Noventa e seis e sete foram anos difíceis. Morreram Batata,
Nanico, Ceará, Beiço, André, Ratão e, desconfio de mais uns dois ou três - na
duvida os deixarei fora da conta. Morreram é eufemismo. Foram assassinados.
Baleados. Batata, Nanico, Ceará e o Beiço foram mortos pela policia. Os três
primeiros executados com requintes de crueldade. Não eram santos, todos eram
ladrões e tinham entre os diversos homicídios alguns policiais. Isso não
justifica. Não é preciso ter formação jurídica para saber o papel que cabe a
policia. Nem que o policial que os assassinam é pior que eles – bandidos
enrustidos. Tem arma, farda, distintivo, fé publica, treinamento, formação, viatura,
corporação, prerrogativas, privilégios, justiça exclusiva e desprezo pela lei,
a sociedade e a vida. Tem a proteção do Estado e a cumplicidade da corporação e
dos seus pares. Confia na omissão e negligência do judiciário. As duas pontas
da corda. Nem vale a pena discutir isso.
De um lado estão os que comemoram o aumento na expulsão de
policiais das instituições, de outro os que revelam a impunidade entre as
policias diante dos seus crimes, excessos e/ou desvios - ambos estão
equivocados. Como se a punição efetiva não fosse obrigação da corporação e do
Estado e deve-se ser louvada. Tudo inútil. Ninguém se interessa em acabar com
esses modelos policiais anacrônicos e corrompidos. Ninguém se interessa em
acabar com os privilégios de qualquer servidor público – seja policial ou qualquer
outro. Inútil. Todos sabem que tem privilégios, que a fiscalização inexiste, a
impunidade e o corporativismo prevalecem e muitos abusam. Nem adianta reformar
ou transformar essa policia, está podre após décadas de impunidade, corrupção,
desmandos, preconceitos, vícios, incompetência e corporativismo. Resta apenas
destruir e construir outra política de segurança com controle popular
irrestrito. Sou cético porque sei que isso depende do legislativo e de mudanças
significativas no judiciário. Alguém acredita que o parlamento e o judiciário
se interessam por isso? O Brasil já foi condenado pela OEA, ONU, incontáveis
Comissões Nacionais e Estrangeiras e diversas Resoluções. E daí?! O Brasil é
signatário de diversos tratados e ratificou a carta de Direitos Humanos – quem
sabe o mínimo de historia sabe o que significa a expressão “pra inglês ver.”
O Beiço foi baleado pelas costas, subindo em uma moto, numa
tentativa de assalto portando uma pistola de brinquedo. O Ratão era traficante
e foi morto pelo Leco também traficante. Ambos disputavam “a praça.” A praça
era a boca que eles instalaram na recém inaugurada Praça Vila Bonilha. Tinha um
bar em frente e toda sexta samba, o movimento era diário. Sinuca e bebidas,
então todo dia havia fregueses – para ambos. Eu mesmo era quase frequentador
diário. Costumava pegar minhas drogas com o Fabio, que era o “funça” do Leco. Às
vezes pegava com o Ratão. A do Ratão era diferente. Eles serviam bem - um pouco
mais ou um pouco menos cada. A diferença era a qualidade. A do Ratão era mais
amarga. A do Leco não e era melhor. Pegava no Ratão quando não encontrava o
Fabio ou acabava a dele. Ficavam cada um de um lado da rua.
O Ratão era traficante antigo. Já tinha uns dez anos de trafico
naquela época. Veterano. O Leco também. Tinha sido preso e saído há pouco. As
tretas começaram por causa da praça. Ambos esperavam a oportunidade certa pra “concluir” o outro.
Um dia o Fabio vacilou e dizem que o Ratão viu aonde ele escondeu a droga e
furtou ela. Nunca soube ao certo, mas, foi o boato que surgiu - ou a
justificativa pra começar a guerra. Quando o Fabio começou a vender pedra na
boca o Ratão reclamou. Disse que ninguém ia vender pedra na praça e intimidou
os moleques. Era a oportunidade que o Leco esperava. O Ratão costumava deixar o
seu 38 escondido na praça. Todos sabiam, inclusive o Leco.
Foi simples. Ele chegou, sacou e disse que ele era "ladrão e
que o moleque ia vender tudo ali" e disparou quatro vezes a queima roupa.
O Ratão só teve tempo de ir em direção a praça, mas, caiu antes. Caído levou um
tiro na cabeça. Isso tudo aconteceu por volta das nove da noite de um dia da
semana - só lembro que não era sexta ou final de semana. Todos que estavam por
ali desapareceram logo que ouviram ou viram os disparos. O André tirou o “Bulova” do
pulso do Ratão - pouco tempo depois ele também foi fuzilado num bairro próximo,
em discussão na frente da lojinha da sua tia, por motivos fúteis, ofendeu os
caras errados e "desacreditou" deles. Outros pegaram as drogas e o
dinheiro dele. Eu estava ali próximo, ouvi os tiros, vi a confusão, encontrei
com uns caras vindos de lá e nem fui, sabia o que aconteceria em seguida.
Minutos depois tinha ao menos quatro viaturas no local. Só cena.
O Leco nunca respondeu por isso - não nesse mundo. Como tantos que
ele mesmo havia assassinado assim o Ratão também foi morto e como ele o seu
assassino também ficou impune. Como diversos outros, alias, a imensa maioria no
Brasil, sobretudo, os assassinos do Estado – civis e militares. Sintomático da
banalização da morte e do desprezo a vida. Leniência, incompetência,
inoperância, negligencia, omissão. Corporativismo, prerrogativas
constitucionais, dispositivos legais. É extenso o repertorio que justifica e
corrobora a impunidade, coroando a violência nas ignoradas e esquecidas
periferias, pavimentando de cadáveres e sangue as suas ruas.
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