domingo, 26 de junho de 2011

1996/1997



Noventa e seis e sete foram anos difíceis. Morreram Batata, Nanico, Ceará, Beiço, André, Ratão e, desconfio de mais uns dois ou três - na duvida os deixarei fora da conta. Morreram é eufemismo. Foram assassinados. Baleados. Batata, Nanico, Ceará e o Beiço foram mortos pela policia. Os três primeiros executados com requintes de crueldade. Não eram santos, todos eram ladrões e tinham entre os diversos homicídios alguns policiais. Isso não justifica. Não é preciso ter formação jurídica para saber o papel que cabe a policia. Nem que o policial que os assassinam é pior que eles – bandidos enrustidos. Tem arma, farda, distintivo, fé publica, treinamento, formação, viatura, corporação, prerrogativas, privilégios, justiça exclusiva e desprezo pela lei, a sociedade e a vida. Tem a proteção do Estado e a cumplicidade da corporação e dos seus pares. Confia na omissão e negligência do judiciário. As duas pontas da corda. Nem vale a pena discutir isso.

De um lado estão os que comemoram o aumento na expulsão de policiais das instituições, de outro os que revelam a impunidade entre as policias diante dos seus crimes, excessos e/ou desvios - ambos estão equivocados. Como se a punição efetiva não fosse obrigação da corporação e do Estado e deve-se ser louvada. Tudo inútil. Ninguém se interessa em acabar com esses modelos policiais anacrônicos e corrompidos. Ninguém se interessa em acabar com os privilégios de qualquer servidor público – seja policial ou qualquer outro. Inútil. Todos sabem que tem privilégios, que a fiscalização inexiste, a impunidade e o corporativismo prevalecem e muitos abusam. Nem adianta reformar ou transformar essa policia, está podre após décadas de impunidade, corrupção, desmandos, preconceitos, vícios, incompetência e corporativismo. Resta apenas destruir e construir outra política de segurança com controle popular irrestrito. Sou cético porque sei que isso depende do legislativo e de mudanças significativas no judiciário. Alguém acredita que o parlamento e o judiciário se interessam por isso? O Brasil já foi condenado pela OEA, ONU, incontáveis Comissões Nacionais e Estrangeiras e diversas Resoluções. E daí?! O Brasil é signatário de diversos tratados e ratificou a carta de Direitos Humanos – quem sabe o mínimo de historia sabe o que significa a expressão “pra inglês ver.”

O Beiço foi baleado pelas costas, subindo em uma moto, numa tentativa de assalto portando uma pistola de brinquedo. O Ratão era traficante e foi morto pelo Leco também traficante. Ambos disputavam “a praça.” A praça era a boca que eles instalaram na recém inaugurada Praça Vila Bonilha. Tinha um bar em frente e toda sexta samba, o movimento era diário. Sinuca e bebidas, então todo dia havia fregueses – para ambos. Eu mesmo era quase frequentador diário. Costumava pegar minhas drogas com o Fabio, que era o “funça” do Leco. Às vezes pegava com o Ratão. A do Ratão era diferente. Eles serviam bem - um pouco mais ou um pouco menos cada. A diferença era a qualidade. A do Ratão era mais amarga. A do Leco não e era melhor. Pegava no Ratão quando não encontrava o Fabio ou acabava a dele. Ficavam cada um de um lado da rua.

O Ratão era traficante antigo. Já tinha uns dez anos de trafico naquela época. Veterano. O Leco também. Tinha sido preso e saído há pouco. As tretas começaram por causa da praça. Ambos esperavam a oportunidade certa pra “concluir” o outro. Um dia o Fabio vacilou e dizem que o Ratão viu aonde ele escondeu a droga e furtou ela. Nunca soube ao certo, mas, foi o boato que surgiu - ou a justificativa pra começar a guerra. Quando o Fabio começou a vender pedra na boca o Ratão reclamou. Disse que ninguém ia vender pedra na praça e intimidou os moleques. Era a oportunidade que o Leco esperava. O Ratão costumava deixar o seu 38 escondido na praça. Todos sabiam, inclusive o Leco.

Foi simples. Ele chegou, sacou e disse que ele era "ladrão e que o moleque ia vender tudo ali" e disparou quatro vezes a queima roupa. O Ratão só teve tempo de ir em direção a praça, mas, caiu antes. Caído levou um tiro na cabeça. Isso tudo aconteceu por volta das nove da noite de um dia da semana - só lembro que não era sexta ou final de semana. Todos que estavam por ali desapareceram logo que ouviram ou viram os disparos. O André tirou o “Bulova” do pulso do Ratão - pouco tempo depois ele também foi fuzilado num bairro próximo, em discussão na frente da lojinha da sua tia, por motivos fúteis, ofendeu os caras errados e "desacreditou" deles. Outros pegaram as drogas e o dinheiro dele. Eu estava ali próximo, ouvi os tiros, vi a confusão, encontrei com uns caras vindos de lá e nem fui, sabia o que aconteceria em seguida. Minutos depois tinha ao menos quatro viaturas no local. Só cena.


O Leco nunca respondeu por isso - não nesse mundo. Como tantos que ele mesmo havia assassinado assim o Ratão também foi morto e como ele o seu assassino também ficou impune. Como diversos outros, alias, a imensa maioria no Brasil, sobretudo, os assassinos do Estado – civis e militares. Sintomático da banalização da morte e do desprezo a vida. Leniência, incompetência, inoperância, negligencia, omissão. Corporativismo, prerrogativas constitucionais, dispositivos legais. É extenso o repertorio que justifica e corrobora a impunidade, coroando a violência nas ignoradas e esquecidas periferias, pavimentando de cadáveres e sangue as suas ruas. 

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