Há duzentos anos Sören Aabye
Kierkegaard nascia em Copenhagen na Dinamarca - 05 de maio de 1813. De formação
protestante, cresceu em um ambiente impregnado pelo fanatismo religioso,
ouvindo o pai ler a Bíblia e os seus sermões. Consta que o pai de Kierkegaard
levasse uma vida pouco ortodoxa para os padrões da época e que ele mesmo, na
juventude, tivesse experimentado alguns excessos – como Baudelaire, Rimabaud,
Dostoievski, Van Gogh. Sua mãe, por exemplo, foi à segunda esposa do seu pai,
sendo antes disso a criada da casa. Esse ambiente contraditório e ambíguo levou-o
a desenvolver um caráter religioso fervoroso, obcecado pela visão de pecado e
culpa e as suas implicações. Assim, passou a maior parte de sua vida como um
pensador solitário, experimentando os infortúnios ocasionados pelos conflitos
pessoais na relação com o pai e a seguir na sua própria vida afetiva e social,
culminando em atritos e contradições com a própria Igreja e a ciência.
Homem do século XIX, sua
obra revela o seu tempo. É no contexto de crise da religião e embates entre
ciência e fé que a obra kierkegaardiana se insere. As transformações
decorrentes da Revolução Industrial (séculos XVIII e XIX), combinadas aos
avanços científicos em todos os campos e o recuo da Igreja na Europa pós
Iluminismo (séc. XVIII) leva o homem a angústia e ao desespero, na medida em
que assiste as verdades incontestáveis da religião desmoronar uma após a outra.
As cidades se tornam
metrópoles urbanas e industriais. Eis o contexto em que o jovem Kierkegaard
vive e se desenvolve. Sendo assim, de um modo geral, ele ocupou-se das questões
que o acometiam e entendia serem fundamentais para a filosofia do seu tempo,
quais sejam: a crise do homem diante do mundo em constante e acelerada
transformação. A comunicação, os meios de transporte, a física, a astronomia, a
química e a biologia ampliam-se de forma rápida e constante, transformando o
cotidiano das pessoas e colocando em xeque as diversas verdades, crenças e
instituições seculares anteriores. A Revolução Industrial transforma a natureza
e o homem, as relações sociais e a sociedade pavimentando o caminho do
liberalismo político. Nada resiste a “mão invisível.” A tudo se impõem e submete. É o
triunfo do capital sobre o homem, a natureza, o trabalho e a sociedade.
A filosofia de Kierkegaard
insere-se nesse panorama, implica uma abordagem de um lado humanista e, de
outro, existencialista, na medida em que postula uma visão individual dos
problemas do mundo – colocando o homem impotente diante do poder da “mão
invisível.” No âmbito de variadas crises, conflitos e contradições acentuadas,
volta-se para o divino, entendendo que o homem enquanto indivíduo, dotado de
livre arbítrio, pode por meio da consciência relacionar-se com a divindade e
buscar viver de acordo com ela. Kierkegaard supõem que cada um pode fazer
escolhas independentes e que elas determinam a sua existência[1].
Homem do seu tempo, dialoga
com a filosofia de Hegel[2],
criticando o excesso de subjetividade que estabelece que a essência do homem
seja tão somente abstrata, uma manifestação do pensamento. Assim, afirma que o
pensamento e os sistemas de pensamento é que são abstratos, enquanto que a
realidade é concreta. Para ele o anseio pela universalidade dos filósofos é
mera abstração do singular, posto que apenas pode se apropriar da verdade subjetivamente.
Afirma com convicção que a realidade se impõe aos sistemas e é ela que
determina a vida das pessoas – anos mais tarde Marx[3]
afirmará que “não é a ideologia que determina a vida, mas a vida que determina
a ideologia.” Nessa perspectiva, nenhuma estrutura imposta do exterior - até os
preceitos bíblicos - pode mudar ou diminuir a responsabilidade de cada
indivíduo perante si e o Criador. Na medida em que somos indivíduos únicos e
que vivemos apenas uma vez, dá-se assim a importância do ser concreto – a parte
que é mais que o todo. Temos aqui a primazia da existência e do indivíduo –
pode-se dizer que há ainda algum estoicismo[4]
na sua filosofia.
Kierkegaard entendia que
cada pessoa existe em três planos de existência: o estético, o ético e o
espiritual. Para ele, a maioria das pessoas vive uma vida estética superficial,
incapaz de ir além da aparência, prazer e felicidade – uma espécie de
epicurismo[5] vadio e
depravado. Aqui ele entende que não há livre arbítrio, apenas subordinação aos
desejos – oposto da vontade - dessa esfera e das convenções sociais. Os que
vivem na esfera ética, por sua vez, buscam a verdade e o bem, colocando os
interesses coletivos acima das veleidades individuais – espécie de platonismo.
Por fim, a esfera mais elevada para ele seria a da fé – uma renuncia total de
si e entrega ao criador. Assim, entendia ele que esta seria a única maneira de
superar o plano da estética e da ética. Porque se a divindade é o Criador-infinito,
apenas no encontro dela é que se pode superar a condição humana (finita), o
desespero e a morte.
Kierkegaard foi homem de
poucas obras, seus textos reúnem-se em coletâneas, tendo publicado apenas O
Desespero Humano, que trata da questão do desespero como o único mal para o
qual não há cura. Para ele, nem a morte supera-o, posto que na concepção cristã
já fosse vencida. Com efeito, a vida pessoal de Kierkegaard influencia e
transparece na sua obra e, embora seus escritos reflitam a sua melancolia, trata,
pois, de analisar a liberdade humana a partir da angústia e do desespero que
fazem parte da sua vida e do homem cristão. Densa, complexa e sujeita a
problemas de interpretação e significado, a sua obra suscita polêmicas e
controvérsias até hoje, na medida em que coloca questões humanas no âmbito do
temporal e do eterno. Por outro lado, percebe-se que Kierkegaard é ousado, na
medida em que esta tratando de questões que se baseiam na estrutura ontológica
do ser humano - sentimentos. Ao contrário de muitos outros filósofos ele busca entender
a existência e a liberdade humanas não pela racionalidade, mas pelos
sentimentos que estão conectados a existência. Para ele a existência individual
é para ser vivida, dispensando ser explicada racionalmente como buscavam os
hegelianos. Diante do quadro que se apresentava a sua frente – as diversas
desordens de ordem social, moral, filosóficas e científicas e as suas
pessoais/afetivas – restava-lhe a compreensão da própria existência, a única
realidade experimentada, concreta e finita. Falece em novembro de 1855 aos 42
anos, solitário, incompreendido, rejeitando a metafísica e a igreja.
Referencias
KIERKEGAARD, Soren – Diário
de um sedutor. Ed. Martin Claret, São Paulo: 2002.
_____________________ O
desespero humano. Ed. Martin Claret, São Paulo: 2002.
PENHA, João da – O que é
existencialismo. Ed. Brasiliense, São Paulo: 1989.
[1]
Sartre e Camus, entre outros, a partir do postulado da primazia da existência e
da oposição homem x sociedade desenvolvem as suas idéias incorporando o
materialismo-dialético, dialogando com o socialismo, o anarquismo e a psicanálise.
Por outro lado, Nietzsche e Heidegger debruçam-se
sobre o caráter ontológico do Ser e da sua existência, aprofundando a critica
ao escolasticismo e o positivismo. O alicerce axiológico da filosofia de Nietzsche
se assenta no postulado imanente da existência, sustentado perspectiva
existencial de modo que rejeita qualquer conotação normativa e universalista,
emancipando-se de qualquer traço positivista.
[2]
Georg Wilhelm Hegel (1770-1831) foi um dos principais filósofos alemães do
século XIX. Sua obra de caráter historicista foi uma das principais influencias
do marxismo.
[3]
MARX, Karl – A ideologia alemã.
[4] Estoicismo – Pensamento filosófico
(Marco Aurélio) que estabelece que o homem deva viver de acordo com a razão e
ser indiferente a desejos e paixões. A verdadeira felicidade não está no
sucesso material, mas na busca da virtude. Trata-se de uma filosofia que busca
harmonizar a razão a natureza dando primazia à existência em relação à
subjetividade.
[5] Epicurismo – Pensamento filosófico
(Epicuro) que sustentava que por meio do conhecimento seria possível proceder a
moderação dos prazeres e a limitação dos desejos, levando a tranqüilidade e a
paz.
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