terça-feira, 12 de julho de 2011

Segmentos Sociais II – Assistência e Serviços



Meus primeiros contatos com Assistentes Sociais começaram há dezenove anos – 1992. Começaram como “usuário”, digamos assim, durante seis meses de Liberdade Assistida. Chamava-se Noé e tinha cerca de 50 anos. Um tipo caricato; oscilava entre a disposição severa e a brandura. Durante seis longos meses esse foi o meu tormento. Quando não me lembrava um professor autoritário do fundamental que parecia um padre. Antes de ir lá e bem depois ainda continuei pixando - serviu pra nada.

Depois desse contato, considero relevante o que tive com os Assistentes Sociais da CDHU no Programa de Recuperação Socioambiental da Serra do Mar em Cubatão – SP. Eles eram os responsáveis pelo atendimento social dos moradores das comunidades invadidas pelo programa – porque o governo invade as comunidades sem consultá-las. Eles, na verdade, eram elas – todas eram mulheres. Eram, digamos assim, a face do programa nas comunidades. Representavam o governo do Estado nessas comunidades como interlocutores dele no âmbito do programa. Esse atendimento social consistia, grosso modo, no cadastramento das famílias, informações e esclarecimentos de duvidas nos postos de atendimento, mobilização e organização comunitária, coleta de dados e mapeamento das áreas.

Haviam duas equipes: a social e a de urbanismo. A primeira compunha-se por 90% de Assistentes Sociais e os outros 10% de Sociólogos e Psicólogos. A outra era predominantemente composta por Arquitetos e alguns Geógrafos. Se não conhecesse os profissionais de Serviço Social, na ação cotidiana por meio dessas experiências, poderia pensar que se trata da mais ampla e humanista formação das ciências humanas, conforme a abrangência do escopo de atuação – de adolescentes infratores a dependentes químicos, vitimas de violência a famílias em situação de remoção, passando por prisões, escolas e políticas públicas. No entenato, nem uma coisa nem outra.

Qual a importância da II Guerra Mundial para uma formação na área de humanas? Nenhuma, se não fosse o evento mais importante do século XX, de importância capital para a compreensão da atual hegemonia ocidental e a consolidação dos direitos humanos. Qual a importância da Historia? Nenhuma, se não fosse pelo fato de que somente por meio dela pode-se compreender a dinâmica da sociedade. E do domínio de conceitos da Ciência Política e da Filosofia – Democracia, Cidadania, Justiça, Ética? Nenhum. Para trabalhar com o publico, setor publico, comunidades, política publicas, educação, aprendi com elas que na pratica do “trabalho social” basta apenas “comprar” o discurso padrão, “empacotado” e pronto do mandatário do dia, venha de onde vier e repeti-lo ad nauseaum! Basta conhecer a LOAS, SUAS, ECA e levantar uma barricada com elas para usá-las contra quem quer que seja, inclusive aqueles que elas deveriam ser os beneficiários,  protegidos e atendidos pelo cabedal institucional. E escrever? Desenvolver um texto ou argumentação sobre qualquer assunto com coerência, objetividade e profundidade? Bastam frases de efeito, clichês, chavões, tudo rigorosamente impreciso, ambíguo, superficial e, óbvio, politicamente correto! Demagogia, paternalismo e assistencialismo autoritário, absolutamente incompatível com a democracia e a cidadania, nada mais.

Como é possível trabalhar com organização comunitária e movimentos sociais ou populares sem conhecer Ciência ou Filosofia Política? Como podemos realizar um trabalho desses sem saber o que seja democracia ou cidadania? Como realizá-lo sem conhecer os direitos – civis, sociais, políticos, humanos? Alguns mal conheciam a LOAS e o ECA! O fato de não conhecerem absolutamente nada sobre a II Guerra – sequer o ano que começou e terminou! – é relevante porque se constata o total desinteresse que se tem pela Historia e a mediocridade da formação.

Em 2009, em comemoração aos 70 anos do inicio da II Guerra, resolvi fazer uma atividade com os presos para constatar que as assistentes sociais do CDP em que trabalhava também ignoravam o fato! Para eles e muitos advogados, pedagogos e psicólogos que conheci na minha trajetória é razoável pensar, discutir e analisar as questões relativas aos direitos humanos, violência, autoritarismo, democracia sem considerar o nazifascismo, o Holocausto, a II Guerra e o surgimento da ONU.

