quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Homens, crimes e prisões


Ele era alto e forte, muito forte. Intimidava. Peso pesado e eu leve. Um pouco mais novo do que eu e já estava havia uma década no sistema. Tínhamos em comum além da idade e o trabalho o gosto pelo boxe. Por isso éramos bons colegas de trabalho e nos respeitávamos como profissionais e homens. Estava sempre no portão da ala com a “12” em punho. Apesar do porte, da expressão dura – talvez devido o ambiente e o ofício - era um sujeito simples e amável. Calmo, de conversa mansa e agradável, divertido. Passava tranquilidade aos demais, inclusive para os presos. Quando conversava com alguns deles – o que não era raro -, tratava-os por “filho” ou “jovem” – inclusive os mais velhos que ele.

Contei a ele sobre a minha curta carreira de pugilista amador e ele sobre suas experiências no boxe e no Muay-Thai. Falávamos sobre as técnicas, os estilos, golpes, os grandes lutadores e as lutas memoráveis. Contei-lhe sobre minha experiência na Secretaria de Segurança de Guarulhos e o trabalho nos DPs e Batalhões da PM, as manipulações e inconsistências nas estatísticas e registros de homicídios. Contou-me sobre suas experiências com o Grupo de Intervenção Rápida (GIR) e as rebeliões que enfrentou – tanto em presídios quanto na Fundação Casa.

Causou-lhe espanto saber ainda que eu havia atuado em comunidades cariocas – Providência, Maré e Nova Iguaçu. Contei-lhe sobre o tráfico e o seu poder de fogo – mostrei-lhe diversas fotos de cartuchos deflagrados pelo tráfico, disparados em solidariedade ao “partido” durante a madrugada no dia dos ataques em São Paulo em 2006, ocasião em que eu trabalhava na Providência. Contei-lhe sobre os disparos de “traçante.” Sobre a “biqueira” na entrada da comunidade - em cima de um bar na via principal daquela região - no mesmo quarteirão da creche, Associação dos Moradores, escola, internet grátis da prefeitura, Cemitério dos Ingleses e em frente à Cidade do Samba (região portuária no centro da cidade). Expliquei-lhe como funcionava o ponto – 24 horas por dia sempre com três "soldados", dois para segurança e contenção armados com FAL ou AK-47 e um para servir a freguesia. Os olheiros ficavam próximos em outro ponto melhor localizado. Estavam sempre prontos e dispostos para o confronto e, talvez, por isso, nunca vi uma viatura parar – apenas passavam e ignoravam o trafico como se ele não existisse ou fosse “parte da paisagem” -, embora o ponto fosse acintosamente visível. Contei-lhe sobre a precariedade das condições da PM carioca e da sua baixa autoestima – o que sem duvidas colaborava para a corrupção da tropa.

Sempre me ouvia com atenção e interesse. Uma vez me contou sobre uma ação do GIR na Fundação Casa. Contou-me que já existia há tempos uma espécie de PCC-Jovem. Disse-me que agiram em uma rebelião para retomar a unidade que estava sob o controle da facção. Relatou sobre as mordomias – TV, DVD, celular e até frigobar - e privilégios – visita intima - dos lideres juvenis dentro da unidade, bem como seu prestigio e poder junto aos demais menores e até alguns agentes. Contou-me sobre o armamento e as táticas usadas na contenção e invasão. Balas de borracha, spray de pimenta, bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral. Escudos, capacetes, coletes, cassetetes. Armas não letais, mas com alto poder de intimidação e lesão. Explicou que após a retomada da unidade, a técnica utilizada era a do “cú no chão.” Todos nus com a cabeça entre os joelhos abraçando as pernas. Tal técnica servia – do ponto de vista da segurança - para assegurar que todos estavam desarmados e indefesos, bem como para humilhá-los. Explicou que as agressões e torturas - socos, tapas, chutes, sufocamentos e enforcamentos - eram parte da "técnica" – seria isso medida socioeducativa? Contou-me que muitos eram constrangidos e intimidados a participar disso e, que por isso, havia deixado o grupo. Por outro lado, frisou que muitos praticavam com gosto e zelo. Não aceitava covardias e entendia que a humilhação não recupera, corrige ou provoca qualquer atitude ou pensamentos positivos/produtivos. Depois de um tempo estava tornando-se embrutecido, calado, nervoso, tenso, insone e passando tudo para a sua família. Nesse momento decidiu que era à hora de sair, ainda que fosse necessário romper com alguns colegas e ser visto com desconfiança e desdém por outros. A paz consigo mesmo e em casa vale mais que a consideração e o respeito de alguns sádicos e o bônus no salário por cada ação.  Hoje é um simples AEVP – Agente de Escolta e Vigilância Prisional.

