Aquele ano foi emblemático.
Particularmente foi importante porque era aquele em que o homem começa a
envelhecer. Lembrava-se da advertência de Camus na “A Peste.” Foi em um dia de
março que ele a encontrou. O calor, demasiado era o calor. Insuportável. Ele
pensava em como é possível pensar, respirar, viver naquela espécie de fornalha? Tanto era o
calor que só restava o silêncio e a lassidão. Aí ela apareceu.
Os homens receiam a mudança, mas não
escapam a tragédia. Celebram a não-mudança e quase sempre orgulham-se do próprio
medo e da ignorância. Da sua parte era natural ignorar tudo - naquele momento
menos o calor. Por que tanto calor? Por que tanto medo? Por que tanta
indiferença? Por que tanta ignorância? Perguntas tolas e indolentes para
espíritos inquietos; acentuadas pelo desconforto ocasionado pelo calor.
Quando ele a viu, no entanto, abriu as
portas e as janelas e a luz entrou e o ofuscou. Mas não é possível escapar a
tragédia, ainda que se aceite de bom grado a mudança, venha como vier e de onde
vier. O calor, a luz, o torpor. Ele podia ver, ouvir, sentir, mas estava
fustigado. Renomada tolice tergiversar sobre os significados e os sentidos, enxergar
ou escutar. Que diferença faz quando se tem consciência das misérias, tragédias
e da finitude? Frivolidades para presunçosos.
O sol queimava e sufocava. Ela
brilhava e pairava sobre as misérias e o flagelo. Um sopro de vida, alívio, uma
brisa para os olhos. Aquela era uma ocasião solene. Nem tanto para ele.
Estivera envolvido em tantas outras antes. Não que fosse importante, não é e
nem pretende ser. Deus sabe o quanto ignora isso e se esforço para tanto! De
fato, naquele momento apenas inquietava-se por saber como se pode viver dentro
de um caldeirão fervendo! Interessava-se mais pelos decotes, pelas roupas
curtas e coladas, pelo suor, pela tatuagem e o anel no dedo do pé da moça,
pelos cabelos tingidos, pelos piercings diversos e os olhares curiosos e
maliciosos.
Ela se vestia com charme e discrição.
Todas pareciam vulgares perto dela. Nunca pode ficar mais do que dois minutos
diante de um espelho, por nada nem ninguém, por isso não consegue entender esse
excesso de zelo. Apesar do calor, fumava, tossia e tentava se concentrar na
fumaça do cigarro que o distraía. O suor escorria pela cabeça e irritava. Via e
pensava nos insetos e nas crianças seminuas. Nas moças e mulheres seminuas.
Os olhares se cruzaram e o calor ficou
mais ameno. Tudo a sua volta resplandeceu. Como podia ser um homem tão abençoado
e idiota?! Todos os homens devem ser abençoados e idiotas cada qual a sua
maneira e medida. Apenas um arrebatamento. Nada mais que um momento para
perceber e se ausentar. Desapareceu, silenciou. O mundo estava todo à sua volta
e não o percebes?!
Os pássaros, os insetos, as vozes e
todos os sons, as sensações, quanta coisa pode ser o mundo em tão pouco espaço
e tempo! Todos celebravam os seus sonhos, esperanças e ilusões. Ele também os
tem, embora desde que compreende um pouco de si, do mundo e dos homens os tem cada
vez menos.
Lá estava ele por causa de política.
Aquilo que transforma-nos e a sociedade. O Leviatã agindo sobre a sociedade e o
individuo. A Esfinge indecifrável que nos devora. Tudo que é do homem é
politica, porem, ele é mais – o homem é o animal político! A sua fala foi
direta como deve ser. Foi saudado por isso. É um homem publico - sem vínculos
partidários e interesses eleitoreiros – antes, porem, sabe-se apenas homem. Por
isso fala apenas assim. Entende-os todos e, assim, sabe aquilo que é, pode e
deve ser cada um deles – o homem publico e o homem de partido. Não omite os
limites e as diferenças, ao contrario, acentua-os. Sabe que maior de todos e o mais complexo é
apenas o homem. Por isso admira-o e o respeita acima de todos.
Ela estava lá, o viu e ouviu-o. Ela
não o questionou com palavras. Ela enxergou além do homem publico e da política. Porem, ninguém é capaz de ver tudo... . Há tempos ele já não tinha
tanta clareza sobre tudo, nem ilusões, mais ainda naquele dia. Suas esperanças
se reservavam as pessoas, apenas aos homens simples com os seus sonhos e
desejos, muito maiores e mais complexos que os interesses, exigências e
veleidades do poder.
O calor consumia-os e com eles aquilo
que foram. Tudo o que existia neles. Os sonhos e as sensações, os sentidos e
tudo mais se desvaneciam e esvaíam com ele. Apenas podiam ser criaturas viventes que
habitavam debaixo do céu. Indiferentes para ele como somos uns aos outros. Tudo
isso se passou em pouco mais de duas horas. E o tempo e tudo que experimentamos
nele são falsos, superiores aos nossos juízos, sentidos e certezas. E o homem deve
ser o caos cujo impulso é uma compulsão pela ordem. O fato é que o calor e ela o entorpeceram e
ele pode apenas experimentar aqueles momentos e, talvez, por isso, tenha vivido
mais e apreendido sobre tudo o que pensava saber e conhecer antes. E o dia se
foi junto com tudo o que ficara para trás e ele sempre
ressurge após o crepúsculo.
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