quinta-feira, 13 de março de 2014

Trabalho, educação e mercado.

Antes de tudo, devo esclarecer que não sou especialista e nem estatístico – embora tenha algumas experiências de trabalho em políticas de geração de trabalho e renda e desenvolvimento local -, portanto, não vou ficar falando de “números” - estatísticas e indicadores - até porque tenho reservas com relação aos dados disponíveis no Brasil. Explico-me: quando se trata de falar sobre emprego, por exemplo, os indicadores disponíveis são o CAGED (Cadastro Geral de Emprego e Desemprego), a RAIS e a PED/PME – DIEESE, IBGE. O primeiro quantifica as empresas que disponibilizam informações sobre o mercado formal (Consolidação das Leis do Trabalho - 1934), a RAIS (Relatório Anual de Informações Sociais) contempla também informações sobre o serviço publico e a PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego) e PME (Pesquisa Mensal de Emprego), pesquisas mensais e domiciliares, quantificam o numero de pessoas da população em idade ativa que está empregada e desempregada. Assim, conforme a informação que se busca adquirir e/ou o dado que se pretende estudar, podem-se utilizar esses indicadores. Desnecessário dizer que podem ser utilizadas também conforme a conveniência, quando se trata de divulgar ou omitir informações a respeito desse assunto. Por esses motivos prefiro me abster de ficar falando sobre números, contudo, penso que de todas, as que mais se aproximam da realidade são a PED e a PME - porque emprego também é diferente de trabalho.

Meu objetivo aqui é o de propor uma reflexão sobre a relação entre educação e trabalho. Para começar, podemos nos perguntar sobre os sentidos que essas palavras – educação e trabalho - têm em nossa sociedade a despeito das significações conceituais e institucionais – aqui me refiro à definição formal. Para responder essa questão, de uma maneira minimamente satisfatória, penso que antes de qualquer coisa temos que distinguir trabalho de emprego e trabalho de labor. Em uma palavra: quem tem trabalho, necessariamente, não tem emprego. Grosso modo, empregado é aquele sujeito que está vinculado a alguma empresa, portanto, possui vinculo empregatício remunerado garantido legalmente por meio de contrato estabelecido com um empregador - pessoa jurídica. 

O trabalho é uma característica humana, apenas o homem é capaz de dominar e transformar a natureza por meio do trabalho. Alguns poderiam objetar, mas e as abelhas, aranhas, castores, entre outros animais, também não transformam a natureza? Para ficar em apenas um exemplo, Marx no Capital, evidencia a relevância que o trabalho tem no processo de constituição do homem, na sua relação com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo. Assim, no trabalho o homem se reconhece e se constitui como tal, como ser social, consciente, criativo e reflexivo; diferente do animal que é apenas instinto-atividade. “Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça antes de construí-lo em cera.” 

Para fazer a distinção entre trabalho e labor precisamos voltar à Grécia antiga. Para eles, trabalho é toda atividade intelectual produtiva, cujo fim não se encontra em si mesmo e nem para o mero beneficio do seu produtor. O labor, por sua vez, era a atividade dos escravos e dos servos. Este seria uma atividade contínua e sem fim. Xenofonte afirma que os "ofícios artesanais gozavam de grande descrédito, o que lhe parecia muito natural, pois obrigavam os artesãos a levarem uma vida reclusa, sentados na penumbra do seu ateliê, devendo às vezes passar o dia inteiro isolado junto ao fogo. Tudo isso produziu um efeito nefasto, pois, considerando a demanda destas artes mecânicas inferiores, o tempo daqueles que se dedicam a elas não lhes deixa nenhum momento de ócio para poder consagrar à amizade ou o Estado. O resultado final que estas atividades produziam naqueles que as cultivavam era enfraquecer o corpo e avaliar a alma”.

Por outro lado, na concepção grega clássica, o trabalho tem ligação com a liberdade, enquanto que o labor tem ligação com a necessidade. Nessa perspectiva o trabalho, portanto, era publico e o labor privado. Diante dessa distinção, vejo um quadro pouco favorável ao trabalho nos dias de hoje - no sentido que acabo de mencionar -, na medida em que a agenda neoliberal e a Globalização nos impõem, "novos arranjos produtivos", “novas” relações de trabalho. Nesse processo, ao trabalho corresponde o mercado: indefinível, inatingível e infalível. Onipresente, onipotente, onisciente! O mercado subordinou o trabalho, subverteu-o. O “bendito” mercado, que apresentava-se como a solução para todos os problemas, sobretudo os sociais e econômicos, tornou-se ele próprio no grande problema, na medida em que promove a concorrência aberta e desmedida, deteriorando as relações de produção e sociais, corroendo os laços de solidariedade que devem prevalecer na sociedade. A desumanização do trabalho hoje vai além da precarização das relações e condições de trabalho, consiste na própria competitividade entre os empregos, como ocorre entre as empresas. Na verdade, penso que ele é contra o trabalho, porque tornou-se um fim em si mesmo. O “mercado” não precisa de trabalhadores, precisa de laboradores. 

