segunda-feira, 20 de junho de 2011

Polícia, Ciência e Cidadania.


Meus estudos sobre violência e segurança pública iniciaram-se no ano 2000 pela Prefeitura de Guarulhos. Essas experiências resultaram na minha monografia, apresentação de trabalho no Encontro Nacional dos Cursos de Ciências Sociais da PUC-SP em 2001, participação no Seminário Violência e Direitos Humanos da FESPSP e publicação na Revista Psicologia Política da PUC-SP – 2001/2002. Meus “contatos” com esses “temas”, digamos assim, começaram muito antes. Enganam-se os que pensam que minhas reflexões e pesquisas resultam apenas de interesse ou oportunidades acadêmicas, vaidade ou curiosidade intelectual. Também sou cético com relação ao ideal positivista da ciência redentora ou transformadora da sociedade ou do individuo. Minhas experiências acadêmicas me mostraram que as universidades brasileiras são dóceis e subservientes ao Estado e o capital. A elite e a pequena burguesia, clientela das universidades - donos do saber -, sobretudo, das publicas, também são alheios as demandas e a realidade sociais.

Muito antes de pensar em sociologia ou curso superior já conhecia a práxis policial – antes por experiência que pesquisa ou teoria. As primeiras experiências aconteceram em 90 ou 91 – em 92 peguei seis meses de Liberdade Assistida por pixação. Para os propósitos dessa reflexão vou relatar três experiências: uma ocorrida em 92, outra em 98 e a ultima em 2009. A primeira aconteceu por causa de pixação e as outras duas por uso de drogas. Antes das drogas tive problemas com a polícia também por causa do Movimento Punk.

Estávamos na Vila Mangalot – sexta-feira. Eu, meu irmão o Carlão – da gangue Sakanas - e o Alemão – da gangue Jet Boys. Vínhamos do point de Santana e havíamos desistido de ir a Osasco com o cara da gangue Imorais – da Vila Mangalot podíamos voltar a pé para casa. Madrugada e nós pixando. Dois de cada lado da rua. Eu e o Carlão de um lado, meu irmão e o Alemão do outro. Alternávamos os lados pelos quarteirões. Num determinado momento avistamos uma moto subindo a rua, paramos de pixar e continuamos nosso caminho. Um quarteirão acima o cara retornou e desceu a rua. Desconfiamos, já estávamos acostumados com a rua. Imediatamente dispersamo-nos e dispensamos as latas. Não deu outra. Minutos depois eles voltam acompanhados de um carro com mais três caras, sendo que um deles armado com uma automática. Meu irmão e o Alemão sumiram por uma rua em que havia um terreno baldio. Eu e o Carlão fomos "enquadrados" pelos caras. O armado era um senhor por volta dos 60 anos. Espumava, esperneava e tremia com a automática na mão apontada para nós. Eu, nessas horas, sobretudo após diversos “enquadros” e visitas a delegacias, estava sereno, quase indiferente. Não sei como, mas, sempre tive o sangue frio nessas situações. Acho que isso acaba passando pros outros e ajuda a serenar os ânimos. Enfim, diante da minha tranqüilidade e argumentos, resolveu-se por chamar uma viatura. Descobrimos no decorrer dos acontecimentos que se tratava de uma família – pai, filhos, cunhado, cinco homens ao todo. Um dos filhos, o mais razoável, assumiu o controle da situação, desarmou o pai, acalmou os outros e chamou a polícia. Fomos todos para o 33º DP. Eles de carro e moto, eu e o Carlão de viatura. Estava mais tranqüilo porque o Carlão deixou o debate comigo. Não havia flagrante. Não encontraram as nossas latas de spray, estávamos com documentos e alegamos que voltávamos de uma festa. Nada mais que um mal entendido. Entendíamos que estivessem enfurecidos porque haviam pixado a casa deles, mas, não tínhamos nada com isso – esse era o nosso argumento.

