sábado, 24 de setembro de 2011

Descaminhos

As madrugadas são sempre mais silenciosas, sinistras, sombrias. No domínio do vício se ignora o que seja o medo, embora se perceba que o mal espreita. Muitas vezes eu estive ao lado dele e da morte. Sem temor, não destemido. Não sei ao certo em que acredito, apenas não me considero esperto ou forte suficiente para escapar ileso de tudo que escapei. Na verdade, penso que sou apenas um ousado e abusado com alguma sorte. Repeti o mesmo erro diversas vezes, conforme o vicio te domine e o deixe incapaz de refletir com clareza.


Depois de muitos anos usando drogas você se torna capaz de identificar usuários e traficantes em qualquer lugar. Quando me mudei para uma cidade do interior trabalhando em um presídio não podia me arriscar e nem me expor. Mudei-me então para um bairro bem afastado do presídio. Passei meses usando apenas em Sampa e a semana toda me virava sem. Passei a frequentar alguns bares pela cidade. Solitário, bebia todos os dias. Logo comecei a perceber os "movimentos." Conversa vai, conversa vem, um dia bebendo com uns caras o papo surgiu. Logo estava indo com eles até a boca.

A boca ficava em um dos caminhos mais estranhos e sinistros que já havia passado na vida e em um dos bairros mais violentos da cidade – Nova Esperança. Era preciso andar por uma trilha estreita, ladeada pelo mato alto. Trilha tortuosa e inclinada passava atrás do estacionamento do Batalhão da PM e do Corpo de Bombeiros da cidade. A trilha começava no final da rua, que por sinal era uma rua sem saída. Terminava nos trilhos do trem e continuava subindo por uma escadaria estreita e mal feita, entrando em uma viela. A boca era lá. Fui apenas uma vez com esses dois caras que conheci naquela noite. Todas as outras vezes depois fui sozinho. De dia, à noite, de madrugada. Varias vezes num mesmo dia. Feito um insano entrando e saindo daquela rua. Passos rápidos passando varias vezes na frente daquele Batalhão. Debaixo de chuva e apenas com uma lente de contato nos olhos, enxergando apenas com um olho. Escorregando, tropeçando, me esgueirando e equilibrando-me para não cair naquela trilha lamacenta. Era só eu, ela, a escuridão e o silencio profundo da madrugada. Ouvia ruídos mínimos, meus passos, meu coração, minha respiração, a chuva. Via luzes abafadas ao longe. Tentava ouvir vozes ou passos além dos meus. O pensamento ia a mil por hora na cabeça, incapaz de concatenar as ideias. O nível de tensão e adrenalina era alto demais. Ao mesmo tempo, bastava parar um minuto para respirar, subir as escadas ou descê-las sem cair, por exemplo, para perceber a calmaria e o silêncio mortais que te fazem perceber a própria solidão e temer o próprio pensamento e a paz. Nesses instantes de sanidade é que às vezes se quer se entorpecer. 

A segunda vez que fui lá, simplesmente cheguei e me enfiei no meio do movimento e já fui pedindo como se fosse da casa. Passei batido, nem perguntaram nada e já foram me servindo. Eram todos moleques. O mais velho devia ter 18 anos. Deslumbrados com o crime e as suas pistolas e revolveres. Ingênuos e idiotas imaginava que mais cedo ou mais tarde encontraria-os no presídio chorando. Um estava sempre fumando maconha. Sempre sorrindo e falando besteiras. Sempre me oferecia - queria me deixar à vontade. Nas outras vezes eu já era da casa mesmo. Em todas às vezes nunca me pediram nada, nunca me perguntaram nada, nunca me ameaçaram ou me senti intimidado e nem desconfiavam quem eu era. Chegou a me apresentar a sua mãe e ela reclamou da vida dele para mim. Falar o que? Disse que era fase de adolescente. Logo ele sairia dessa - por bem ou por mal. Nunca fui abordado e nem parado por nada nem ninguém. Muito embora soubesse que poderia ser abordado na entrada ou saída da trilha - que explicação daria? Ou no meio dela por algum nóia na fissura ou sangue no olho - como escaparia ou me defenderia? Poderia ser vitima de qualquer covardia ou crueldade - quem saberia? Caminhava cerca de quarenta minutos para ir e o mesmo tempo para voltar. Ainda assim eu ia, por isso sei que se existe o mal algo além também existe porque nada me aconteceu e eu andava só pelas sombras. Enquanto minha família dormia, meus amigos dormiam, os presos dormiam e a cidade dormia. Além de mim e das sombras alguém também vigiava. Porque ninguém tem tanta sorte. Ninguém pode ter nada de graça - eu sei o preço. Por isso pago ele e tenho a obrigação de escrever, falar, agradecer, trabalhar, sobreviver, viver....

2 comentários:

  1. Voce consegue tornar as coisas tao factiveis.Como voce disse em outro post...nao é como nos filmes. Digo que tambem nao é como na TV.

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  2. http://www.youtube.com/watch?v=f35HluEYpDs

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