São
diversos os caminhos da luta - o fim é sempre o mesmo. Isso, porem, percebe-se
na trajetória - caminhando, tropeçando, caindo, levantando-se, rastejando, se
perdendo, desviando-se, se reencontrando. Não existe militante pronto. Pode-se
ter o ímpeto, o caráter, via de regra, aquilo que se deve disparar e lapidar,
temperando com a teoria e a prática. Não há um sem o outro. Mais dúvidas,
porem, se impõem as convicções - o fim ou a eternidade são a certeza. Atritos,
impressões, choques, conflitos, fissuras que, conforme as bases, ainda quando
abalam fortalecem.
Não
vou falar do meu caminho - apenas que foi pavimentado de terra batida e lama,
pedras e cadáveres. Entre becos, vielas e favelas. Pirituba, Taipas, Centro,
Guarulhos, São Matheus, Brasilandia, Vargem Grande, Grajaú, Nova Iguaçu,
Providência, Maré, Cidade Alta, SAOC, Cota 200, Agua Fria, México 70, Japuí,
José Menino. Rua, cátedra, gabinete, rua e basta! É imperativo que o militante
e a instituição sejam demandados pela sociedade, condicionados pela práxis da
luta - "a vanguarda se faz na luta!" O marxismo não foi uma epifania nem uma abstração, tampouco produto de
vaidade científica. Foi o resultado de uma necessidade histórica da classe
trabalhadora num determinado estágio do modo de produção da sociedade e
condicionado por ele! Foi forjado nas lutas, greves, revoltas, barricadas, na
Liga, na Internacional e na Comuna! Marx não escreveu senão perseguido, no
exílio, no calor e no desconforto das lutas, sofrendo privações e dificuldades
com a sua família - sepultou três crianças nessa trajetória (Guido, Edgard,
Franziska).
Seu
Sebastião é baiano. Conheci-o em 2013 na comunidade Vargem Grande em
Parelheiros zona sul da capital paulista. Lugar afastado cerca de 45 km do
centro da cidade - encostado a Serra do Mar. Seu Sebastião ignorava o que fosse
o marxismo, trotskismo, leninismo. Jamais havia ouvido falar em Lukacs ou
Gramsci. Seu Sebastião, era de outra espécie. Forjado na labuta e nas
intempéries do campo - na terra, enxada, foice e charrua. Pés no chão, mãos
calejadas, face queimada, conheceu e reproduzia a solidariedade sem refletir
sobre ela - algo intrínseco ao ser humano, da ordem do direito natural, típico
da formação comunitária. Conheceu desde cedo a "luta de classes" em
estado bruto - as contradições, os conflitos, a exploração,
subserviência, miséria, violência, privações e sacrifícios, o mandonismo
e a arrogância das elites econômicas, intelectuais, políticas, escolásticas!
Aquele tipo de realidade que muitos presunçosos apenas vislumbrarão protegidos
por detrás de papéis e monitores - porque não existe conhecimento fora práxis
(II Tese).
Homem
simples, rústico, severo, porem muito objetivo e gentil. Falava com
sotaque, apesar dos mais de 20 anos de Sampa. Cheio de erros na fala, poucas
palavras, porem muita clareza, convicção e serenidade no que dizia. Ouvia muito
e com atenção, nunca deixava de ir a uma reunião da Associação de Moradores -
União de Favelas do Grajaú (Unifag). Sempre ficava até o final, muitas vezes ia
logo após o trabalho - numa roça próximo a sua casa. Plantava banana, mandioca,
tangerina e vendia ali mesmo pelo bairro. Sempre que chegava a associação
tirava os sapatos sujos de terra a porta e entrava descalço. Pensava rápido,
sempre pegava minhas tiradas irônicas e ria.
