terça-feira, 29 de novembro de 2011

Fissuras

Ele entrou, não parou, não encarou, disse apenas "oi" enquanto andava apressado e saiu. Não conseguiu e nem queria parar, não podia encarar, falar, sorrir, beijar, mal podia respirar - ofegante. Ao perceber a sua presença, inocente e feliz ela foi atrás dele enquanto ele saía apressado. Despediu-se fugindo, sem olhar para trás e deixou-a chamando por ele e chorando atrás da porta. Ele saiu desesperado, rápido tentando não ouvir e distanciando-se o mais possível. Era viciado em crack, estava sob efeito da droga e sabia que não era capaz de disfarçar isso. Tinha consciência disso, por isso espreitava e fugia. Tinha vergonha de entrar em casa assim e olhar a criança pura, falar com ela, tocá-la. Não podia controlar a fissura, ainda que estivesse envergonhado dessa situação e arriscando-se nela. Em menos de dois minutos ele entrou e saiu deixando-a para trás com a sua esposa e mãe dela - mal parou, mal falou com ambas, mal conseguiu disfarçar sua fissura. Deixou para trás as duas pessoas mais importantes da sua vida, que mais amava e que mais o amavam, esperavam e dependiam dele. Deixou-as por causa de algumas pedras de crack, consumidas no mato, próximo a via férrea, entre lixo, entulho, moscas, ratos. Saiu sentindo o peso da decepção, da vergonha, da raiva e, sobretudo, da rejeição, incompreensão e tristeza de ambas. Ouviu a mãe dizendo ainda: “Vêm filha, esquece esse seu pai.” Ele também estava triste e decepcionado, mas, não podia controlar naquele momento e se foi com lagrimas de dor, frustração e ódio de si. O choro passou, a tristeza passou, elas passaram. Aquele choro puro e triste de criança, o lamento amargurado da mulher foi à maior fissura que podia sentir. Percebeu a fissura provocada entre eles no seu coração e na alma. Enquanto viver se lembrará desse dia com raiva, medo, vergonha, profunda dor e tristeza. Ela está lá aberta, rasgada, exposta, dolorida, profunda. A tristeza, o sofrimento e as lagrimas dos inocentes e de quem te ama estão alem do que qualquer homem pode pagar ou suportar. Porque a culpa, o remorso, a dor e o arrependimento de quem causa sofrimento não diminui com o perdão de quem sofreu. 


Um comentário:

  1. O Perdão e a Promessa

    Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria por assim dizer limitada a um único acto do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas das suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço. Se não nos obrigássemos a cumprir as nossas promessas não seríamos capazes de conservar a nossa identidade; estaríamos condenados a errar desamparados e desnorteados nas trevas do coração de cada homem, enredados nas suas contradições e equívocos - trevas que só a luz derramada na esfera pública pela presença de outros que confirmam a identidade entre o que promete e o que cumpre poderia dissipar. Ambas as faculdades, portanto, dependem da pluralidade; na solidão e no isolamento, o perdão e a promessa não chegam a ter realidade: são no máximo um papel que a pessoa encena para si mesma.

    Hannah Arendt, in 'A Condição Humana'

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