tradição,
ultrapassando o tempo, permanece tragicamente atual. Assim, a pena do
jornalista traz a profundidade critica da visão do sociólogo, antropólogo,
psicanalista e, sobretudo, a verve e a sensibilidade dos grandes artistas. Mais
de um século depois, guardadas as devidas transformações em extensão e escala,
o celebrado “país de todos” é ainda o dos Castros, Loberants e Caminhas
retratados por Lima Barreto. E os coronéis ainda existem, ainda que de outro tipo, adaptados aos novos tempos e circunstancias, de modo a perpetuar as relações de poder senhoriais ou "cordiais"que caracterizam a nossa sociedade.
O Pronatec é mais um dos programas do governo federal gestados no departamento de marketing da Secom. De acordo com
as exigências midiáticas, tem o pomposo nome de Programa Nacional de Acesso ao
Ensino Técnico e Emprego. É, em tese, a porta de saída do Bolsa Família - ou a
vara de pescar dos reacionários. O programa resulta de lei federal (12.513/11)
- tudo na democracia normativa brasileira deve ter força de lei e ser tutelado pelo
Judiciário - e da articulação entre o Ministério do Trabalho e o da Educação voltado
para a qualificação e inserção de beneficiários de programas sociais federais
no ensino profissional e mercado de trabalho.
Conheci-o efetivamente no nordeste (RN),
região que - por diversas razões, sobretudo, socioeconômicas - tem concentrado
a maior parcela das políticas sociais do governo - Pronatec, Bolsa Família,
Mais Médicos, Crack é possível vencer, Juventude Viva, PETI, Projovem, ATER,
entre outros. Do ponto de vista objetivo, consiste no repasse de verbas
publicas para a iniciativa privada - ONG's, Sistema S, OSs, OSCIPs, Fundações,
Universidades publicas e privadas, escolas técnicas. São essas entidades nos
municípios conveniados as responsáveis pela execução do programa. Grosso modo,
quem administra o programa no município é a Prefeitura, na medida em que é ela
quem encaminha os beneficiários dos programas sociais do governo federal e
divulga os programas na cidade. A seleção dos técnicos - coordenadores dos
cursos, técnicos sociais, docentes, oficineiros - é de responsabilidade da
entidade "ancora" do programa no município - aquela teoricamente com
mais "experiência" ou "competência" para desenvolve-lo em
todas as suas interfaces na cidades e que atende as exigências técnicas e
legais do programa - curioso como quase sempre são entidades com alguma ligação
política direta ou indireta. Alem disso é ela que realiza o diagnostico
produtivo, socioeconômico e organizativo da localidade de modo a orientar os
cursos de acordo com o potencial e demandas econômicas.
Não fosse a realidade determinada por
interesses privados - econômicos e políticos -, relações de poder pessoais,
complexa, dinâmica e contraditória, do ponto de vista ideal e teórico trata-se
de um projeto ousado, inovador e irretocável! Porem como a realidade se impõe,
na pratica o que vemos são pesquisas de fachada e infundadas, sem
correspondência alguma com a dinâmica produtiva local, o perfil do publico alvo
e as demandas da cidade - por insumos ou serviços. Oferta de oportunidades
tanto para a contratação de técnicos quanto para a seleção de beneficiários
feita de acordo com conchavos, troca de favores e interesses privados -
distribuição de cargos e vagas para apaniguados ou aliados a despeito das
formalidades, necessidade ou critérios técnicos. O esquema que faz da maquina
"balcão de negócios" passa pela conivência ou cumplicidade de
técnicos tanto quanto pela adesão da sociedade conforme as exigências de
necessidade, lucro ou acomodação as estruturas de poder político, cujo único
objetivo é a manutenção e perpetuação ad
infinitum. O esquema envolve a seleção de famílias indicadas por
vereadores, cabos eleitorais, lideranças sociais, caciques políticos,
funcionários públicos a despeito da necessidade e perfil socioeconômico das
demais, atestadas por laudos feitos sob encomenda por técnicos corruptos ou coniventes
com a farsa. Embora conste de edital publico, com requisitos e exigências
técnicas, entidade externa contratada para esse fim, a seleção dos técnicos
para o trabalho é divulgada apenas no site do governo federal ou do município -
sem obrigatoriedade -, restringindo-se muitas vezes ao circulo interno da
administração. Assim não causa espanto que a despeito da “concorrência”, da ‘imparcialidade”
e das "rigorosas exigências técnicas" ao final sejam selecionados o
marido da Secretaria Municipal de Assistência Social - ele também secretário
municipal -, o irmão do Chefe de Gabinete, o pai do Assessor do Prefeito, a
sobrinha do Secretario Adjunto, o primo do Vereador ou o cabo eleitoral do
deputado. Os resultados são o aproveitamento pífio, turmas desmotivadas,
frustração, elevada evasão e inexpressiva inserção dos
"beneficiários" no mercado de trabalho formal. Nada que a propaganda
e as peças publicitárias desenvolvidas nos departamentos de marketing não
possam compensar nas diversas mídias em termos de capital político e social.
Em 2003 passei seis meses como aluno
ouvinte na pós da faculdade de Psicologia Social da PUC de SP, frequentando
duas disciplinas por semana de um dos diversos Núcleos de Pesquisa da casa como
postulante ao mestrado. Assim, desenvolvi projeto de pesquisa, participei de
seminários, palestras, debates, grupos de estudos entre outras atividades do
núcleo. Conheci durante esse período toda a bibliografia e o processo seletivo,
conversei com colegas recém introduzidos no mestrado e doutorandos que me
ajudaram a me preparar – tanto o projeto de pesquisa quanto para a seleção. Nesse
processo, diante do espetáculo deprimente da bajulação em cima dos mestres e ferocidade
da disputa por um orientador – para aqueles que já não os tinham desde a
graduação -, ao final participei da seleção – aprovado o projeto e nas duas
avaliações (teórica e idiomas), fui à entrevista sendo preterido por outros
candidatos, coincidentemente egressos da casa e de outras unidades da PUC (MG,
Campinas, Porto Alegre, RJ).
Durante a minha graduação, chamava a
atenção duas coisas com relação ao corpo docente: o fato de muitos estarem
mestrando ou doutorando na USP e serem egressos da casa e, que ao final do
doutorado se transferiam pra lá como docentes. Era famosa a estória de que a
Escola de Sociologia e Política fosse espécie de estagio docente dos aspirantes
a USP ou trampolim para a Casa Grande da Sociologia – FFLCH/USP. Foi assim com
Ângela, Fernando, Ronaldo, Julio, Iris, Marta, entre outros. Assim foi com
alguns estudantes também, próximos desses docentes a sua época de ostracismo e
estágio no purgatório - network é o nome atual para a cordialidade de outrora. Hoje
são mestres e doutores. A (re) produção acadêmica também é criteriosa, objetiva,
imparcial, impessoal, rigorosamente comprometida com o saber, a ética e a
sociedade. Tudo é pessoal, de cima a baixo, aos amigos tudo, aos outros a
frieza e o rigor da lei e da burocracia. Todavia o importante é não generalizar
e nem desanimar! Antes cumpre celebrar o triunfo do individuo que supera isso
ou resiste, o grande exemplo de que é possível impor o mérito e os critérios impessoais
ao favor, a graça e a amizade. Não sei o que é pior.
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