quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O casarão


Antes da teoria a prática. Antes da academia a realidade. Minha trajetória foi assim - como a de muitos. Dos muros e prédios, das gangs, becos e bocas para a cátedra. Dos 4º, 78º, 33º e 87º DPs - por causa do pixo - para a Sociologia. Quando militei no PT de Pirituba em 94 e 96 pixava e fazia panfletagem. Minha cara sempre foi à rua. Há 14 anos quando ingressei no curso usava drogas e cumpria condicional de dois anos no Fórum da Lapa - resultado do Artigo 16 da Lei nº 6.368/76 assinado no ano anterior. Muito do punk que havia sido ainda existia em mim e penso que, em alguma medida, sempre existirá. Havia ainda muito da revolta e petulância do jovem pixador e membro de gang de outrora.
Nas primeiras semanas conheci o José e o Evandro. Ambos tornaram-se parceiros de primeiro ano. Logo o Manoel juntou-se a nós. Foi questão de tempo para identificarem-se afinidades. Em poucos dias estávamos anarquizando a cátedra para deleite de uns e desgosto de outros. Até aquele ano predominavam no curso os sindicalistas, quadros políticos e profissionais liberais – naqueles dias a faixa etária das turmas era expressivamente mais alta por isso. Logo que ingressamos, em 1998, havia um clima tenso entre o movimento estudantil, alguns docentes e a mantenedora. As questões que determinaram essa tensão e animosidades remontam os anos 60. Época de repressão e perseguição as ciências humanas e as liberdades políticas, sociais e individuais.  Época em que em conluio com a mantenedora infiltravam-se olheiros do regime de modo a denunciar, intimidar e expurgar os opositores e críticos da caserna.
Do ponto de vista objetivo, penso, no entanto, que a crise e a tensão dessa instituição iniciam-se muito antes, quando da opção pelo apoio e modelo americano. Foi por meio dessa opção que se estreitaram as relações com as instituições financiadoras – Rockfeller e Ford. Chama a atenção, porém, o fato de que foi no período autoritário que o Estado brasileiro subordinou a sua educação as determinações da USAID, excluindo a sociologia e filosofia da grade curricular do ensino básico - "Aliança para o Progresso". Foi como bolsista da Fundação Rockfeller que o ex-marine e veterano do Vietnam, após passar pela Bolívia, Capitão Charles Chandler chega a ESP para... estudar, óbvio! Esses fatos evidenciam que apenas com a participação ativa ou a conivência da mantenedora, alguns professores e alunos, isso tudo poderia ser feito. Como seria possível estabelecer tais relações, manter os cursos e a instituição no contexto autoritário, integrar esses “alunos” – acima de qualquer suspeita – sem a participação de representantes de todas as entidades que compõem esse ambiente? Tolice ou cinismo ignorar isso!  
O fato é que quando ingressamos, muito desse clima de desconfiança, tensão e hostilidades ainda persistiam, agravados pelo neoliberalismo vigente, a crise financeira, interesses privados diversos – políticos, intelectuais, pecuniários - e os ossos que ainda apareciam das entranhas do casarão.  Isso tudo eu fui saber depois. No primeiro ano, não éramos mais que calouros, manipulados voluntariamente pelos veteranos e ávidos por serem aceitos à casa. Dentre eles havia uma figura carismática e líder estudantil. Argentino, falava um portunhol tosco, e caracterizava-se no que diz respeito ao figurino e a postura como o típico revolucionário latino-americano. Muitas vezes parecia bufão, histriônico, lembrando a personagem Meia-Oito do Angeli.  Pedante e autoritário, demonstrava elevado apreço pela sua posição de líder estudantil, embora tivesse mais de 40 anos. Manipulador e centralizador; estabelecia a pauta e sempre conduzia os debates. Ignorava solenemente sugestões, comentários e opiniões diversas. Desqualificava adversários ou divergentes e desestabilizava os emocionalmente mais frágeis. Nunca me ouviu, não podia ouvir ninguém, não aceitava que outros pudessem rivalizar com ele no espaço que ele considerava dele e na luta que ele havia tomado pra ele. Tudo deveria ser conduzido por ele, líder máximo, infalível e incontestável. As únicas estratégias consideradas também só podiam ser as suas. Em uma ocasião sugerimos uma atividade cultural em que se abrisse a escola para a comunidade, de modo a angariar apoio externo e compartilhar com estudantes de sociais de outros cursos os problemas que poderiam ser comuns. Evidentemente, mais uma vez, fomos ridicularizados e ignorados.
