Meus primeiros contatos com Assistentes Sociais começaram há
dezenove anos – 1992. Começaram como “usuário”, digamos assim, durante seis
meses de Liberdade Assistida. Chamava-se Noé e tinha cerca de 50 anos. Um tipo
caricato; oscilava entre a disposição severa e a brandura. Durante seis longos
meses esse foi o meu tormento. Quando não me lembrava um professor autoritário do fundamental que
parecia um padre. Antes de ir lá e bem depois ainda continuei pixando - serviu pra nada.
Depois desse contato, considero relevante o que tive com os
Assistentes Sociais da CDHU no Programa de Recuperação Socioambiental da Serra
do Mar em Cubatão – SP. Eles eram os responsáveis pelo atendimento social dos
moradores das comunidades invadidas pelo programa – porque o governo invade as
comunidades sem consultá-las. Eles, na verdade, eram elas – todas eram mulheres.
Eram, digamos assim, a face do programa nas comunidades. Representavam o
governo do Estado nessas comunidades como interlocutores dele no âmbito do
programa. Esse atendimento social consistia, grosso modo, no cadastramento das
famílias, informações e esclarecimentos de duvidas nos postos de atendimento,
mobilização e organização comunitária, coleta de dados e mapeamento das áreas.
Haviam duas equipes: a social e a de urbanismo. A primeira
compunha-se por 90% de Assistentes Sociais e os outros 10% de Sociólogos e
Psicólogos. A outra era predominantemente composta por Arquitetos e alguns Geógrafos.
Se não conhecesse os profissionais de Serviço Social, na ação cotidiana por meio dessas experiências, poderia pensar que se trata da mais ampla e humanista
formação das ciências humanas, conforme a abrangência do escopo de atuação – de
adolescentes infratores a dependentes químicos, vitimas de violência a famílias
em situação de remoção, passando por prisões, escolas e políticas públicas. No entenato, nem
uma coisa nem outra.
Qual a importância da II Guerra Mundial para uma formação na área
de humanas? Nenhuma, se não fosse o evento mais importante do século XX, de
importância capital para a compreensão da atual hegemonia ocidental e a
consolidação dos direitos humanos. Qual a importância da Historia? Nenhuma, se
não fosse pelo fato de que somente por meio dela pode-se compreender a dinâmica
da sociedade. E do domínio de conceitos da Ciência Política e da Filosofia –
Democracia, Cidadania, Justiça, Ética? Nenhum. Para trabalhar com o publico,
setor publico, comunidades, política publicas, educação, aprendi com elas que
na pratica do “trabalho social” basta apenas “comprar” o discurso padrão,
“empacotado” e pronto do mandatário do dia, venha de onde vier e repeti-lo ad nauseaum! Basta conhecer a
LOAS, SUAS, ECA e levantar uma barricada com elas para usá-las contra quem quer
que seja, inclusive aqueles que elas deveriam ser os beneficiários, protegidos e atendidos pelo cabedal institucional. E escrever?
Desenvolver um texto ou argumentação sobre qualquer assunto com coerência,
objetividade e profundidade? Bastam frases de efeito, clichês, chavões, tudo
rigorosamente impreciso, ambíguo, superficial e, óbvio, politicamente correto!
Demagogia, paternalismo e assistencialismo autoritário, absolutamente incompatível com a
democracia e a cidadania, nada mais.
Como é possível trabalhar com organização comunitária e movimentos
sociais ou populares sem conhecer Ciência ou Filosofia Política? Como podemos
realizar um trabalho desses sem saber o que seja democracia ou cidadania? Como
realizá-lo sem conhecer os direitos – civis, sociais, políticos, humanos?
Alguns mal conheciam a LOAS e o ECA! O fato de não conhecerem absolutamente
nada sobre a II Guerra – sequer o ano que começou e terminou! – é relevante
porque se constata o total desinteresse que se tem pela Historia e a mediocridade
da formação.
Em 2009, em comemoração aos 70 anos do inicio da II Guerra,
resolvi fazer uma atividade com os presos para constatar que as assistentes
sociais do CDP em que trabalhava também ignoravam o fato! Para eles e muitos
advogados, pedagogos e psicólogos que conheci na minha trajetória é razoável
pensar, discutir e analisar as questões relativas aos direitos humanos,
violência, autoritarismo, democracia sem considerar o nazifascismo, o
Holocausto, a II Guerra e o surgimento da ONU.
