O Doutor Paulo era o típico médico do SUS. Atendia no CAPS-AD, até
hoje não sei a especialidade dele. Penso que seja clinico geral. Conversamos
apenas uma vez. Acho que o Assistente Social deve ter comentado com ele que eu
era Sociólogo. Ficou interessado e curioso. Quis saber aonde eu havia estudado
e o que fazia um Sociólogo. Interessante notar como as pessoas mais instruídas
quase sempre oscilam diante de um Sociólogo entre a curiosidade insolente e o
interesse solene. O Doutor Paulo não foi diferente.
Com a arrogância típica dos “doutos” da pequena burguesia
inquiriu-me apressado e não sem algum ar de deboche sobre a minha formação.
Respondi-lhe diretamente: Escola de Sociologia e Política com pós em Direitos
Humanos pela Universidade de São Paulo. Fim da curiosidade insolente; inicio da
conversa sóbria e respeitável. Em segundos transforma-se a sua expressão - está
diante de um jovem "esclarecido." Pensei comigo: que merda! Minha
doença passa a ser assunto secundário e de menor importância. Preciso lembrar-lhe
que estou lá por causa do vício.
Ato contínuo, o Doutor Paulo assume o papel de medico do SUS.
Abaixa os olhos para o meu prontuário e com movimentos rápidos e mecânicos
passa-os pelo documento, rabisca algumas palavras ilegíveis e bate o carimbo
com má vontade diversas vezes. Parece tão anestesiado quanto um usuário de
crack, tão ansioso para sair dali quanto aqueles. Faz tudo: fala, lê, escreve
sem levantar os olhos para o impaciente - eu. Após esse rápido procedimento,
levanta os olhos e me pergunta sobre o que faço. Digo-lhe que nada, estou em
recuperação desde que cheguei à cidade e deixei São Paulo. Digo-lhe que anteriormente
que era Coordenador de Educação Social pela Funap no CDP de Sorocaba. Percebi
que não poderia sair dali sem lhe dar uma resposta satisfatória, ou seja, falar
o que um Sociólogo faz na pratica. O senso comum pensa que Sociólogo ou
intelectual não sabe fazer nada, do ponto de vista pratico. Alias, é bom que se
diga, nem todo Sociólogo é intelectual – eu não sou. Entendem que quem pensa ou
escreve não é capaz de executar coisa alguma, opõe deliberadamente a teoria a
pratica, conforme o preconceito e a ignorância disseminem essa falácia.
Explico, afinal, que era coordenador pedagógico em um presídio no interior
paulista auxiliando os educadores da cadeia.
Insisto em voltar ao meu problema e pergunto sobre meus exames.
Diz entediado como quem está ali por obrigação e deixando entrever o quanto
detesta aquilo tudo que estou “bem”, que eu não devo me preocupar com a minha
saúde. Informo-lhe que sou pai e tenho uma filha e ele diz que meu problema é
adquirido, portanto, não devo me preocupar com a hereditariedade da minha
doença. Pensei em dizer-lhe que embora não seja medico não sou ignorante em
matéria de biologia elementar. Resolvo não polemizar. Percebo que pulou de um
assunto ao outro automaticamente mesmo, de modo a ter sempre o controle da
situação e falar apenas o quanto e sobre o que lhe apetece. Sem eu perguntar me
informa que sairá de licença pelos próximos dias, está fazendo um pós-doutorado
em Genebra. Peço-lhe que mande lembranças ao Rousseau. Ele faz cara de espanto
e ri sem graça. Talvez não saiba ao certo quem ele foi ou tenha ficado
impressionado por eu saber. Não importa. Após essa ocasião vi-o apenas mais uma
vez, uns dois meses depois.
Absolutamente desinteressado e absorto nem levantou os olhos ou me
perguntou nada, como se não se lembrasse de mim. Pensei em perguntar-lhe sobre
Genebra, mas, eu absolutamente não estava interessado. Percebi então que talvez
não fosse isso. Na verdade já não era mais objeto de curiosidade e conforme
estivesse ali merecia o mesmo respeito e atenção que todos: nenhum. Percebi que
ainda que já não estivesse mais usando o crack e, embora esse Doutor Paulo
nunca o tivesse usado – quem sabe? -, estava tão desumanizado quanto qualquer
dos viciados que estavam ali em tratamento. Era incapaz de enxergar os outros
enquanto seres humanos e apenas pessoas. Via apenas viciados infelizes e
doentes, moribundos, dignos de piedade e/ou desprezo. Reafirmava assim a sua
superioridade moral, intelectual, material, física sobre aquela turba de
derrotados, atordoados, bestializados e desqualificados. Massa amorfa e
indiferenciada, eis a que se resume o acolhimento e a visão humana no
tratamento publico. Eu, naquela situação, embora fosse o Sociólogo, era a prova
cabal de que minhas teorias, ideologia e conhecimentos de nada valiam,
reafirmando o preconceito, aversão e desprezo típicos da pequena burguesia pela
cultura, intelectualidade e crítica. Isso o Doutor Paulo, como tantos outros,
não deixava de demonstrar, alias, era zeloso em fazê-lo.