Naquele momento já éramos os "anarquistas, inconsequentes, irresponsáveis e alienados maconheiros da ESP". Vivíamos no bar e já havíamos pixado os banheiros – inclusive o feminino –, sabotado a maquina de Coca-Cola e fumado até no telhado do Casarão sem consultá-lo – esse era o pecado mortal! Ninguém podia pensar ou agir sem consultá-lo! Éramos ousados demais, petulantes demais, sarcásticos demais para ele e os outros arcaicos que o bajulavam e cercavam. Conforme fosse de gang de pixador e depois punk, eu não podia ser bajulador e, tampouco aceitar sem contestar quaisquer formas de representação, autoridade e hierarquias. Mesmo no PT (94 e 96), sempre fui partidário da ação direta. Essas experiências, ensinaram-me ainda a desconfiar dos que ignoram a realidade daqueles que pretendem representar ou defender. Ensinaram-me a perceber nas práticas, posturas e discursos as contradições e gostos de classe. A realidade – de qualquer instituição – também não pode reduzir-se a visão e interesses de um determinado grupo e, aqueles profissionais liberais, quadros políticos ou sindicais não representam e não podem falar em nome dos reles estudantes – como éramos – desempregados, sem profissão e fudidos! Ao final e ao cabo, foram apenas os estudantes desempregados e fudidos, interessados em estudar e aprender que foram fazer pesquisa pela Empresa Jr. para aprender o ofício do pesquisador de campo, porque a época não havia iniciação científica ou departamentos e, estatística se aprendia ainda no quadro negro e no lápis - o laboratório de informática chegou só no ano 2000. Os que pretendiam nos representar, estavam cevados pelos gabinetes e praticavam ciência e política por profissão ou diletantismo – muitos já tinham formação, sociologia era grife ou lazer. Não precisavam aprender pesquisa de campo, e muito menos andar debaixo de Sol e chuva aplicando questionários! Tolices e veleidades de jovenzinhos vagabundos, liberais e alienados, muito embora não existissem vagas de estágio no mural da ESP ou quaisquer oportunidades de trabalho e emprego.
O tempo os engoliu, o perfil mudou, a sociedade mudou, as transformações sociais exigem novas estratégias e alternativas para organizar as lutas contra o neoliberalismo. Não é discurso pós moderno – muitos nem sabem o que seja isso -, antes o bom e velho trabalho de base - agitação, propaganda, ação direta.  Existem diversas maneiras de protestar, contestar, mobilizar, organizar, dialogar, fortalecer os movimentos populares e lutar. Existem outras tantas maneiras de se expor um problema e granjear apoio popular. Expor a instituição como fazíamos, embora uns presunçosos discordem, era o que estávamos fazendo - através da pesquisa e do diálogo com o sindicato dos sociólogos, os estudantes da UNESP de Marília, da PUC e da USP. Acomodados e oportunistas preferem não se expor, correr riscos, afinal, têm reputação, emprego, carreira, família, patrimônio, tudo menos ousadia e originalidade!
Nunca havia estado antes em uma faculdade. Ninguém na minha família teve curso superior antes de mim – nem primos ou primas.  Meu pai era funileiro de autos com fundamental I incompleto, e minha mãe dona de casa com fundamental II incompleto. Nunca pensei que fosse cursar uma. Entrei lá porque sempre fui apaixonado por historia, e por causa do movimento punk e militância política. Fiz o vestibular, e quando me dei conta havia passado. Sabia que não teria outra oportunidade e da responsabilidade que tinha comigo mesmo, minha família e comunidade. Nessas condições, como permitir que um bando de aposentados, diletantes, pedantes e profissionais políticos ou liberais, do alto da sua zona de conforto, venham me dizer o que fazer, pensar ou determinar a minha vida e estratégias - minha e a de outros companheiros estudantes e desempregados?
Após todos esses anos muitos desses continuam frequentando os mesmos gabinetes, outros galgaram posições na hierarquia do sindicato ou governo, inclusive do tucanato, a despeito do discurso “revolucionário”. A Empresa Jr aconteceu na prática, sem sair do papel. O jornal foi apenas um meio de se expressar dos que não podiam falar. Do ponto de vista objetivo não deixei nada e não levei nada – apenas conhecimentos, experiências e protesto por não pagar as mensalidades que ano após ano negociava. Aprendi o máximo que pude e fiz mais do que sentar, escutar e aplaudir. No Congresso de Sociologia da USP, no SINSESP, na UNESP e UFF fui acompanhado pelos que estavam comigo – Rodrigo, José, Fabio, Manoel, Geraldo, Edson, Valter, Jansen, Miguel, Celso, Vinicius. Nenhum professor ou diretor. Apoio resumia-se a sentença: “Muito ajuda quem não atrapalha.” Fiz contatos com o telefone de um, impressos e documentos com o computador de outro e o mais com recursos próprios – cada um com o seu. Quando conseguimos o trabalho com a UFF, por meio de contatos da UNESP, muitos dos que nos criticavam aberta ou veladamente, interessaram-se pela pesquisa, o certificado da UFF e a bolsa – sem novidades, no que diz respeito a demagogia e oportunismo típicos da pequena burguesia.    


 

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