As comunidades que habitam as encostas da Serra do Mar não são homogêneas. A exclusão tornou-se um fenômeno complexo. Existem ocupações por diversos motivos, algumas, paradoxalmente, excluem a miséria e a ausência de moradia. Por outro lado, a despeito dos aclamados programas, investimentos e direitos formalmente garantidos, o déficit habitacional e a negação ou violação de direitos ainda são uma realidade brutal. Do ponto de vista objetivo, essas observações são relevantes no que diz respeito às estratégias de mobilização e atendimento a essas comunidades. Como é possível planejar o trabalho social sem conhecer as determinações políticas, econômicas, e culturais em que se estabelecem relações sociais e de poder no interior dessas comunidades? Como podemos considerar as estratégias de ação e/ou políticas públicas de intervenção sem conhecer o contexto em que se constroem as suas demandas, interesses e lutas? Como pensar qualquer ação ignorando que o contexto seja heterogêneo, vulnerável e dinâmico? Simples, conforme seus preconceitos e idiossincrasias desprezam-se os seus direitos e considera-se deliberadamente que sejam todos miseráveis, ignorantes, despolitizados, apáticos, carentes. Massa amorfa e homogênea sugestionável e manipulável. Nada mais conveniente!

As estratégias para esse tipo de ação consistem no controle, omissão ou negação deliberada de informações; repetição sistemática de mentiras e meias verdades; produção e divulgação de informações desencontradas com o propósito de causar e/ou criar fatos e confusão para desfocar a questão; enfraquecimento e deslegitimação de lideranças, instituições e estratégias de mobilização popular; ocupação dos espaços e equipamentos públicos; cooptação e ou intimidação de lideranças formais ou informais; desqualificação e criminalização de lideranças, instituições e estratégias de luta e resistência.

A combinação dessa estratégia com uma visão preconceituosa e formação deficiente resulta no autoritarismo aberto, no desprezo manifesto pelo outro e na indolência e servilismo profissionais. Para cumprir com esses objetivos, exclui-se a ética de todas as relações – sociais e profissionais. A mentira, a desonestidade, a empulhação, a ignorância e o escárnio são considerados ferramentas ou técnicas, como outras quaisquer no trato cotidiano com as pessoas dessas comunidades. A lógica é a seguinte: conforme sejam moradores em áreas consideradas de ocupação irregular ou ilegal, exclui-se ou negam-se arbitrariamente os seus direitos de cidadania. À negação da cidadania consiste em um processo sistemático que passa pela restrição do acesso a informação e aos canais institucionais.

A dinâmica das relações cotidianas caracteriza-se por padrões orientados por regras não formais. Essas regras resultam de tradições, preconceitos e idiossincrasias e escapam aos controles formais e técnicas. No cotidiano, esse processo resulta em uma convivência forçada, caracterizada, via de regra, pela desconfiança e desprezo mútuos. A posição daqueles que representam o poder estatal e detêm o controle e o seu acesso determina relações assimétricas e possibilita desvios e abusos. Desse modo corroem-se as possibilidades de uma relação produtiva e positiva, pautada pela confiança, solidariedade, cooperação e respeito mútuos, concorrendo para a baixa autoestima das pessoas dessas comunidades, fechando o ciclo da exclusão com a desumanização perene dos indivíduos.


Trata-se de um traço de notória orientação autoritária, incompatível a democracia e a cidadania. De um lado, caracteriza-se pelo assistencialismo tutelado que desqualifica, desmobiliza e aliena os indivíduos, de outro, pela negação e violação de direitos e participação no processo político, marginalizando-os e criminalizando as suas ações. Assim, esvazia-se o conteúdo ideológico intrínseco da política reduzindo-a a mera prestação de serviços e concessão paternalista de direitos. Tanto no presídio, quanto no trabalho social comunitário foi o que eu vi, deliberadamente ou ingenuamente, sem diminuição dos prejuízos causados a sociedade, aos indivíduos e a política. Que fique claro: descrevo situações e contextos específicos e determinados profissionais, portanto, não cabem generalizações.

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