sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Memórias de um militante


São diversos os caminhos da luta - o fim é sempre o mesmo. Isso, porem, percebe-se na trajetória - caminhando, tropeçando, caindo, levantando-se, rastejando, se perdendo, desviando-se, se reencontrando. Não existe militante pronto. Pode-se ter o ímpeto, o caráter, via de regra, aquilo que se deve disparar e lapidar, temperando com a teoria e a prática. Não há um sem o outro. Mais dúvidas, porem, se impõem as convicções - o fim ou a eternidade são a certeza. Atritos, impressões, choques, conflitos, fissuras que, conforme as bases, ainda quando abalam fortalecem.

Não vou falar do meu caminho - apenas que foi pavimentado de terra batida e lama, pedras e cadáveres. Entre becos, vielas e favelas. Pirituba, Taipas, Centro, Guarulhos, São Matheus, Brasilandia, Vargem Grande, Grajaú, Nova Iguaçu, Providência, Maré, Cidade Alta, SAOC, Cota 200, Agua Fria, México 70, Japuí, José Menino. Rua, cátedra, gabinete, rua e basta! É imperativo que o militante e a instituição sejam demandados pela sociedade, condicionados pela práxis da luta - "a vanguarda se faz na luta!" O marxismo não foi uma epifania nem uma abstração, tampouco produto de vaidade científica. Foi o resultado de uma necessidade histórica da classe trabalhadora num determinado estágio do modo de produção da sociedade e condicionado por ele! Foi forjado nas lutas, greves, revoltas, barricadas, na Liga, na Internacional e na Comuna! Marx não escreveu senão perseguido, no exílio, no calor e no desconforto das lutas, sofrendo privações e dificuldades com a sua família - sepultou três crianças nessa trajetória (Guido, Edgard, Franziska). 

Seu Sebastião é baiano. Conheci-o em 2013 na comunidade Vargem Grande em Parelheiros zona sul da capital paulista. Lugar afastado cerca de 45 km do centro da cidade - encostado a Serra do Mar. Seu Sebastião ignorava o que fosse o marxismo, trotskismo, leninismo. Jamais havia ouvido falar em Lukacs ou Gramsci. Seu Sebastião, era de outra espécie. Forjado na labuta e nas intempéries do campo - na terra, enxada, foice e charrua. Pés no chão, mãos calejadas, face queimada, conheceu e reproduzia a solidariedade sem refletir sobre ela - algo intrínseco ao ser humano, da ordem do direito natural, típico da formação comunitária. Conheceu desde cedo a "luta de classes" em estado bruto - as contradições, os conflitos, a exploração, subserviência,  miséria, violência, privações e sacrifícios, o mandonismo e a arrogância das elites econômicas, intelectuais, políticas, escolásticas! Aquele tipo de realidade que muitos presunçosos apenas vislumbrarão protegidos por detrás de papéis e monitores - porque não existe conhecimento fora práxis (II Tese).

Homem simples, rústico, severo, porem muito objetivo e gentil.  Falava com sotaque, apesar dos mais de 20 anos de Sampa. Cheio de erros na fala, poucas palavras, porem muita clareza, convicção e serenidade no que dizia. Ouvia muito e com atenção, nunca deixava de ir a uma reunião da Associação de Moradores - União de Favelas do Grajaú (Unifag). Sempre ficava até o final, muitas vezes ia logo após o trabalho - numa roça próximo a sua casa. Plantava banana, mandioca, tangerina e vendia ali mesmo pelo bairro. Sempre que chegava a associação tirava os sapatos sujos de terra a porta e entrava descalço. Pensava rápido, sempre pegava minhas tiradas irônicas e ria.