Madrugada, chegando à delegacia, o delegado - bastante disposto e solicito -, evidente que não queria lavrar um B.O. - não aquela hora e tampouco por aquele motivo! Então chegou para o idoso e disse: “Senhor, nós vamos resolver seu problema. Me dê cinco minutos pra conversar com os rapazes.” A sós falou conosco. “Seguinte: o senhor alega que foram vocês que pixaram a casa dele, vamos resolver isso logo. Vou dizer que vocês aceitam ir lá à casa dele semana que vem para pintar. Ele vai providenciar a tinta e todo o material. Vocês só vão ter o trabalho de ir lá e fazer isso. Não vai tomar nem meia hora do tempo de vocês. Se não aceitarem vou ter que fazer o B. O. e será pior pra vocês!” Claro que não iríamos, então é lógico que concordamos! Desnecessário dizer que o arquiteto dessa farsa era o maior beneficiário dela também – o delegado preguiçoso. Enfim, concordamos com o “acordo amigável” proposto pela autoridade e saímos todos satisfeitos, embora resolutamente negando até o fim que tivéssemos pixado a casa! Apenas havíamos aceitado para encerrar a pendenga. Depois que a família se foi o delegado nos liberou. Solicitou então à viatura que conduziu a ocorrência que nos levasse até nosso domicilio, afinal, éramos menores. Nesse momento as pernas tremeram, evidente que havíamos dado endereços falsos pro delegado! Ato contínuo, explicações e súplicas ao delegado: “Doutor pelo amor de Deus não faça isso! Minha mãe é cardíaca e tem problemas de pressão! Se eu chegar em casa de viatura minha mãe tem um ataque e morre! Se os vizinhos verem vai ser a maior confusão em casa! Meu pai bebe e é violento, vai me matar, minha mãe vai morrer, vai ser a maior tragédia!” Depois de todo esse drama ele concordou em nos deixar ir embora, apenas nos levando até a avenida mais movimentada e próxima do endereço alegado. Quando cheguei em casa meu irmão estava me esperando no portão havia horas! Cansado e preocupado. Saíamos juntos, então não havia a possibilidade de entrarmos em casa separados. Essa foi uma experiência atípica, porque não houve violência, reveladora apenas no sentido que mostra a indolência que caracteriza a rotina policial.

Em 98 estava no primeiro ano da faculdade. Sábado, estávamos em uma reunião do Centro Acadêmico. Final do dia, ao sairmos dela, resolvemos ir fumar um “baseadinho” na praça em frente – Monteiro Lobato. Quase sempre fazíamos isso na faculdade mesmo, mas, naquele horário ela já estava fechando, por isso resolvemos ir lá – eu e mais três colegas. Tinha muita gente na praça, o dia estava bonito e a temperatura agradável. Dois times se enfrentavam na quadra, crianças brincavam na areia e no parquinho, casais namoravam nos bancos, outros jogavam nas mesas ou conversavam. Nós escolhemos um banco mais afastado para pitar. Nos posicionamos da seguinte maneira: três sentados no banco e eu em pé na frente deles. Eles de frente pro portão de entrada e eu de frente para a rua Dr. Vila Nova. Logo que acendemos, junto com alguns cigarros para disfarçar, eu percebi dois PMs vindo pela rua no sentido General Jardim. Conforme avistei-os, percebi que eles também nos avistaram. Ambos percebemo-nos apenas com os olhos. Pensei: “se entrarem na rua General Jardim vão nos abordar.” Dito e feito. Imediatamente avisei os caras: “Dois PMs estão vindo nos abordar. Calma! Vamos esconder o baseado e ficar aqui na boa, normal, não estamos fazendo nada!” Embora estivessem amedrontados, concordaram. Estavam aprendendo a fumar maconha na faculdade, estava na cara que nunca tinha tido qualquer contato com a polícia! Como eu já tinha, tomei a frente. Continuei como estava, de costas para o portão, fumando meu cigarro e eles no banco, conversávamos à toa. Embora já tivesse passado por diversas abordagens, não esperava o que estava por vir. Os dois PMs chegaram de armas em punho, gritando e agredindo. “Vai, filha da puta! Mão na cabeça! Encosta! Abre as pernas caralho! Você não sabe como é o procedimento?” Entre um chute e outro, enquanto nos revistavam, mal tivemos tempo de argumentar. Após a revista respondi: “Não, não sabemos qual é o procedimento! Somos estudantes, não estamos fazendo nada e sabemos os nossos direitos!” O mais exaltado era também o mais novo, não mais que 20 anos, no máximo. De arma em punho, não satisfeito, encarava, rosnava e não escondia a disposição em usar o seu “brinquedinho novo.” Eu, com muita raiva também por esse espetáculo grotesco e, mais velho do que ele, devolvia as encaradas – o que o incomodava e aos meus colegas também, a essa altura já quase chorando de medo. Esse imbecil disse com ar debochado que se fôssemos “estudantes de direito” iríamos “para a delegacia”, “estávamos ferrados, jamais iríamos conseguir a carteirinha da OAB.” Expliquei que “sabíamos os nossos direitos”, que ele não havia entendido, éramos estudantes de sociologia – deixei o ignorante mais confuso e irado. O outro mais comedido disse que havia visto que estávamos fumando e sentido o cheiro de maconha e que éramos “inconseqüentes.” Depois dessa e para encerrar o assunto eu disse que havia “outras pessoas na praça, que o cheiro poderia vir dela toda”, que fumávamos nossos cigarros, única coisa que portávamos. Disse ainda que “inconseqüente” deveria ser quem “abordava em praça publica repleta de crianças portando armas” e, se seria esse o “procedimento” para aquele local e horário, não gostaria nem de “imaginá-lo em outro mais afastado e a noite.” No fim, simplesmente se retiraram, sem ao menos nos pedirem os documentos. Eis o “procedimento”! Espetáculo grotesco de intimidação, demonstração gratuita de truculência. Reparei que tiveram o cuidado de retirar a identificação pessoal da farda antes da abordagem. Impressionante como aprendem rápido o “procedimento.”

