domingo, 8 de janeiro de 2012

Excessos


Toda violência é um excesso. Uma apelação. Existem varias formas de violência e pode-se expressa-la de varias maneiras. São diversos os pontos de vista, as teorias e os campos do saber que se dedicam a estuda-la – entende-la e até justifica-la. Passa pela moral, pela ciência, pela cultura, perpassando toda a sociedade, suas diversas instituições e os indivíduos. A psicanalise talvez seja o campo do saber que nos oferece as melhores respostas no que diz respeito aos protagonistas - indivíduos.

Toda violência é uma relação de poder. O poder daquele que se supõem mais forte e capaz de subjugar o outro, domina-lo. A violência, portanto, deve corresponder o medo e a obediência. Quando isso não ocorre percebe-se a sua nulidade e a impotência daqueles que a exercem. O sargento da Policia Militar era um sujeito truculento. Em meio a uma abordagem por suspeita de consumo de drogas, imediatamente fez aquilo que considerava ser a sua expertise, oficio e prazer.  Desferiu-lhe um soco na cabeça, seguido de um cruzado no peito. Um subornidado entendeu aquilo como um convite e acertou-lhe as costas. Agressões físicas e verbais. Questionamentos diversos e desordenados seguidos de ofensas e acusações. Evidente que não se pretendia esclarecer coisa alguma, o objetivo era apenas demonstrar força e se divertir com o terror que ela pode causar.

O sujeito estava cercado de PMs e, naquele local e situação não era possível identificar qualquer patente, portanto, o fazia conforme falavam entre si. Após 20 anos da primeira abordagem, percebeu que as praticas da PM continuam as mesmas. Do ponto de vista objetivo, rigorosamente nada mudou no procedimento dela, apenas nas cartilhas e manuais de conduta, nos discursos oficialescos e nas propagandas institucionais.
O PM mais jovem, por sua vez, embora tivesse postura de oficial, era apenas um soldado. Conversava com calma e sobriedade, chamava-lhe de cidadão e pedia autorização para revista-lo e os seus pertences. Fazia perguntas de forma pausada e com clareza, sem ofensas, gritos e qualquer outra forma de intimidação. Sua postura sóbria e profissional prevaleceu.

O sujeito, por outro lado, conhecia há tempos à postura truculenta – como vítima, observador e pesquisador. Havia sido ainda boxeador, sabia apanhar e bater. Em momento algum acusou os golpes, demonstrando medo, raiva ou subserviência. O PM jovem abriu o dialogo e o sujeito entendeu que com ele isso fosse possível. Identificou-se como trabalhador, pai de família, sociólogo e pós-graduado em Direitos Humanos pela USP. Silencio. Olhares de cumplicidade, medo, raiva, dúvida, curiosidade e apreensão. Ele não era um só mais um usuário qualquer, como aqueles que vagam pelas ruas e que eles estão acostumados a espancar por diversão ou para manter o costume, ele era um usuário esclarecido. Embora fosse pobre, questionava-se sobre o por que todo sujeito mais ou menos esclarecido é confundido com a elite e a classe media? Simples: a boa educação é reservada a elas e a policia aqueles. Fim da violência física e reinicio da verbal e da intimidação, porem, ficou evidente a mudança da sua motivação.  
  
Após breve silencio e mais interrogatório, o sargento começou o discurso padrão da tropa na rua, diferente daquele que consta dos manuais e propagandas institucionais. Trata-se daquele típico das formações militares tradicionais – “lei do mais forte” e “manda quem pode e obedece quem tem juízo.” É um tipo de poder que respeita apenas um seu igual ou que é considerado superior – mais forte. Ilegítimo e ilegal porque ignora quaisquer princípios morais ou éticos, assenta-se exclusivamente na violência e na força.“Direitos Humanos é o caralho! Eu cago pros Direitos Humanos! Coisa de vagabundos e defensores de bandidos! Direitos Humanos comigo é no tapa e na bala!”  Ele tinha vontade de rir e sentia pena ao mesmo tempo – pois, como podem existir pessoas tão fracas, baixas e pobres intelectualmente, moralmente e espiritualmente?! Como podem pessoas assim, representarem o Estado e pretenderem defender a sociedade e reivindicarem para si autoridade legal e boa fé publica? Portarem armas?! Era notório o desconforto, insegurança e descontrole do sargento PM diante do seu silencio e uma ou outra resposta curta - porque não é possível dialogar com um troglodita que fala com os punhos. 