Seu
Sebastião era homem de ação, líder nato, forjado pras lutas populares! Daqueles
que o açoite é incapaz de domesticar, que a altivez não intimida nem desafia -
porque um lutador só aceita desafio de outro! Acostumado a afrontar a ordem,
enfrentar o sistema, confrontar os senhores! Consciente da justiça e
solidariedade que nos une e faz-nos homens! Aquela compatível com a revolta e a
resistência e que corteja a luta! Certa vez me contou sobre quando conheceu o
MST no sertão baiano, fins da década de 80, ocasião em que liderou a invasão e
a ocupação de um escritório do Incra. Houve confronto, feridos, mortes,
prisões, ocasião em que resolveu buscar um pedaço de chão e uma vida melhor na
capital paulista - ainda vista como um oásis e a terra do trabalho e
oportunidades. Quando seu Osvaldo contava aquelas partes da sua vida - sem
duvidas os momentos mais palatáveis e menos traumáticos - era patético e
deprimente ouvir a "juventude revolucionária" do partido trotskista pretender
equiparar a sua luta com a "guerra" de palavras, bolinhas de papel ou
mesmo qualquer aperreio com a PM ou a guarda do campus na USP que eles
"enfrentavam", amplamente televisionados e filmados por uma
infinidade de celulares, cobertos pela mídia! No campo e nas perifas as balas
não são de borracha! A luta pela terra não se compara à pela universidade
publica ou a educação! A luta pela terra se encerra na base material da
sociedade, é a essência da luta de classes - propriedade privada, modo de
produção capitalista!
Seu
Sebastião matou dois homens. Quando chegou em Sampa. Estava fechando o comércio.
Sem pavimentação, iluminação, saneamento, lazer, emprego, dignidade na
comunidade. Crônica da morte anunciada, morte que segue. Casa e comércio são a
mesma coisa e tudo depende da iniciativa particular - como a época das
sesmarias, administração e defesa sob a complacência e graça dos senhores.
Chegaram, anunciaram o assalto, vacilaram, morreram. Seu Sebastião chamou a
policia e o mais foi procedimento técnico-burocrático. A morte é assim na
periferia - burocrática, fria, indiferente, mecânica, rotineira.
No
dia da Audiência Pública na Subprefeitura seu Sebastião falou. Deputados,
vereadores, subprefeito, assessores, Promotor Publico, técnicos governamentais
diversos - arquitetos, engenheiros, urbanistas, advogados, ambientalistas,
defesa civil. O repertório para oprimir e excluir é jurídico, patrimonial,
ambiental, urbanístico, público. Só se dimensiona a força do poder público,
quando se verifica o quão vasta é a sua capacidade de mobilizar técnicos
capazes de legitimar por diversos meios os seus planos e ações. O caráter é
sempre profilático, paternalista, legalista, burocrático, excludente,
autoritário. Tangenciando as determinações políticas e econômicas, cumpre a
tarefa de minimizar as reivindicações populares, desqualifica-las,
desmobilizar, confundir e intimidar os movimentos populares de
luta!
A
luta é perversa, injusta, suja, essencialmente desigual! Seu Sebastião não era
homem de se intimidar; e denunciou a omissão, a demagogia e o autoritarismo!
Falou com veemência e convicção sobre o abandono, as privações, a resiliência,
a labuta e a coragem do povo no dia a dia. Falou de si mesmo, da sua vida, da
sua família, dos seus amigos e iguais - sem cargo, legenda, CNPJ. Sem
espontaneísmo ou oportunismo, falou exatamente aquilo que não pode ser
apreendido nos mapas, planilhas, tabelas, teorias, planos - a experiência de
quem vive aquilo que fala e luta! Não houve réplica, apenas o silêncio
constrangedor e obsequioso - típico dos covardes e canalhas! Seu Sebastião
ainda está no Varjão. Naquela ocasião, dias antes nos reunimos diversas vezes -
debatemos, panfletamos, estudamos, discutimos. Horas antes havia tentado em vão
"enquadrar" seu Sebastião - aprendi na prática que não se faz
militante, que não se subestima a práxis, que o sangue, a fome, o suor, a
revolta, a indignação e as lágrimas do trabalhador se impõem tanto a retórica,
a moral e a cantilena conciliatória e reformista da burguesia quanto a autoritária
das "vanguardas". A luta de classes é maior, tanto quanto as
estratégias de luta, bem maiores! E como já foi dito, "a prática é o
critério da verdade." A militância revolucionária aprendi com um seu Sebastião.....
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