A última experiência foi à pior de todas. Estava embalado. Fumando os meus mesclados o dia todo. Já havia notado a presença de viaturas pelo bairro, uma abordagem na favela ao lado da boca. Quando se está “louco” não se percebe que também se é notado. Madrugada; acabou a minha droga. Peguei vinte reais e pensei: “mais duas.” Saí e fui até a favela. Entrei e quando estava chegando próximo a “boca” vi dois PMs de armas em punho vindo sorrateiramente na minha direção. Se parasse já era, se corresse idem, se voltasse era pedir pra ser abordado. Até aquele momento eu ainda “delirava” que talvez não fosse abordado, àquela hora no meio da favela. Imediatamente fui. O de sempre: “Mão na cabeça”, “encosta”, “filha da puta”, “aonde você pensa que vai?”, “tá armado?”, “o que você quer aqui?”, “nóia safado”, entre outras do repertório da cartilha do “procedimento” policial para abordagens de rotina em comunidades da periferia. Expliquei que estava em um bar próximo e que um amigo havia vindo encontrar outro aqui perto e estava procurando-o. Evidente que não acreditaram. Logo me pegaram como “escudo.” Com as mãos na cabeça, foram me conduzindo favela adentro me segurando pelo bolso de trás da calça e a Ponto 40 ao lado da minha cabeça. Usavam meu corpo como escudo e o ombro como apoio. Após passarmos por alguns becos e vielas, subir e descer escadas, perto de uma trilha abordaram quatro outros usuários. Diferentemente de mim eles estavam mal vestidos, talvez fossem da rua, não os conhecia, mal podia ver no escuro. Encostaram-nos na parede e, conforme já tivessem me revistado, os outros policiais da equipe começaram a revista-los, questioná-los e agredi-los. Um deles colou do meu lado e perguntou: “Voce estava com eles?” Quando fui me virar para responder ele me cutucou com a arma e disse: “Não olha pra mim não! Responde sem virar.” Respondi que não, que havia chegado com os outros dois PMs que haviam me abordado mais atrás. Ele disse: “Tá vendo o que você faz! Se você não estivesse aqui nós já íamos matar todos eles!” Mais afastado ouvia os lamentos e desculpas de sempre também: “Ai, ai senhor! Tá me machucando! Não senhor, eu sou só usuário! Tava indo pra casa!” Após um PM anotar meu documento e verificar meus antecedentes pelo rádio fui liberado. Não sei o que aconteceu com os outros. Desse dia em diante nunca mais pisei naquela favela e nem usei mais drogas – até recair outra vez. Senti-me enfurecido por ter passado por isso, essa foi à gota d’água, após 15 anos de uso ininterrupto de todas as drogas. Sabia ainda que no dia seguinte, o tráfico iria desconfiar de mim ou me acusar de delação, minha vida estava em risco. Meses depois soube por um amigo que andavam perguntando por mim, confirmando a minha desconfiança.

Nessa época eu ainda trabalhava em um presídio pela Funap. Descobriram isso também. Por esse motivo, na cabeça deles era impossível eu não ser um delator! Meses depois, tive uma recaída. Faz quase um ano que estou limpo. Às vezes ainda tenho vontade, mas, sei que passa e a raiva, culpa e vergonha ainda são maiores. Elas talvez nunca passem. Espero que não. Penso que são a raiva e o amor que nos fazem comprometidos e capazes de fazer o melhor naquilo que nos dispomos.


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