A cadeia por si só já é uma tortura. A ausência de liberdade e privacidade. A convivência forçada. O medo e a desconfiança. A incerteza e a tristeza. A miséria e a violência extremas, em todas as suas formas e expressões. Constantes e perenes. A cadeia é o mundo virado do avesso, uma insanidade, uma aberração. Percebe-se, contudo, que é no pior dos lugares, nas piores situações e entre as piores pessoas que se pode também encontrar as melhores e o melhor do ser humano. Ele foi uma dessas gratas surpresas – tive outras entre funcionários e presos.

Numa ocasião a cadeia estava em obras. Construía-se um novo alojamento para a tropa. O diretor era também o comandante da tropa. A tropa era um seu produto, motivo de orgulho para ele e de referencia de política de segurança para o Estado. Assim, recebia convites para apresentá-la e até dar consultoria e palestras em outros Estados. Desse modo angariou patrimônio e prestigio.

A obra, em uma cadeia, evidentemente era publica. Por outro lado, embora seja requisito indispensável da administração publica, transparência é ficção ou lenda tanto quanto a impessoalidade ou o respeito aos Direitos Humanos nas cadeias paulistas – meras formalidades que não vão além dos documentos e discursos. Os trabalhadores eram presos de outro presídio. Nunca vi a entrega de material de construção no local, embora a obra nunca estivesse parada. Nunca vi um engenheiro ou outro técnico da empresa contratada pela licitação. Também nunca vi um fiscal publico – de obras ou do trabalho - acompanhando a obra. É impressionante a quantidade de presos que trabalham dentro de um presídio, tanto na administração quanto na manutenção dele. O rapaz da informática – preso -, por exemplo, era estudante de medicina e ex-seminarista – discutia Sartre e Merleau Ponty comigo.

Havia um preso evangélico que trabalhava na regional da Funap. Era chamado pelos outros de "reverendíssimo." Consta que fosse pastor. Tenho uma intuição boa para esses "tipos" e, muitas vezes, ela é recíproca. Embora falasse sobre a Bíblia e Deus, não fazia proselitismo e evitava falar comigo. Não que tivesse medo ou demasiado respeito, apenas me olhava e falava com desconfiança e algumas vezes até com dissimulado deboche. Procurava se mostrar outra pessoa para mim – menos severo e mais descontraído. Porem era nítido o seu desconforto na minha presença e, a sua postura e discurso desconfiados. Nunca me olhou nos olhos e falava de forma indireta, com meias palavras e de maneira sucinta. Evitava ficar a sós comigo. Disse-me apenas uma verdade: “não existe nada mais corrupto no mundo que diretor de presídio. Basta comparar o patrimônio de qualquer um deles com a sua renda.” Falou-me na cozinha, durante o almoço, na semana em que sairia de condicional após cumprir 16 anos no regime fechado. Nunca me interessei e nem me interessa saber o crime que cometeu, pela sua pena pode-se deduzir que não era um estelionatário. Penso, porem, que essa sua observação, aparentemente despretensiosa, tenha sido uma denuncia velada, um ultimo ato de revolta contra o sistema e orgulha-me ter sido digno disso. 

Soube que o diretor do CDP era proprietário de uma gráfica. No final do ano estava de férias e tinha ido a um Spa para perder peso. Depois iria para os Estados Unidos atravessar o país de “Harley” com uns amigos. Era casado e pai de duas meninas. Tudo absolutamente "compatível" com a renda de um diretor de presídio – um ASP com quase vinte anos de serviço e bacharel em Direito! Conforme fosse "empresário" do ramo tipográfico, pensava que fosse um homem rico que buscasse prestigio político e social no serviço publico em uma cidade do interior paulista, posto que sua riqueza viesse de outros meios e da sua origem. O AEVP riu: “lavagem de dinheiro.” A realidade é dura e simples, o resto é ilusão, tolice, demagogia ou cinismo. 

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