A expansão do ensino técnico e “superior” é um indicio da insanidade desse mercado. Essa expansão desenfreada tem menos a ver com a universalização da educação do que com os interesses e necessidades do mercado, bem como a maior inserção das mulheres no referido com as lutas feministas. As incontáveis instituições – fábricas de diplomas - que surgem diariamente servem a esse fim. Surgem para servir ao mercado, para formar pessoas adestradas para atender as suas exigências, portanto, nada a ver com o trabalho na sua concepção clássica. Assim, a educação tornou-se um “meio” – para alcançar melhores postos no mercado ou posições na sociedade -, quando deveria ser um “fim” – para atender as aspirações e necessidades  da sociedade e não apenas do mercado de trabalho e do indivíduo. É nesse sentido que o trabalho, confundido com labor, concorre para a falência das relações humanas. Penso que urge acabarmos com o “mito” do trabalho em si, como instrumento de emancipação e humanização do homem. Esse sofisma serve para mascarar os interesses perversos do capital e atender ao dito mercado. O trabalho, o labor, a produção é parte da vida e não toda a vida! 

A tese da "humanização" pelo trabalho corresponde as “casas de trabalho” que dilapidavam os corpos e as consciências dos infelizes ingleses nos séculos XVIII e XIX, expulsos do campo e jogados a própria sorte nas cidades. Essas casas revestidas pela lógica cristã de caridade, exaltava os valores do trabalho e os impunha ao homem para o evidente beneficio do capital e não do trabalhador. “Pessoas que estão fora da sociedade, pessoas que não pautam suas existências pelos valores constitutivos da vida social – o trabalho, a propriedade e a razão -, tem como único meio de sobrevivência atacar essa organização exterior a elas.” (...) “Deles - dos vagabundos e miseráveis - cuidava a caridade pública e privada, que também acudia a privação causada pelo desemprego temporário do trabalhador. É bem verdade que os métodos de persuasão estavam muito longe de qualquer suavidade: as Casas de Trabalho (Workhouses) deviam ser lugares pouco atraentes para que seus ocupantes procurassem sair de lá o mais rápido possível.” (...) Trata-se, portanto, de uma instituição destinada a introduzir (ou reintroduzir) seres não moralizados à sociedade do trabalho.” Aqui se percebe a falta de clareza dos limites que se estabelecia entre desempregados pobres e vagabundos, também entre uma política de combate ao desemprego e estimulo ao trabalho e a caridade pura e simples (filantropia). Nesse contexto, ficam patentes os valores sob os quais estavam se assentando essa nova sociedade. Esta é uma sociedade que se institui sobre o pressuposto da "positividade" do trabalho. Afinal, são John Locke e Adam Smith que desfazem a imagem negativa do trabalho como patrimônio da pobreza, como fardo exclusivo dos que não possuem propriedade e o definem como fonte de toda a atividade criadora e da riqueza.

Locke se apoia nos pressupostos do "individualismo puritano" que considerava a pobreza uma demonstração de deficiência moral, os pobres mereciam ajuda, mas essa era dada de uma posição moral superior - qualquer semelhança com a visão de algumas ONG's no Brasil atualmente não é mera coincidência. A Revolução Industrial e o capitalismo não deixaram alternativas e exigiram uma nova ética e uma nova visão de mundo, colocando o trabalho como o valor supremo do homem. Weber vai chamar atenção para isso na “Ética protestante e o espírito do capitalismo”. É essa perversa racionalidade que hoje condena muitos ao desespero, perturbando as suas consciências permanentemente, reduzindo o homem ao seu oficio. É essa mesma racionalidade que também os arrasta para a exclusão, porque quem não tem trabalho também não tem lugar nessa sociedade. Basta lembrarmo-nos da Lei das Contravenções Penais (Decreto Lei 3.688 de 1941) Artigo 59.  Embora tenha poucos efeitos práticos, diz muito a respeito do que determinada sociedade pensa sobre determinadas pessoas e/ou tipos de comportamentos, na medida em que as aceita ou não, quando muito tolera-se mais ou menos. Assim, penso que esses não são valores “humanos”, são valores do capital, portanto, não podem servir para estabelecer laços de solidariedade entre os homens. 

Durkheim vai chamar essa solidariedade, a resultante da divisão do trabalho de orgânica e, a solidariedade resultante do homem, apenas enquanto compartilha da espécie humana e das suas condições de existência, de solidariedade mecânica. Na primeira ele é solidário por motivos exteriores, portanto, não havendo coação acaba a solidariedade. Talvez sejam por esses motivos que atualmente as iniciativas de responsabilidade social empresarial, desenvolvimento local sustentável, economia solidária, entre outras, proliferem como alternativas compensatórias às praticas impostas à sociedade pela agenda global neoliberal. Talvez isso seja ainda um indicio do esgotamento desse modelo econômico e de organização da sociedade. Assim, é o trabalho tal qual ele se apresenta hoje e quer o mercado, humaniza ou dignifica o homem? 



Referencias


BRESCIANI, Maria Stela – Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza.
DURKHEIM, Émile, A Divisão Social do Trabalho, São Paulo: Nova Cultural, 1999.
________________, in: Um toque de clássicos, (org.) QUINTANEIRO, Tânia, Belo Horizonte: UFMG, 1996.
MARX, Karl – O Capital, Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural ,1974.
PAIVA, Jorge, A revolução na Pós-Modernidade: A subjetividade e a nova civilização (Ler Ricardo Antunes, Robert Kurz, Domenico De Masi, Rubem Alves) Fortaleza: Editora Sem Fronteiras, 1996.
PRÉ-SOCRÁTICOS, Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 2000.

WEBER, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Pioneira, 1999.

Nenhum comentário:

Postar um comentário