As comunidades que habitam as encostas da Serra do Mar não são
homogêneas. A exclusão tornou-se um fenômeno complexo. Existem ocupações por
diversos motivos, algumas, paradoxalmente, excluem a miséria e a ausência de
moradia. Por outro lado, a despeito dos aclamados programas, investimentos e
direitos formalmente garantidos, o déficit habitacional e a negação ou violação de direitos ainda são uma realidade brutal.
Do ponto de vista objetivo, essas observações são relevantes no que diz
respeito às estratégias de mobilização e atendimento a essas comunidades. Como
é possível planejar o trabalho social sem conhecer as determinações políticas,
econômicas, e culturais em que se estabelecem relações sociais e de poder no
interior dessas comunidades? Como podemos considerar as estratégias de ação
e/ou políticas públicas de intervenção sem conhecer o contexto em que se
constroem as suas demandas, interesses e lutas? Como pensar qualquer ação
ignorando que o contexto seja heterogêneo, vulnerável e dinâmico? Simples,
conforme seus preconceitos e idiossincrasias desprezam-se os seus direitos e
considera-se deliberadamente que sejam todos miseráveis, ignorantes,
despolitizados, apáticos, carentes. Massa amorfa e homogênea sugestionável e
manipulável. Nada mais conveniente!
As estratégias para esse tipo de ação consistem no controle,
omissão ou negação deliberada de informações; repetição sistemática de mentiras
e meias verdades; produção e divulgação de informações desencontradas com o
propósito de causar e/ou criar fatos e confusão para desfocar a questão;
enfraquecimento e deslegitimação de lideranças, instituições e estratégias de
mobilização popular; ocupação dos espaços e equipamentos públicos; cooptação e
ou intimidação de lideranças formais ou informais; desqualificação e
criminalização de lideranças, instituições e estratégias de luta e resistência.
A combinação dessa estratégia com uma visão preconceituosa e
formação deficiente resulta no autoritarismo aberto, no desprezo manifesto pelo
outro e na indolência e servilismo profissionais. Para cumprir com esses objetivos,
exclui-se a ética de todas as relações – sociais e profissionais. A mentira, a
desonestidade, a empulhação, a ignorância e o escárnio são considerados
ferramentas ou técnicas, como outras quaisquer no trato cotidiano com as
pessoas dessas comunidades. A lógica é a seguinte: conforme sejam moradores em
áreas consideradas de ocupação irregular ou ilegal, exclui-se ou negam-se
arbitrariamente os seus direitos de cidadania. À negação da cidadania consiste
em um processo sistemático que passa pela restrição do acesso a informação e
aos canais institucionais.
A dinâmica das relações cotidianas caracteriza-se por padrões
orientados por regras não formais. Essas regras resultam de tradições, preconceitos
e idiossincrasias e escapam aos controles formais e técnicas. No cotidiano,
esse processo resulta em uma convivência forçada, caracterizada, via de regra,
pela desconfiança e desprezo mútuos. A posição daqueles que representam o poder
estatal e detêm o controle e o seu acesso determina relações assimétricas e
possibilita desvios e abusos. Desse modo corroem-se as possibilidades de uma
relação produtiva e positiva, pautada pela confiança, solidariedade, cooperação
e respeito mútuos, concorrendo para a baixa autoestima das pessoas dessas
comunidades, fechando o ciclo da exclusão com a desumanização perene dos
indivíduos.
Trata-se de um traço de notória orientação autoritária, incompatível
a democracia e a cidadania. De um lado, caracteriza-se pelo assistencialismo
tutelado que desqualifica, desmobiliza e aliena os indivíduos, de outro, pela
negação e violação de direitos e participação no processo político,
marginalizando-os e criminalizando as suas ações. Assim, esvazia-se o conteúdo
ideológico intrínseco da política reduzindo-a a mera prestação de serviços e
concessão paternalista de direitos. Tanto no presídio, quanto no trabalho
social comunitário foi o que eu vi, deliberadamente ou ingenuamente, sem
diminuição dos prejuízos causados a sociedade, aos indivíduos e a política. Que
fique claro: descrevo situações e contextos específicos e determinados
profissionais, portanto, não cabem generalizações.
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