domingo, 3 de fevereiro de 2013

Violências: uma abordagem interdisciplinar



A violência nesta reflexão perpassa duas dimensões: a primeira refere-se à definição formal de violência, estabelecida pelo Estado assentada nos estatutos jurídicos. Esta modalidade é o que chamamos crime. A outra violência é a "tradicionalmente estabelecida", aquela que, muitas vezes, logra escapar ao controle direto do Estado e das definições jurídicas. O modo como estas duas “formas” – a “formalmente estabelecida” e a “tradicionalmente estabelecida” - se relacionam, produzindo e reproduzindo “sentidos”- no âmbito do Estado e da sociedade - no contexto democrático é o objeto desta analise. Trata-se de apreender o modo como no contexto democrático a noção de violência redefine-se e acomoda-se a esta nova configuração do Estado brasileiro e, como esta redefinição relaciona-se com os padrões tradicionais brasileiros estabelecidos.

De um modo geral, convencionou-se, no contexto democrático, aferir os índices de violência pelas estatísticas criminais – mais especificamente o número de assassinatos e as mortes por causas externas. Assim, violência do ponto de vista formal é o total de documentos que registram ocorrências de homicídio doloso e óbitos por causas externas. Consiste na ocorrência registrada de um crime ou infração penal por meio de documento lavrado pela autoridade policial. É ainda um meio institucional de resguardo da “legalidade” em que se pautou a ação ou intervenção policial. Pode ser definido como o registro ordenado e minucioso das ocorrências que exigem a intervenção policial. Ocorrência policial, por sua vez, é todo fato que interfere na ordem pública e que exige a intervenção policial. Conforme seja um documento oficial, deve seguir os princípios expressos e reconhecidos da Administração Pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, entre outros). Na práxis cotidiana, todavia, predomina a ausência de padrões e mecanismos de controle e fiscalização efetivos dos procedimentos policiais, incluído o registro de ocorrências. A acumulação mecânica dos registros de crimes ou infrações que ocasionam mortes, ao atingir uma quantidade demograficamente calculada determina para o Estado o quanto uma sociedade ou localidade está violenta.

Em decorrência do Estado Democrático de Direito, a criação da “Delegacia da Mulher” (1985) e do ECA (1990), entre outros mecanismos, criminalizaram-se as violências contra mulheres, crianças e adolescentes, tornando-as um problema de ordem pública, não sem antes tornarem-se “caso de polícia.” Esta racionalidade sugere que o quanto mais aperfeiçoarmos os nossos códigos jurídicos, de modo que eles possam alcançar criminalizar mais objetos - aumentando a variedade de crimes -, mais a violência diminuirá na proporção inversa em que aumenta-se o numero de crimes e criminosos, ampliando-se ainda a presença das forças policiais na sociedade. Trata-se da lógica do “mais do mesmo” – mais policiais, armas, viaturas, leis, presídios - com uma roupagem adequada ao contexto democrático, porem não menos autoritária e reacionária, reivindicando mais leis e punições - ou mudanças nas já existentes.

Com efeito, o Estado e a lei devem proteger os indivíduos e a sociedade, sobretudo, os mais vulneráveis.  No entanto, pretender que a lei por si só transforme a sociedade ou as relações sociais é ignorar as determinações culturais que constituem a base subjetiva dela e que se reproduzem, por diversos meios escapando aos rigores e excessos formais. Há ainda um clamor nessa racionalidade que reivindica a justiça supondo-a como equivalente a punição. Trazendo uma suposta sensação de “justiça social” – as mulheres e as crianças e adolescentes – decorrente de mecanismos de proteção de direitos assentados quase sempre na pretensa punição e, consequentemente, criminalização dos seus violadores e infratores – nem sempre se pune, sobretudo, os poderosos, pouco se corrige e jamais educa! Se supõem uma complementaridade equivocada entre justiça penal e social, como se aquela automaticamente efetivasse a outra.

Estas constatações indicam algumas das mudanças ocorridas na definição institucional de violência em decorrência da democracia e que estão sendo incorporadas, não sem atritos, pelo Estado e a sociedade. A construção da democracia passa pela criação de mecanismos que assegurem o exercício da cidadania e não apenas pela elaboração formal de direitos e o reconhecimento nominal. No caso das mulheres, o processo linear de acumulação de mecanismos e órgãos de defesa de direitos iniciado com a democratização encerra-se com a Lei 11.340/06 (Maria da Penha) – passando antes pelas Leis 10.224/01 e 10.886/04 que tipificam, respectivamente os delitos de “assédio sexual” e “violência doméstica”. Todavia, a violência contra mulheres e crianças é histórica e atravessa as diversas instituições sociais ao longo dos séculos, reproduzindo a base subjetiva sob a qual se assenta e que a legitima.  

