"Raspai o juiz, encontrareis o carrasco." Victor Hugo
Há duas décadas e meia que convivo em favelas. Nelas fiz amigos, desafetos, brinquei, trabalhei, comemorei, festejei, conversei, debati, discuti. Fui criança, adolescente, jovem e fiz-me homem nelas. Entre o final da década de 80 e inicio dos anos 90 foi-se a inocência e começaram os crimes e mortes na favela em que cresci. Nas comunidades crime e morte são indissociáveis. A sociedade e, sobretudo, o Estado são cúmplices e pródigos nisso. A histórica criminalização da pobreza é um processo sofisticado, célere e permanentemente em curso no país, a despeito da democracia, universalização de direitos sociais, humanos e de cidadania e o incremento do Estado de bem estar social. A perversidade do processo brasileiro de criminalização da pobreza consiste na articulação de esforços múltiplos e de diversos agentes públicos e sociais, instituições e dispositivos técnicos e legais tanto sutis quanto contundentes e eficazes. Não falarei da policia, essa eu deixo pros intelectuais, políticos, especialistas, juristas, padres, rábulas, entre outros parceiros ou adversários no mercado e/ou arena da segurança publica e violência in abstrato - teórica ou aritmética -, ávidos por poder, visibilidade, prestigio, recursos financeiros. Desnecessário escrever sobre isso pra quem se vê obrigado a conviver cotidianamente com ela, o sangue basta e se impõem as teorias e números.
A democracia exigiu novos meios para a tradicional criminalização da pobreza e se proceder o controle social. Medidas profiláticas, coercitivas, reguladoras e tuteladoras adquirem primazia sem prejuízo as tradicionais repressoras. O caráter legalista, reacionário, formal, normativo, revelam os traços de uma cultura bacharelesca pedante e autoritária típicos da mentalidade elitista e pequeno burguesa que predomina na sociedade. A aquisição de novos direitos formais não corresponde a sua universalização efetiva. A manutenção desses direitos não supõem maior mobilização e organização popular na base e a apropriação deles pela sociedade. Tanto a popularização de direitos quanto a sua valorização, utilização e defesa são subestimados senão desqualificados junto a setores excluídos e apartados do poder na sociedade. A classe media e as elites tanto quanto o Estado e os meios de comunicação burgueses, combinados a histórica tradição individualista-personalista impõem e reproduzem na sociedade essa versão peculiar, tosca e incipiente de democracia autoritária, avessa e que despreza e desdenha direitos. Completam o quadro fatídico a tradição politica - publica e partidária - elitizada, reservada a burguesia e a classe media - inclusive a esquerda - e o descrédito das massas pela politica diante do Estado autoritário, voraz, indolente, corrupto e incompetente.
No bojo da democracia vieram as instituições e mecanismos que deveriam efetivar e consagrar os direitos assegurados formalmente. Com a democracia vieram ainda a globalização, a hegemonia das democracias ocidentais e a crise das esquerdas. A institucionalização da luta politica refreou o impeto ao inscrever setores da classe trabalhadora e luta popular no quadro do jogo do poder ao mesmo tempo em que aumentou-lhes o gosto pela boa vida publica e o poder. Os rigores jurídico-estatais - exigências do jogo do poder - cristalizaram e domesticaram elementos tradicionais médios e intermediários nas instancias publicas e de poder - técnicos e burocratas públicos, políticos, sindicais, sociais - apartando-os e aumentando o abismo que os separa e as instituições das bases populares. Essas novas relações sociais, esses novos arranjos entre o Estado e a sociedade pouco mudaram as relações de poder na base, senão incorporando - cooptando e seduzindo - setores médios a cúpula com ela identificados e a seu serviço - por interesses pragmáticos ou afinidades ideológicas.