Receoso e curioso acerca das suas informações, questionou sobre o por quê dessa sua formação  ao que ele respondeu que deu-se devido os seus estudos e experiências na área de Segurança Publica – SSP e Funap. Conversas a parte: “O cara não é bandido, que merda, só usuário nessa porra.” “É, mais um filho da puta viciado.” “Como pode? O cara trabalhou na SAP e na SSP!” “Que merda!” “Como pode, sociólogo e pós graduado em Direitos Humanos usando drogas?” Do terror e deboche passou-se a apreensão sobre como proceder e resolver a questão. Debates a parte e PMs pensativos andando de um lado para o outro, o mais jovem acompanhado de outro conversam com o sujeito de lado e respeitosamente perguntam-lhe sobre seu trabalho e formação. Ele explica-lhes que faz uso eventual e recreativo – se é que se pode falar assim – e que raramente usa na via publica, posto que também tenha família. Explica que fazia mapeamento de homicídios e atuava no CDP de uma cidade do interior. Não conseguem disfarçar certa tristeza e desconforto pelo seu vicio e ao mesmo tempo admiração pelo seu trabalho e formação. Assim é o ser humano, instável, incompleto, imperfeito, infeliz e incrível.

Após isso os que checavam seus documentos constatam uma ocorrência pela lei 9.099. O PM interroga-o e provoca: “Você que trabalhou na SAP e SSP sabe de cór o que é a 9.099?" Após alguns anos e naquele momento não podia lembrar-se, afirma. "Agressão" afirma o soldado, ao que ele responde que se deu devido a uma confusão entre inquilinos, quando o marido agredia a esposa em casa com um filho recém-nascido e ele e o irmão interviram. “Não aceito covardia no quintal da minha casa”, disse. Involuntariamente o sargento truculento acenou com a cabeça concordando. Nesse momento já não havia mais agressões de nenhum tipo e nem rigor algum no trato ou procedimento – mãos soltas e dialogo de igual para igual.

O sargento chamou-o de lado e disse que tudo iria acabar bem. Disse que a agressão se deu devido o uso da droga próximo a viatura, que esse era o procedimento para impor respeito e intimidar o usuário que quisesse fazer uso próximo da policia afrontando-a. Ele respondeu que não costumava fazer isso, sobretudo porque também tem família e não concorda que crianças vejam uso de drogas. O sargento ressaltou que o caso era intolerável apenas devido à proximidade da viatura, em outras palavras, pouco importam os transeuntes ou crianças. Disse que ele seria liberado e que tudo resolver-se-ia na paz, contudo, se ele o denunciasse ele iria busca-lo até no inferno. Disse que sabia que ele observava todos os nomes e pediu para que o olhasse nos olhos, pois iriam conversar agora apenas de homem para homem. Admitindo que embora tenha sido um tanto truculento, disse sem titubear que ele ainda não tinha visto nada ainda e que homens estão acostumados a apanhar e apenas um soco, não deixa marcas ou sequelas, portanto, da parte dele estava tudo resolvido e eu podia ir em paz, etc, etc, etc. Encerrou dizendo que se eu estivesse em casa nada disso teria acontecido, mas, que esse é o trabalho deles - espancar, humilhar?! Ele disse que não iria denunciar nada, que estava errado, entendia a postura e o trabalho policial – e estava sendo sincero nisso porque entender é diferente de aceitar – e que diante disso sentia-se no lucro. O soldado jovem entregou-lhe os documentos e pertences. Ele agradeceu. O jovem PM perguntou se tinha alguma duvida ou queixa com relação ao trabalho da PM. Ele afirmou que não o chamando pelo nome. O PM perguntou se havia decorado o seu nome. Ele disse que não era o caso, apenas costume devido o trabalho social em comunidades. Eles estavam receosos pela sua conduta autoritária e covarde. O jovem PM perguntou por que ele sorriu com o seu questionamento e ele disse que apenas o chamava pelo nome por uma questão de respeito, e sorria porque sentia-se aliviado após toda aquela tensão. Assim os PMs o liberaram e aconselharam-no a ir para casa, cuidar da família e da vida e não mais fazer isso, que numa próxima ocasião ou em outras circunstancias ele poderia até ser preso, ferido ou morto. 

Foi-se pensando em como a violência é estupida, burra, ignorante, desnecessária e inútil. Foi-se pensando que se a abordagem demorasse mais cinco minutos terminariam chamando-o de doutor e desculpando-se, alias sutilmente e a sua maneira todos se desculparam – inclusive ele. Pensou ainda em todos os prejuízos que a droga ocasiona e se chegará o dia em que teremos uma outra polícia, um outro Estado – mais eficaz e menos corrupto e indolente -, uma verdadeira democracias e cidadania, uma outra e verdadeira justiça. Até lá, e diante de tantas perguntas sem resposta, também não se sabe o que fazer para sobreviver a isso tudo.


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