Ele entrou, não parou, não encarou, disse apenas "oi"
enquanto andava apressado e saiu. Não conseguiu e nem queria parar, não podia
encarar, falar, sorrir, beijar, mal podia respirar - ofegante. Ao perceber a
sua presença, inocente e feliz ela foi atrás dele enquanto ele saía apressado.
Despediu-se fugindo, sem olhar para trás e deixou-a chamando por ele e chorando
atrás da porta. Ele saiu desesperado, rápido tentando não ouvir e
distanciando-se o mais possível. Era viciado em crack, estava sob efeito
da droga e sabia que não era capaz de disfarçar isso.
Tinha consciência disso, por isso espreitava e fugia. Tinha vergonha
de entrar em casa assim e olhar a criança pura, falar com ela, tocá-la. Não
podia controlar a fissura, ainda que estivesse envergonhado dessa situação e
arriscando-se nela. Em menos de dois minutos ele entrou e saiu deixando-a para
trás com a sua esposa e mãe dela - mal parou, mal falou com ambas, mal
conseguiu disfarçar sua fissura. Deixou para trás as duas pessoas mais
importantes da sua vida, que mais amava e que mais o amavam, esperavam e
dependiam dele. Deixou-as por causa de algumas pedras de crack, consumidas no
mato, próximo a via férrea, entre lixo, entulho, moscas, ratos.
Saiu sentindo o peso da decepção, da vergonha, da raiva e, sobretudo, da rejeição,
incompreensão e tristeza de ambas. Ouviu a mãe dizendo ainda: “Vêm filha,
esquece esse seu pai.” Ele também estava triste e decepcionado, mas,
não podia controlar naquele momento e se foi com lagrimas de dor, frustração e
ódio de si. O choro passou, a tristeza passou, elas passaram. Aquele choro puro
e triste de criança, o lamento amargurado da mulher foi à maior fissura que
podia sentir. Percebeu a fissura provocada entre eles no seu coração e
na alma. Enquanto viver se lembrará desse dia com raiva, medo,
vergonha, profunda dor e tristeza. Ela está lá aberta, rasgada, exposta,
dolorida, profunda. A tristeza, o sofrimento e as lagrimas dos inocentes e de
quem te ama estão alem do que qualquer homem pode pagar ou suportar. Porque a
culpa, o remorso, a dor e o arrependimento de quem causa sofrimento não diminui
com o perdão de quem sofreu.
O Perdão e a Promessa
ResponderExcluirSe não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria por assim dizer limitada a um único acto do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas das suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço. Se não nos obrigássemos a cumprir as nossas promessas não seríamos capazes de conservar a nossa identidade; estaríamos condenados a errar desamparados e desnorteados nas trevas do coração de cada homem, enredados nas suas contradições e equívocos - trevas que só a luz derramada na esfera pública pela presença de outros que confirmam a identidade entre o que promete e o que cumpre poderia dissipar. Ambas as faculdades, portanto, dependem da pluralidade; na solidão e no isolamento, o perdão e a promessa não chegam a ter realidade: são no máximo um papel que a pessoa encena para si mesma.
Hannah Arendt, in 'A Condição Humana'