segunda-feira, 25 de julho de 2011

Acusadores



O que mais sentia na ausência era pela minha filha – sinto até hoje, sentirei sempre. Remorso, raiva, culpa, tristeza profundas. Até hoje não entendo como pude deixá-la diversas vezes, embora saiba e admita o porquê. O maldito vício te arrasta, domina, engana.

Impossível pensar sob efeito da substancia – isso acontece na abstinência também. Ninguém sabe o que é isso, embora todos sintam-se no direito e muito a vontade para julgar - moralmente, clinicamente, legalmente, afetivamente, socialmente, espiritualmente. Os técnicos, cientistas, estudiosos, pesquisadores, altruístas, abnegados combatentes ou repressores. Conforme Hesíodo, “primeiro o lar”, lá também se inicia o sofrimento, o julgamento e a punição. Pior que a punição é sempre o julgamento. Sofre-se mais com ele do que com a punição. Alias, curioso como mesmo quando a punição acaba persiste o julgamento. Sempre serei julgado, sempre haverá um juiz. Entretanto, sempre me julgarei e condenarei, embora todos prefiram faze-lo ou não me concedam esse direito - como se o pudessem!

A criança não julga, ela só ama. Ama na sua pureza, inocência, potencia. Até quando sofre não julga, só ama. Embora tenha mentido, enganado, me omitido, fugido, me escondido, negligenciado, sofri mais que fiz sofrer. Sofro ainda, sofrerei sempre. Eu perdi duas vezes, elas apenas uma – minha filha e a mãe dela. Seria demasiado estúpido e presunçoso se pretendesse relativizar o sofrimento! Cada um sabe o quanto sofre, falo apenas que s minha perda representa duas pessoas, duas saudades, duas ausências, duas culpas. Admito, no entanto, que os mais vulneráveis sofrem mais – mulheres e crianças - e, ter consciência disso apenas aumenta a minha dor e culpa.

Até quem não te conhece ou a sua vida julga. Até quem não conhece nada que não seja a sua própria realidade e nunca deixou a sua zona de conforto. Até quem não conhece realidade alguma. Até quem ignora a realidade. Até quem nunca viveu essa realidade ou conhece a dor e a miséria, todos pensam e se sentem a vontade e no direito de julgar Todos julgam! Terra de justos e justiça! Mereço cada dia de sofrimento por isso, mas, basta de julgamentos alheios, cínicos, oportunistas e aviltantes!

Quando me lembro das lagrimas, da insegurança, da ausência, da confusão e da tristeza causadas, chego a pensar que só o sofrimento não basta, talvez a morte. Considero minha filha e não me sinto no direito de julgar por ela, resigno-me a sofrer, ainda que considere que a esteja fazendo sofrer um pouco mais, devo submeter-me ao julgamento dela. Até esse dia tenho obrigação de viver e envidar toda a minha vida para recompensá-la e fazê-la feliz. Se a minha ausência definitiva a fizer farei.

As lagrimas que fiz cair descem aos milhares pela minha face. Todos os dias. Se eu pudesse fazer um único pedido pediria que ela não seja como eu. Pediria que ela não tivesse jamais me conhecido. Que a mãe dela não tivesse me amado. Porque tem gente que só sabe sofrer, fazer sofrer. Tudo esteve diante das minhas mãos e dos meus olhos. Tudo escapou. Tudo destruí, afastei e perdi. E tudo me foi dado e tirado do que um dia nem sequer havia sonhado. E agora em minhas mãos vazias só cabe o meu rosto deformado. Quanto peso pode caber numa consciência? Odeio o meu vício todos os dias mais que tudo e todos os que pensam sobre ele, que vivem dele, que dissimulam sobre ele, sobre o sofrimento e a morte. Na dor não cabe teoria, não cabe ciência, não cabe ideologia, não cabe dogma, não cabe técnica. A ciência é uma técnica, a teoria uma hipótese, a ideologia uma visão de mundo, uma representação. E a vida ou a dor e as esperanças? Não pode haver certezas. O amor e a vida não se aprendem em livros e nem nas cátedras. O amor e a solidariedade ou são intrínsecos ou não são. Ainda fazendo sofrer amava e sofria, ainda amo, ainda sofro. Sei pensar, sofrer, respeitar e sou solidário, sei mais que poderia saber e do que julgam os donos do saber e do poder. Só restou o amor e a dor e aceito a ambos. Tenho fé na vida, na luta e que o amor é maior. Porque "aquilo que não me mata me fortalece", e isso é também vontade de potencia.

2 comentários:

  1. sua filha é a única coisa realmente boa que você fez.

    ResponderExcluir
  2. A familia tambem tem que se tratar, muitas vezes se tornam mais crueis que o proprio adicto. Se vitimizam tanto quanto e estimulam a recaida...ou pior...parecem torcer pela recaida. Alguns familiares nao se recuperam nunca de perderem a muleta existencial de ter um adicto em casa.O adicto se recupera, vai cuidar da propria vida e os familiares ficam vigiando, julgando e remoendo rancores ...orfaos do problema ao qual se acostumaram, perplexos porque se acostumaram a viver em funçao de um problema que nao existe mais e que era motivo para nao cuidarem de suas proprias vidas. Triste, mas real. Eu vivo isso, sou familia.

    ResponderExcluir