Toda violência é
um excesso. Uma apelação. Existem varias formas de violência e pode-se
expressa-la de varias maneiras. São diversos os pontos de vista, as teorias e
os campos do saber que se dedicam a estuda-la – entende-la e até justifica-la.
Passa pela moral, pela ciência, pela cultura, perpassando toda a sociedade,
suas diversas instituições e os indivíduos. A psicanalise talvez seja o campo
do saber que nos oferece as melhores respostas no que diz respeito aos protagonistas - indivíduos.
Toda violência é
uma relação de poder. O poder daquele que se supõem mais forte e capaz de
subjugar o outro, domina-lo. A violência, portanto, deve corresponder o medo e
a obediência. Quando isso não ocorre percebe-se a sua nulidade e a impotência daqueles
que a exercem. O sargento da
Policia Militar era um sujeito truculento. Em meio a uma abordagem por suspeita
de consumo de drogas, imediatamente fez aquilo que considerava ser a sua
expertise, oficio e prazer. Desferiu-lhe
um soco na cabeça, seguido de um cruzado no peito. Um subornidado entendeu aquilo como um
convite e acertou-lhe as costas. Agressões físicas e verbais. Questionamentos
diversos e desordenados seguidos de ofensas e acusações. Evidente que não se
pretendia esclarecer coisa alguma, o objetivo era apenas demonstrar força e se
divertir com o terror que ela pode causar.
O sujeito estava
cercado de PMs e, naquele local e situação não era possível identificar
qualquer patente, portanto, o fazia conforme falavam entre si. Após 20 anos da
primeira abordagem, percebeu que as praticas da PM continuam as mesmas. Do
ponto de vista objetivo, rigorosamente nada mudou no procedimento dela, apenas
nas cartilhas e manuais de conduta, nos discursos oficialescos e nas
propagandas institucionais.
O PM mais jovem,
por sua vez, embora tivesse postura de oficial, era apenas um soldado.
Conversava com calma e sobriedade, chamava-lhe de cidadão e pedia
autorização para revista-lo e os seus pertences. Fazia perguntas de forma
pausada e com clareza, sem ofensas, gritos e qualquer outra forma de
intimidação. Sua postura sóbria e profissional prevaleceu.
O sujeito, por
outro lado, conhecia há tempos à postura truculenta – como vítima, observador e
pesquisador. Havia sido ainda boxeador, sabia apanhar e bater. Em momento algum
acusou os golpes, demonstrando medo, raiva ou subserviência. O PM jovem abriu o
dialogo e o sujeito entendeu que com ele isso fosse possível.
Identificou-se como trabalhador, pai de família, sociólogo e pós-graduado em
Direitos Humanos pela USP. Silencio. Olhares de cumplicidade, medo, raiva,
dúvida, curiosidade e apreensão. Ele não era um só mais um usuário qualquer, como aqueles que vagam pelas ruas e que eles estão acostumados a espancar por diversão ou para manter o costume, ele era um usuário esclarecido. Embora fosse pobre, questionava-se sobre o por que todo sujeito mais ou menos esclarecido é confundido com a elite e a classe media? Simples: a boa educação é reservada a elas e a policia aqueles. Fim da violência física e reinicio da verbal e
da intimidação, porem, ficou evidente a mudança da sua motivação.
Após breve
silencio e mais interrogatório, o sargento começou o discurso padrão da tropa
na rua, diferente daquele que consta dos manuais e propagandas institucionais.
Trata-se daquele típico das formações militares tradicionais – “lei do mais
forte” e “manda quem pode e obedece quem tem juízo.” É um tipo de poder que
respeita apenas um seu igual ou que é considerado superior – mais forte.
Ilegítimo e ilegal porque ignora quaisquer princípios morais ou éticos,
assenta-se exclusivamente na violência e na força.“Direitos
Humanos é o caralho! Eu cago pros Direitos Humanos! Coisa de vagabundos e
defensores de bandidos! Direitos Humanos comigo é no tapa e na bala!” Ele tinha vontade de rir e sentia pena ao
mesmo tempo – pois, como podem existir pessoas tão fracas, baixas e pobres
intelectualmente, moralmente e espiritualmente?! Como podem pessoas assim,
representarem o Estado e pretenderem defender a sociedade e reivindicarem para
si autoridade legal e boa fé publica? Portarem armas?! Era notório o desconforto, insegurança e descontrole do sargento PM diante do seu silencio e uma ou outra
resposta curta - porque não é possível dialogar com um troglodita que fala com os punhos.