Seu Sebastião era homem de ação, líder nato, forjado pras lutas populares! Daqueles que o açoite é incapaz de domesticar, que a altivez não intimida nem desafia - porque um lutador só aceita desafio de outro! Acostumado a afrontar a ordem, enfrentar o sistema, confrontar os senhores! Consciente da justiça e solidariedade que nos une e faz-nos homens! Aquela compatível com a revolta e a resistência e que corteja a luta! Certa vez me contou sobre quando conheceu o MST no sertão baiano, fins da década de 80, ocasião em que liderou a invasão e a ocupação de um escritório do Incra. Houve confronto, feridos, mortes, prisões, ocasião em que resolveu buscar um pedaço de chão e uma vida melhor na capital paulista - ainda vista como um oásis e a terra do trabalho e oportunidades. Quando seu Osvaldo contava aquelas partes da sua vida - sem duvidas os momentos mais palatáveis e menos traumáticos - era patético e deprimente ouvir a "juventude revolucionária" do partido trotskista pretender equiparar a sua luta com a "guerra" de palavras, bolinhas de papel ou mesmo qualquer aperreio com a PM ou a guarda do campus na USP que eles "enfrentavam", amplamente televisionados e filmados por uma infinidade de celulares, cobertos pela mídia! No campo e nas perifas as balas não são de borracha! A luta pela terra não se compara à pela universidade publica ou a educação! A luta pela terra se encerra na base material da sociedade, é a essência da luta de classes - propriedade privada, modo de produção capitalista!

Seu Sebastião matou dois homens. Quando chegou em Sampa. Estava fechando o comércio. Sem pavimentação, iluminação, saneamento, lazer, emprego, dignidade na comunidade. Crônica da morte anunciada, morte que segue. Casa e comércio são a mesma coisa e tudo depende da iniciativa particular - como a época das sesmarias, administração e defesa sob a complacência e graça dos senhores. Chegaram, anunciaram o assalto, vacilaram, morreram. Seu Sebastião chamou a policia e o mais foi procedimento técnico-burocrático. A morte é assim na periferia - burocrática, fria, indiferente, mecânica, rotineira. 

No dia da Audiência Pública na Subprefeitura seu Sebastião falou. Deputados, vereadores, subprefeito, assessores, Promotor Publico, técnicos governamentais diversos - arquitetos, engenheiros, urbanistas, advogados, ambientalistas, defesa civil. O repertório para oprimir e excluir é jurídico, patrimonial, ambiental, urbanístico, público. Só se dimensiona a força do poder público, quando se verifica o quão vasta é a sua capacidade de mobilizar técnicos capazes de legitimar por diversos meios os seus planos e ações. O caráter é sempre profilático, paternalista, legalista, burocrático, excludente, autoritário. Tangenciando as determinações políticas e econômicas, cumpre a tarefa de minimizar as reivindicações populares, desqualifica-las, desmobilizar, confundir e intimidar os movimentos populares de luta!  

A luta é perversa, injusta, suja, essencialmente desigual! Seu Sebastião não era homem de se intimidar; e denunciou a omissão, a demagogia e o autoritarismo! Falou com veemência e convicção sobre o abandono, as privações, a resiliência, a labuta e a coragem do povo no dia a dia. Falou de si mesmo, da sua vida, da sua família, dos seus amigos e iguais - sem cargo, legenda, CNPJ. Sem espontaneísmo ou oportunismo, falou exatamente aquilo que não pode ser apreendido nos mapas, planilhas, tabelas, teorias, planos - a experiência de quem vive aquilo que fala e luta! Não houve réplica, apenas o silêncio constrangedor e obsequioso - típico dos covardes e canalhas! Seu Sebastião ainda está no Varjão. Naquela ocasião, dias antes nos reunimos diversas vezes - debatemos, panfletamos, estudamos, discutimos. Horas antes havia tentado em vão "enquadrar" seu Sebastião - aprendi na prática que não se faz militante, que não se subestima a práxis, que o sangue, a fome, o suor, a revolta, a indignação e as lágrimas do trabalhador se impõem tanto a retórica, a moral e a cantilena conciliatória e reformista da burguesia quanto a autoritária das "vanguardas". A luta de classes é maior, tanto quanto as estratégias de luta, bem maiores! E como já foi dito, "a prática é o critério da verdade."   A militância revolucionária aprendi com um seu Sebastião..... 




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