A dinâmica da realidade dos espaços sociais, muitas vezes, não se submete e escapa aos rigores formais. O que estabelece e articula as relações sociais, confere significado e sentido as ideias, legitima as praticas, valores e discursos não está escrito em código algum, nem sequer é falado, existe e é mediando e estruturando as formas de socialização autoritária que caracterizam a nossa tradição e processo histórico. Trata-se, contra mulheres e crianças ou adolescentes – também contra presos, animais, idosos - da violência “tradicionalmente estabelecida” – que acontece cotidianamente na esfera privada ou no âmbito da comunidade e é comum entre os seus membros, sendo socialmente amparada e mais ou menos tolerada pelas convenções locais - que apenas muito recentemente o Estado logrou alcançar e, não sem resistências e atritos torna-se questão de ordem publica e social.

As interpretações históricas – independentemente das distintas abordagens - sobre a formação brasileira – Estado e sociedade – destacam três conceitos básicos neste processo: a “dominação tradicional” (conceito desenvolvido por Max Weber)[1], o “personalismo” e a “dependência”. Freire[2], Holanda[3], Faoro[4], Fernandes[5] e Cardoso[6], caracterizam a sociedade luso-brasileira como “patriarcal” e o Estado como “patrimonial”, destacando a “dominação tradicional” e a “dependência” como característicos das relações sociais e institucionais; “onde a coragem pessoal, a violência, os laços pessoais” de solidariedade ou afinidades eram as qualidades necessárias para atender as exigências do modelo predatório de colonização aqui instalado. O centro de toda organização na colônia seria a família rural patriarcal, assentada nas grandes propriedades e estabelecida na ordem do estado patrimonial português. Após a Guerra do Paraguai, começa o processo de politização dos militares e de militarização da política brasileira - momento em que chegam para ficar e desempenhar o “papel” de “protagonista” no “cenário” político brasileiro, durante décadas. Estes são alguns dos traços que indicam uma tradição política autoritária, que resultam, consequentemente, em um modelo de sociabilidade autoritária. 

Este principio de organização consiste em um modelo de dominação assentado em procedimentos de exclusão – da ordem pública e da política. Em contrapartida, o espaço privado constituiu-se do necessário e do útil, das mulheres – a época da colônia e império dos escravos - e de tudo o que seja relacionado à sobrevivência e a reprodução da vida.   Observa-se neste modelo de dominação o modo como se constituiu o Estado brasileiro - assentado na ordem patriarcal/patrimonial - que caracteriza o seu processo histórico – lançando às bases às quais assentar-se-iam os padrões para as relações sociais e institucionais. Holanda destaca que a sociedade portuguesa - “estreitamente vinculada à ideia de escravidão em que mesmo a mulher e os filhos são apenas os membros livres desse organismo inteiramente subordinado ao patriarca.(...)” - caracteriza-se, por um princípio de autoridade originário da esfera doméstica, que vai constituir-se no “suporte mais estável da sociedade colonial” – patrimonialismo [7]. 

Na relação conjugal o contrato matrimonial é o meio legal pelo qual se estabelece o controle do marido reafirmando o lugar dele e da mulher na sociedade. A existência de leis civis e religiosas outorgavam aos homens direitos sobre as mulheres, sustentando a crença de que eles como seus protetores e proprietários têm o direito de punir as suas esposas, aplicando o que chamavam de “castigos domésticos” da mesma forma que podiam castigar crianças e aprendizes – antes escravos. 

A transformação da base subjetiva que racionaliza e legitima as praticas autoritárias e violentas e o seu discurso passa pelo entendimento e critica do processo histórico que caracteriza os modelos tradicionais de organização da sociedade e as relações sociais. Para que isso ocorra, entretanto, é fundamental a desconstrução e a negação desse modelo e, nesse sentido, é preciso mais do que a validade jurídica. Porque quando se trata de violência, em especial, violência de gênero, Saffioti [8] afirma que estamos diante de “conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos”. Assim, o processo de classificação de gênero, assentado na construção simbólica (escrita e discurso) está dado na sociedade. Deste modo, o poder do patriarca encontra-se em todas as instituições, grupos ou ideias e o conceito feminino naturaliza uma condição criada pela sociedade. Ela ainda ressalta, que a despeito das supostas conquistas feministas, a expansão feminina na estrutura ocupacional corresponde aos interesses do capital; dos movimentos liberais burgueses. Trata-se de não mais do que a pura e simples assimilação das mulheres a sociedade masculinizada, portanto, relações de poder - sempre complexas, assimétricas e contraditórias - que para serem superadas devem ir além do furor e das determinações ou filigranas jurídicas. 



