domingo, 5 de junho de 2011

Duas mortes


O mais novo levou dezenas de tiros. Na cabeça, no rosto, no corpo todo. Tiros de 45. Dizem que ainda passaram com o carro por cima do seu cadáver. Ele tinha 18 anos e uns dez assassinatos nas costas – ou mais. Não consta que houvesse troca de tiros nessas mortes. Algumas aconteceram no bairro e todos sabem como ocorreram – a sangue frio, sem chances de defesa e por motivos fúteis. Foi nessa época que começaram a surgir os jovens sanguinários pelo bairro. Aquilo que se conhece no mundo do crime como “bicho solto.” Ele foi um dos piores. Até essa época, meados dos anos 80 e inicio dos 90 não me consta que existissem deles no bairro. Causava mais terror ainda porque era novo, tinha cara de menino e era baixinho – nem um metro e sessenta, um pouco menos. Foi assassinado pela policia de forma sumaria logo após sair da FEBEM e completar 18 anos. Consta que estivesse na porta de casa quando um carro sem placas passou, parou e o levou. Horas depois seu corpo foi encontrado em um terreno baldio próximo. Eu conheço o irmão dele. Ele estudou com o meu. Ele mesmo jogava bola comigo quando criança. Talvez tivesse futuro, era um bom centroavante. Começou cedo no mundo das drogas e logo se tornou bandido. Andava sempre armado e quando cheirava estranhava todo mundo. Matou conhecidos e desconhecidos por nada, sob efeito da cocaína. Sem duvidas não viveria muito tempo.

Até hoje não sei porque não me matou. Um pouco antes dele se tornar essa “besta fera” eu briguei com ele. Dei uns socos nele numa briga à toa, por causa de uma garota que nem conhecia e um rapaz que nem era meu amigo – era primo de um. Muitos não tem a mesma sorte que eu e morrem assim. Soube que ele queria me pegar como os outros. Encontrei com ele uma vez e nos vimos, gelei; olhei pra ele e fiquei na minha. Estávamos a cinco metros de distancia no máximo e ele me olhou e não me encarou, só me olhou indiferente, embora me reconhecesse. Até hoje não entendo isso, mas, naquele dia, embora me dissessem que estivesse cheirado e armado parecia-me em paz. Dias depois morreu.

O outro era cearense. Chegou ao bairro no fim da infância e cresceu lá. Brigou com todo mundo, inclusive comigo - nossa briga não terminou, fomos separados antes. Ele brigava todo dia e por qualquer motivo. Como o outro também era muito bom de bola - jogava bem no ataque. Até o dia da morte ainda preservava o sotaque. Um pouco mais velho do que eu, começou também mais cedo no mundo das drogas e logo virou bandido. "Bicho solto" também. Tinha sem duvidas mais de dez mortes nas costas. Seu apogeu foi à frustrada tentativa de roubo e sequestro de um dos filhos do Collor em 91 nos Jardins. Na troca de tiros matou um dos seus seguranças – que segundo consta era delegado ou ex da PF. Na época ele tinha de 17 para 18 anos. Foi baleado diversas vezes – não me lembro, mas, sei que levou mais de 3 tiros. Dizia que se fingiu de morto para não ser executado. Que ficaram passeando com a viatura para ter certeza que chegaria morto ao hospital. Deu entrada quase em óbito e quando saiu convalescente foi pra FEBEM no Tatuapé. Meu primo estava lá. Foi ele que "passou um pano" pro cearense que, embora tenha chegado com moral pelo crime, estava bem zoado pelos ferimentos. Nenhum dos seus familiares ia visitá-lo, tinham vergonha e não aceitavam. Assim, como minha mãe e tia iam, acabavam visitando-o e meu primo dividia tudo com ele. Por isso ele sentia-se eternamente em divida conosco e, penso que mais de uma vez inclusive intercedeu a meu favor. Ele era muito louco e sem noção. Meu primo conta que uma vez, na FEBEM, ele deu uma cantada em uma psicóloga – levou uma surra e foi parar na enfermaria. Todos os seus parceiros nesse crime encerraram a carreira nele. Um foi assassinado dias depois em casa com dezenas de tiros – consta que "resistiu" a voz de prisão deitado desarmado embaixo da cama. O outro coincidentemente também resistiu à voz de prisão e vegeta em uma cadeira de rodas até hoje. Ele após sair da FEBEM ainda sobreviveu por quase quatro anos nas ruas. Deu tempo ainda para roubar muito, usar muita droga e matar muitos outros até irem buscar ele em casa, conforme fizeram com o outro. Também foi torturado, não só fuzilado. Consta que foi espancado, estrangulado, queimado com pontas de cigarro e baleado no rosto, cabeça e peito com tiros de 45. Foi encontrado nu, amarrado e pendurado pelo pescoço em uma arvore. Em duas ocasiões em que estive encrencado ele me "passou um pano." Uma vez em que fui roubado, reagi e me espancaram ele me socorreu. A outra foi quando um “bicho solto” – nessa época surgiram vários no bairro -  da favela tentou assaltar meu primo e "quebramos" ele de porrada. Nessa ocasião o cara jurou me matar e eu falei com ele. Depois ele veio falar comigo e se desculpou. Esse subiu um pouco antes e também de forma violenta sem completar vinte anos.

No inicio do século 21 eles deram um tempo – os “bichos soltos.” Me parece que estão voltando, espero estar enganado, embora já não acompanhe esse mundo mais tão de perto. São outros, porem, piores. Não sou indiferente, só sei que o crime mudou e os caras que eu conhecia se foram. Os poucos que estão aí mudaram, deixaram essa vida, sobrevivem modestamente e/ou se adaptaram, aceitando essa nova ordem - ou se aceita ou morre. Os que estão aí hoje eu não conheço - nem quero conhecer. Até os "bichos soltos" de outrora eram mais humildes e de respeito! As historias de outros tempos se foram. Com elas o respeito, a paz, a humildade e a clareza. Hoje é o tempo do trafico e, quem vive a realidade do crime sabe o que isso significa para as comunidades. Muita coisa mudou - para a pior -, o Estado permanece o mesmo, distante, alheio, omisso, indiferente. Ambos partiram em 96.

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