Doutor Paulo devia ter cerca de 60 anos. Saudável, articulado,
asseado, sóbrio, soberbo, vivia em Santos - espécie de "Dr. Pacheco." Demonstrava pela fala pausada, gestos contidos e
olhar altivo que nunca sequer havia passado por dificuldades ou privações. Sem
duvidas que era um sujeito de "boa índole”, origens e formação intelectual,
técnica e moral. Penso que cursou o ensino médio e o superior com o incentivo e
a vigilância paternas. Barganhando notas e promoções, deve ter passado incólume
as bebedeiras, brigas, drogas, contravenções, noitadas e outras baixarias que
poderiam comprometer a ilibada reputação da sua família ou o
seu caráter cristão-burguês. Deveria ser filho de medico também,
família bem estruturada, sem duvidas que vinha da classe media ou elite
santista. Antes que os mais precipitados me acusem, não se trata de preconceito,
antes observação. Roupas, gestos, relógios, carros, celulares, postura,
expressões, vocabulário, viagens, gostos, hábitos, enfim, uma serie de coisas e
objetos dizem muito a nosso respeito.
O Doutor Paulo nunca me disse nada, nunca me despertou nada. Nem
raiva, nem pena, nem desprezo, nem admiração, nem consideração, nada. Não
aprendi nada com ele e, talvez, se não fosse por isso nem me lembraria dele ou
me chamaria tanto à atenção. Como pode existir alguém como ele nesse tipo de
função e trabalho? Como pode alguém assim tão apático e indiferente fazer esse
tipo de trabalho? Como alguém que nem imagina o que seja qualquer miséria,
privação, violência, medo ou os efeitos colaterais do crack sobre o individuo e
a família pode pretender olhar nos olhos de alguém que sofre? Deve ser por
isso, talvez, que ele não se atreva a olhar. Evidente que ele deve ter estudado
isso tudo, mas, como diz o poeta, “escrever sobre o amor não é amar, pensar
sobre a vida não é viver.” Nada alem de controle e profilaxia sociais, levada a
efeito por médicos, psicólogos e assistentes sociais de forma
arbitrária e indiferente. Pior ainda é o controle sobre os medicamentos, posto
que se verifica que o SUS pratica a política da contenção de gastos procedendo
ao racionamento sistemático de remédios. Afirmo categoricamente: a medicação,
acompanhada da Terapia é no mínimo 3/4 no tratamento contra o vício do crack - o crack produz uma reação química no organismo que só pode ser contrabalançada por outra.
Receio, no entanto, que nada disso mudará nas próximas décadas.
Mário, que interessante relato!
ResponderExcluirPoxa, na descrição do Dr. Paulo reconheci um tanto de outros médicos que já vi por ai...rs
Eu já fui vítima da Máfia de Branco - quando grávida, há 4 anos atrás, fui a um gineco e ele me mandou retornar a casa mesmo constatando sangramento! Resumo, passei aquela noite com dores terríveis, que nem mesmo senti durante o trabalho de parto do meu único filho - sem saber como conter a hemorragia fui levada ao hospital e encaminhada à curetagem.
Qto sofrimento poderia ter sido evitado...
Mas, sofrimento, segundo eles, se estanca con analgésicos!
Abrzo
Os medicos tem o costume de falar entre si assim: "Olavo estou vindo do PS tem uma tuberculose la te esperando"
ResponderExcluirNao enxergam gente...nao sei se no curriculum deles tem a disciplina antropologia para medicina para eles aprenderem minimamente o que é alteridade, mas mesmo que tenha eles nao devem nem prestar atençao...se consideram e sao considerados Deus, nao erram nunca, sao os eleitos, vestem branco. Voce viu o bam bam bam da saude mental do ministerio da saude admitindo publicamente que os medicos nao estao preparados para receber os dependentes quimicos no sus???? Voce viu o conselho federal de medicina dizer que vai lançar uma cartilha para que os medicos (especialmente os psiquiatras) saibam o que fazer diante de um dependente quimico??? Ta uma briga danada entre os antimanicomiais e os psiquiatras que se dedicaram este tempo todo a efetivamente tratar os dependentes quimicos e pesquisar...os primeiros querem abolir a internaçao os segundos sabem que dependente de crack em fissura nao se trata em ambulatorio e ponto. Faz quanto tempo que isso ta ai? Os caras vao discutir isso agora???????? Mas vamos continuar otimistas...