[1] Weber define três tipos de dominação: a legal, a carismática e a tradicional. Esta última, Weber classifica como a “autoridade do “ontem eterno”, isto é, dos mores santificados pelo reconhecimento inimaginavelmente antigo e da orientação habitual para o conformismo. É o domínio “tradicional” exercido pelo patriarca e pelo príncipe patrimonial de outrora.” – “Ciência e política: duas vocações.”
[2] “Casa grande e senzala”.
[3] “Raízes do Brasil”.
[4] “Os donos do poder”.
[5] “Circuito fechado”.
[6] “Autoritarismo e democratização”.
[7]O patrimonialismo caracteriza-se como um tipo de organização política – é imprescindível que os recursos econômicos e administrativos dependam e estejam sob a tutela do poder soberano ou publico – onde as relações subordinativas estão e, sobretudo, são determinadas pela dependência – política/econômica – e por vínculos tradicionais de lealdade e respeito dos governados pelos governantes.
[8] Saffioti (1997): Princípios normatizadores da sociedade-gênero, raça, etnia, geração e patriarcado.

4 comentários:

  1. Ressalto que a violência nem sempre é praticada na esteira de uma ação policial: em boa parte dos casos, a polícia é chamada a agir após haver sido praticado algum delito, seja no âmbito do espaço público ou doméstico. As leis que são criadas não resolvem o problema da violência, mas podem representar um sinal de que a preocupação com alguns tipos de delito passou a ser maior. As causas da violência podem ter origens diversas - socioculturais e econômicas, em geral. A atuação policial repressiva pode ou não ajudar a contê-la, mas não resolve o problema em si, já que não se reporta às causas. A falta de atuação e de mecanismos sociais de controle, no entanto, pode favorecê-la. Sempre que se fala em violência se aponta algum tipo de omissão do Estado, mas a sociedade não é só o Estado e não é só ele o causador de todos os problemas. Os discursos muitas vezes são contraditórios: ora se exige que o Estado ocupe determinados territórios e mostre sua capacidade de agir (em vários sentidos, não apenas policial), ora se critica que o faça. O tema é de fato complexo, uma vez que envolve além da chamada 'vontade política' a capacidade da sociedade mudar suas estruturas internas e resolver suas contradições.

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  2. Sem duvidas.....há tantas formas e manifestações de violência objetivas e subjetivas quanto pessoas e determinações. A questão policial, por outro lado, é estrutural e como as leis na nossa tradição politica se impõem de modo vertical, senão a revelia da sociedade. Penso que a questão não é a polícia ou as leis, mas o modo como impõem-se, incompatíveis com a cidadania e a despeito da democracia. Percebe-se um impeto legalista de caráter autoritário que juridifica as relações sociais e judicializa as contradições e conflitos. Esse furor tem fortalecido e aumentado a presença do judiciário e da policia na sociedade e na politica - do estatuto da criança ao do idoso, do desarmamento ao do torcedor. Por outro lado, percebe-se que esse procedimento, na medida em que institucionaliza e burocratiza as relações sociais tonando-as mais complexas, constitui um excelente mecanismo de intermediação e exclusão, aumentando a distancia entre a sociedade e o Estado. Desmobiliza, deslegitima arranjos, lideranças e meios locais e tradicionais e, conforme seja instrumental e impessoal, corroí os laços comunitários. Enfim, essas são apenas algumas observações para um critica e reflexão que devem ser amadurecidas e debatidas, nesse sentido, agradeço pela sua atenção e comentário! Grande abraço!

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  3. Li seu texto. Bom para aprendizado e reflexão. Acredito que enquanto não existir vontade política, diálogo entre Estado e Sociedade, não existirá democracia genuína. Aliás, é preciso explicar o verdadeiro conceito de democracia.

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    1. Obrigado pela franqueza e generosidade Celamar! Sem duvidas, ou o dialogo, participação popular efetiva e construção coletiva ou a barbárie!!! Pensar e aprofundar-se na definição do conceito é tarefa importante, menos do que consolidar o apreço por ela na nossa sociedade.

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