A criminalização da pobreza pressupõem o rigoroso controle social que vai da exclusão dos estratos populares do poder publico-politico-partidário a manutenção dos meios de acesso a ele através de procedimentos burocráticos de exclusão-interdição e intermediários individuais diversos - técnicos, políticos tradicionais, burocratas públicos, representantes partidários. O contorno burgues verifica-se do procedimento - autoritário, elitizado - a preferencia individual por técnicos orgânicos da classe media tanto quanto pela aversão e desprezo por setores populares - sujeitos, praticas, instituições, cultura, valores, saberes. A esquerda brasileira não se excluí desse processo, pelo contrário, se identifica com ele e o reproduz, perpetua e reforça negligenciando a critica e a autocritica.
O escopo da esquerda é vasto e alem do discurso progressista - para os moderados - ou revolucionário - para os radicais - compartilham a preferencia pela classe media na cúpula e no interior dos quadros militantes e da burocracia partidária. É bom que se diga, conheço o PT de três gestões municipais, em dois Estados e já colaborei tanto com o PSoL quanto com o PCO. Tenho amigos no PCdoB e PCB. Conheci lideranças populares históricas, fortes e legitimas junto as bases, porem, muitos dos quais ligados e subservientes a burocracia partidária por conveniência ou ignorância, de forma escancarada ou dissimulada. Para o PCO por exemplo, a luta e os movimentos populares devem servir ao partido, posto que "a clareza", o marxismo e a vanguarda da revolução pertençam exclusivamente a ele. Nada mais escolástico, iluminista, autoritário, presunçoso, elitizado e contraditório! Para o PSoL eles são secundários porque optam por transferir a luta das bases para os tribunais ou o parlamento. Nada mais burgues, elitizado, arrogante e asséptico, o avesso da politica! O PT por sua vez, da capilarização por meio do sindicato e igreja junto as bases populares passou a real politik da cooptação e aquisição escancarada de lideranças e instituições através da maquina.
Cooperam com a criminalização e o controle social no bojo da ordem de direitos variados instrumentos, mecanismos, instancias e atores públicos e sociais, alcançando e atingindo em cheio os indivíduos, as famílias e as comunidades. O Estado onipresente, onipotente, onisciente, zelador da ordem, guardião das leis e protetor da sociedade é um parceiro perverso. É o Estado o legislador-parlamentar, o técnico-burocrata, o fiscal, o bedel, o meirinho, o promotor e o juiz. Acaso não são esses os bons cidadãos, os fidalgos, os ilustrados, os virtuosos e honrados homens públicos e de bem? Os homens de poder a serviço do Estado e do status quo não são mais apenas o delegado, o politico, o padre, o escriturário, o advogado-magistrado - bacharéis. Cumprem papel mais profícuo e relevante os batalhões de técnicos, fiscais, agentes, educadores e conselheiros dissimulados sob o sacrossanto adjetivo social ou comunitário. Controlando, fiscalizando, vigiando, manipulando, responsabilizando, oprimindo. A face da universalização dos direitos nas diversas comunidades espalhadas pelo país não é a da oferta de vagas disponíveis nas creches, tampouco a de escolas e ensino de qualidade para adolescentes e jovens, antes é a do Conselheiro Tutelar e a do Técnico em Medida Socioeducativa prontos a responsabilizar, intimidar a família e o individuo com o rigor dos códigos, a despeito da omissão, negligencia e violações estatais. A universalização de direitos dissimula a sua face perversa no caráter seletivo que controla e estigmatiza setores populares apartados do poder. As diversas violências e maus tratos, variadas formas de exploração e negligencia de crianças, adolescentes e jovens tanto quanto os delitos e infrações não são prerrogativas das classes populares, embora seja ela a clientela cativa dos conselhos tutelares e orgãos fiscalizadores ou executores das medidas socioeducativas. A expansão do mercado dos Técnicos em Medidas Socioeducativas pelas periferias, embora seja só um sintoma, não deixa duvidas quanto ao caráter seletivo opressor e controlador estatal célere na criminalização da pobreza. A verificação da oferta de vagas constata-se na Brasilândia, Perus, São Matheus, Jardim Ângela, Sapopemba, Vila Jacuí, Capão Redondo, Jardim São Luiz, não em Pinheiros, Itaim Bibi, Jardins, Moema. O Estado democrático de direito é sutil, embora não renuncie a força da lei e das armas, tampouco ao carrasco.
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