Receoso e
curioso acerca das suas informações, questionou sobre o por quê dessa sua
formação ao que ele respondeu que deu-se
devido os seus estudos e experiências na área de Segurança Publica – SSP e Funap. Conversas a
parte: “O cara não é bandido, que merda, só usuário nessa porra.” “É, mais um
filho da puta viciado.” “Como pode? O cara trabalhou na SAP e na SSP!” “Que
merda!” “Como pode, sociólogo e pós graduado em Direitos Humanos usando
drogas?” Do terror e deboche passou-se a apreensão sobre como proceder e
resolver a questão. Debates a parte e PMs pensativos andando de um lado
para o outro, o mais jovem acompanhado de outro conversam com o sujeito de lado
e respeitosamente perguntam-lhe sobre seu trabalho e formação. Ele explica-lhes
que faz uso eventual e recreativo – se é que se pode falar assim – e que
raramente usa na via publica, posto que também tenha família. Explica que fazia
mapeamento de homicídios e atuava no CDP de uma cidade do interior. Não
conseguem disfarçar certa tristeza e desconforto pelo seu vicio e ao mesmo
tempo admiração pelo seu trabalho e formação. Assim é o ser humano, instável,
incompleto, imperfeito, infeliz e incrível.
Após isso os que
checavam seus documentos constatam uma ocorrência pela lei 9.099. O PM
interroga-o e provoca: “Você que trabalhou na SAP e SSP sabe de cór o que é a
9.099?" Após alguns anos e naquele momento não podia lembrar-se, afirma. "Agressão" afirma o soldado, ao que ele
responde que se deu devido a uma confusão entre inquilinos, quando o marido
agredia a esposa em casa com um filho recém-nascido e ele e o irmão interviram.
“Não aceito covardia no quintal da minha casa”, disse. Involuntariamente o sargento truculento acenou
com a cabeça concordando. Nesse momento já não havia mais
agressões de nenhum tipo e nem rigor algum no trato ou procedimento – mãos
soltas e dialogo de igual para igual.
O sargento
chamou-o de lado e disse que tudo iria acabar bem. Disse que a agressão se deu
devido o uso da droga próximo a viatura, que esse era o procedimento para
impor respeito e intimidar o usuário que quisesse fazer uso próximo da policia
afrontando-a. Ele respondeu que não costumava fazer isso, sobretudo porque
também tem família e não concorda que crianças vejam uso de drogas. O sargento ressaltou
que o caso era intolerável apenas devido à proximidade da viatura, em outras palavras, pouco importam os transeuntes ou crianças. Disse que
ele seria liberado e que tudo resolver-se-ia na paz, contudo, se ele o
denunciasse ele iria busca-lo até no inferno. Disse que sabia que ele observava
todos os nomes e pediu para que o olhasse nos olhos, pois iriam conversar agora
apenas de homem para homem. Admitindo que embora tenha sido um tanto
truculento, disse sem titubear que ele ainda não tinha visto nada ainda e que homens estão acostumados a
apanhar e apenas um soco, não deixa marcas ou sequelas, portanto, da parte
dele estava tudo resolvido e eu podia ir em paz, etc, etc, etc. Encerrou dizendo que se eu
estivesse em casa nada disso teria acontecido, mas, que esse é o trabalho
deles - espancar, humilhar?! Ele disse que não iria denunciar nada, que estava errado, entendia a
postura e o trabalho policial – e estava sendo sincero nisso porque entender é
diferente de aceitar – e que diante disso sentia-se no lucro. O soldado jovem
entregou-lhe os documentos e pertences. Ele agradeceu. O jovem PM perguntou se
tinha alguma duvida ou queixa com relação ao trabalho da PM. Ele afirmou que
não o chamando pelo nome. O PM perguntou se havia decorado o seu nome. Ele disse que não era o caso, apenas costume devido o trabalho social em comunidades. Eles estavam receosos pela sua conduta autoritária e covarde. O jovem PM perguntou por
que ele sorriu com o seu questionamento e ele disse que apenas o chamava pelo nome por uma questão de respeito, e sorria porque sentia-se aliviado após toda aquela tensão. Assim os PMs o liberaram e aconselharam-no a ir para casa, cuidar da família e da vida e não mais fazer
isso, que numa próxima ocasião ou em outras circunstancias ele poderia até ser
preso, ferido ou morto.
Foi-se pensando
em como a violência é estupida, burra, ignorante, desnecessária e inútil.
Foi-se pensando que se a abordagem demorasse mais cinco minutos terminariam
chamando-o de doutor e desculpando-se, alias sutilmente e a sua maneira todos
se desculparam – inclusive ele. Pensou ainda em todos os prejuízos que a droga
ocasiona e se chegará o dia em que teremos uma outra polícia, um outro Estado –
mais eficaz e menos corrupto e indolente -, uma verdadeira democracias e
cidadania, uma outra e verdadeira justiça. Até lá, e diante de
tantas perguntas sem resposta, também não se sabe o que fazer para sobreviver a
isso tudo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário