domingo, 5 de maio de 2013

Diário do vício


O enfrentamento do vício não se resume a dependência. Enfrenta-se além dela o desprezo, o abandono, a culpa, a derrota. Quando comecei a enfrentá-lo havia perdido a família, a casa, o trabalho, amigos (poucos), a auto-estima e a confiança. Como é possível alguém enfrentar algo que lhe impôs tamanha derrota? Ainda assim segui e sigo. Três anos depois não recuperei quase nada ainda e perdi-os todos em pouco mais de um ano.
Recaí após sete meses desempregado. Passei dez meses e recaí de novo quando fiquei na ultima etapa da seleção do mestrado na USP, após participar de diversas atividades como ouvinte e colaborar no VI Simpósio de Psicologia Política. Essa foi à pior. Estava no ápice dela quando arranjei um bom emprego. Em seguida estava morando sozinho e usando diariamente. Isso durou cerca de seis meses e custou esse emprego. Pouco importa. Dinheiro, emprego, noite, drogas. Sei apenas que aquilo que perdi e que lutava pra recuperar, após esses seis meses ainda não havia recuperado e nada disso me traz satisfação alguma. Sequer faz sentido até hoje.
Mudei de cidade e arranjei outro emprego. Quase o mesmo salário, melhor empresa e as mesmas condições – CLT. Estava ainda sozinho no mundo, vendo a minha filha uma vez ao mês e agora definitivamente constatando que a minha luta é em vão: jamais recuperarei o que perdi – a minha família. Me tratei, trabalhei, encontrei uma casa boa, numa cidade pacata, pretendia oferecer um lar pra minha filha e reconstruir melhor tudo o que havia perdido.Tudo em vão, tarde demais. Dois anos e meio haviam se passado e descobri que esse era o prazo de validade do amor e que o da desconfiança talvez seja eterno. Esse é o preço que a sociedade cobra do dependente – eterna desconfiança acompanhada de desprezo. Sinto isso na sociedade em geral e entre amigos e familiares em particular. Sobram razões tanto quanto preconceitos. Ignoro tanto ou mais quanto sou ignorado ou desacreditado. Por mais que o tempo passe, para alguns o passado não passa. Sempre o mesmo presente ausente – o vazio em qualquer lugar em que eu estiver. Sempre o mesmo daquilo que fui no presente de outros.
Recaí de novo. Perdi novamente o trabalho, oportunidade de mestrado e o sentido da vida. Entreguei-me as drogas e ao álcool. Vivi dois meses anestesiado e alheio ao mundo e a minha vida. Fumava, bebia e cheirava diariamente. Passei uns dez dias sem tomar banho e comia uma vez ao dia. Não fazem o menor sentido essas rotinas para um moribundo. Um cadáver não precisa de asseio nem de dentes. Tampouco de livros ou roupas, nem objeto algum. Desfiz-me de quase tudo que tinha até o dia fatídico. Pensava apenas na minha filha, que não convivo e vive sem mim, eu apenas sobrevivo ainda. O maldito álcool como no sexo se aumenta a coragem dificulta ou impede o ato. Assim sendo, embora não tivesse declinado, fracassei por imperícia. Enfim, nesse processo lento, gradual e inseguro, alguns se recuperam no trabalho, outros na fé, uns na clinica e há aqueles que na terapia. Durante os períodos em que me abstive tratei-me através do esporte – corridas diárias na praia e musculação. Experimentei todos os demais. Frequentei CAPS-AD e N.A., centro espírita e umbanda, igreja católica, tomei remédios e fui atrás do meu mestrado e de trabalho. Essas entidades também não tratam o abandono, o desprezo, a culpa, o medo, a frustração, a derrota. Em todos se encontra muito altruísmo ou oportunismo e nenhum ou pouco preparo e conhecimentos para se tratar e atender os dependentes. Ainda hoje quando me deito é a minha filha que me faz falta – sua voz, sua alegria, sua inocência, graça e curiosidade. Trabalho, dinheiro, sexo, casa, objetos de consumo, luxo, bens, títulos acadêmicos, poder ou prestigio, que importância tem isso para mim, se sou incapaz de chegar a casa e não sofrer pela sua ausência, de imaginá-la ou procura-la pelos seus cantos ou cômodos e adormecer em paz? Assim não tenho mais certeza de nada e após isso tudo também pouca coisa me importa. Apenas sobrevivo até enquanto suportarem meu corpo, minha razão e minha alma. Cada um sabe o peso da sua cruz e se perde e vive apenas a própria vida. 

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