domingo, 26 de janeiro de 2014

"Baixada", Lapa, caminhos e descaminhos....

O Baixada é um cara envolvido – com o trafico e o crime. Cara de facção. Conheci-o na Lapa. Chama-se Wellington. Ele fez questão de apresentar-se. Baixada era santista do Morro São Bento, andava pelo Gonzaga. Baixada era cara de poucas ideias. Vendia no varejo com discrição. Curtia a noite da Lapa. Conheci-os no mesmo dia – Baixada e a Lapa. Cheguei ao bairro carioca famoso pela boemia por acaso, acompanhando pelo vaidoso, excêntrico e extravagante amigo de uma amiga que se ofereceu pra me levar lá e abrigo na sua casa. Desisti de ir a casa dele após conhecer o Baixada e a Lapa – o Baixada por ser companhia mais verdadeira e palatável e o bairro por estar infinitamente distante da minha modesta concepção de boemia. Muitos jovens e adolescentes de classe média, carros, barulho, agitação, álcool, policiais, drogas. Impossível circular, sentar, conversar, relaxar. Muita futilidade, vaidade e papo furado na primeira pessoa. O amigo da amiga só bebia destilado – eu não bebo destilados - e cantava de Cauby a Mamonas Assassinas – convenhamos, é um idílio ouvir um bando de bebuns cantando a madrugada toda, sobretudo, após um dia longo e cansativo! O amigo da amiga gosta de usar drogas, mas, não de se envolver – típico da hipocrisia classe media. Não sou otário, não arrisco a minha vida e liberdade em função do vicio alheio, por isso também me retirei. Me bastam os meus. O fato dele me oferecer abrigo também não me obriga a aceitar tudo – da sua extravagância à cortesia hipócrita. Solidariedade é o mínimo que se espera de alguém supostamente humanista ou socialista e ela dispensa retribuição ou cortesia.

Baixada chegou atraído pela muvuca da cantoria. Conhecia umas pessoas e começou a conversar. Logo estava falando de Santos. Ouvir alguém falar da minha região após horas sem conversar, sem dormir e cansado de tanto ouvir barulho era o "canto da sereia" - naquilo tudo que isso significa. Mais um santista de comunidade na Lapa bastava pra salvar a minha noite já dada por perdida! Talvez por isso Baixada e eu tenhamos nos identificado. Baixada era o próprio traficante, por isso também resolveu sair e me tirar do olho do furacão - questão de segurança, privacidade, oportunidade e cortesia. Dali fomos pra Providencia e o longo domingo terminou no final do dia na Rodoviária. Na Providencia paramos em um bar que em 2006 eventualmente eu frequentava. Lá conhecemos um paranaense do interior, tipo rustico e desconfiado, mas, que não sei porque motivo foi com a minha cara. Sentou, bebeu conosco, conversou e pagou. Disse que era assaltante e eventualmente fazia outros serviços pra políticos da sua região. Tinha convicção que eu também era do ramo, segundo ele pelo meu jeito discreto e desconfiado. Ele e o Baixada conversaram, ambos eram do ramo, talvez por isso a desconfiança entre eles fosse maior. Nesse meio eu era o contrapeso administrando e mediando, minimizava tudo. Quase sempre sou bom nisso.

É impressionante as surpresas que a vida nos reserva - pessoas, caminhos, situações. Baixada tinha apenas 28 anos, três filhos, uma cadeia em SP e estava fora de casa com a trouxa nas costas após ter brigado com a companheira no Vidigal. Há 4 dias hora ficava na casa de um, hora na rua mesmo. Baixada disse que iria a Santos no dia 03 de janeiro e que nos encontraríamos por lá. Baixada era sinistro, intimidava, mas, eu já conheci piores, em lugares piores e no papo reto, humildade e com as ideias certas nos entendemos. Ao final prevaleceram o respeito e a admiração mutuas. Baixada revelou-se humilde, humano, honesto, digno. Revelou-me com franqueza no olhar, gestos suaves, voz moderada, pausada e poucas palavras a sua historia, seus valores, suas angustias, ideias e sonhos. Demonstrou interesse por mim, questionando-me sobre a minha conduta, postura e a minha vida. Espantou-se por saber que tenho quase 40 anos, uma filha em Niterói, que cresci em comunidade em Sampa e que atuei em diversas delas no RJ e  na capital paulista, interior e baixada santista. Espantou-se e demonstrou admiração, respeito e tristeza ainda por saber que eu era graduado e que já havia atuado como educador em prisões. Disse que eu não devia estar ali com ele, que eu tinha tudo, era digno e grande. Disse-lhe que eu não era nada, nada tinha senão a minha vida, alguns conhecimentos e experiencias, sequer um trabalho, sequer podia ser pai. Disse-lhe que era só um homem no mundo como ele, que luta, sofre, erra, ama, sonha, nasce e morre. Que tudo o que tenho ele tambem pode ter e que ele é um guerreiro, um sobrevivente e que por isso tambem deve fazer por merecer a sua vida e as suas vitorias. A vida é luta e a vitória só vem pra quem enfrenta as suas batalhas.

Baixada conhece o local que eu vivo e eu o que ele viveu em Santos. Conheceu o projeto que trabalhei nas prisões paulistas, citou o nome de pessoas e prisões que estive. Conheceu até a pensão que morei em Itu quando disse a ele que trabalhei lá, explicando que havia ficado em uma no centro, convivendo com ex-presidiários. Disse-me antes: "Pensão da D. Zilá!"  Espantado confirmei tudo! Ainda não nos encontramos, mal digeri esse turbilhão de coincidências e afinidades ao acaso, não sei se nos encontraremos de novo ou aonde,  mas, não importa, basta que a vida é imprevisível e vale a pena vive-la e lutar, senão por nós e pelos que amamos, em solidariedade aos que sobrevivem e lutam! E ele perguntou o meu nome antes de ir-se, apresentou-se e não me chamou mais de "baixada."

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