A mulher de meia idade chega
acompanhada por uma jovem – a mais velha por volta de 50 anos e a mais nova a
metade. Ela vem empurrando um carrinho repleto de bagagens – malas, embrulhos,
caixas. Enquanto ela revela demasiada altivez e soberba em tudo – na postura, gestos,
fala, trajes, olhar - a sua acompanhante é o exato oposto – submissa, dócil,
subserviente, contida, humilde, simplória. A relação de poder é latente: de um
lado a dominação/opressão, de outro a submissão/obediência. A soberba
corresponde a reverencia no olhar submisso, a cabeça baixa ao olhar altivo, o
vestuário exuberante aos trajes simplórios, tudo deliberadamente pra destacar o
lugar de cada um na ordem social e a suposta superioridade de alguns em relação
aos demais.
A “mucama” era tudo menos pessoa:
acessório, mula, criada, medianeira, segurança, serva, lacaia - quem sabe até provadora
de alimentos suspeitos na hierarquia da criadagem? Sinhá “Chapinha” mal olhava pra ela, apenas
ordenava um tanto incomodada – menos pelos citadinos a sua volta que pela
necessidade de precisar dirigir-se a “besta” –, afinal, adestrada, deveria
adivinhar pelo olhar o que se espera dela! Enquanto Sinhá observava oscilando
entre o blasé entediado e a irritação constrangida, a criada se esforçava para
descer as malas do carrinho e colocá-las no interior do transporte. Percebo com
espanto que poucas pessoas notam a cena. Comento com a minha namorada. Sinhá
parece perceber e, embora demonstre algum desconforto, não é o suficiente pra
ajudar a “mucama.” Comento com a minha namorada que é compreensível, afinal
basta toda aquela bunda para quem têm que carregá-la!
Quando desembarcamos Sinhá
sentiu-se incomodada com a situação – sua bagagem bloqueava a passagem de
todos. Ela dirigiu-se a mim irritada e constrangida me pedindo pra esperar um
pouco, enquanto a sua criada esforçava-se descendo a bagagem diante da impaciência
e impassibilidade de Sinhá. Passei ao lado ignorando-a, pedi licença a criada e
seguimos. Adiante, Sinhá foi interpelada por um funcionário da companhia de
viagem, a “mucama” falou com o empregado – Sinhá permanece impassível. Sinhá
mostra-se a altura da alta estima quem tem de si e elevada posição social que se supõem – não fala com subalternos,
quando muito lhes dirige um olhar piedoso ou de desprezo. Assunto encerrado
retiram-se, Sinhá empurrando um carrinho com sua bagagem pessoal e a criada o
volume de malas, embrulhos, caixas.
Lembrei-me de Senadá. Moça prendada. Cuidava da casa e das crianças. Foi trazida a São Paulo do interior da Bahia por um casal de conhecidos dos meus pais – Antonio e Aparecida. Ambos evangélicos – ele pastor. Lembro-me dele na “venda” do Seu Lídio e depois do Seu Zé quando eu era criança: bêbado, jogando, brigando, assediando as moças. Nessa época ele não era crente. Jesus deve ter salvado ele, tocado o seu coração e pra não perder a viagem a família toda – esposa, filha, genro, cunhado. Não pretendo imiscuir-me em assuntos de religião, tampouco na fé alheias, porem, não me parece muito cristão retirar uma menina da sua família pra usá-la como empregada domestica em troca de abrigo e comida. Senadá seguiu o destino providenciado por Jesus e acabou na igreja, arranjando matrimonio e família por lá mesmo. Senadá deve ser livre hoje, uma respeitável “irmã”, mãe e dona de casa. Nunca saberemos o que Senadá poderia via a ser ou se alguma vez ela sequer pode pensar sobre isso....
A despeito dos diversos
Estatutos, PECs das domésticas, Conselhos, Comissões, Secretarias de Direitos
Humanos, políticas publicas e propagandas, ainda existem muitas Senadás e
outras “mucamas” espalhadas pelas grandes cidades Brasil afora. Mais ou menos escondidas,
mais ou menos invisíveis, mais ou menos toleradas, “acolhidas” para servir as “sinhás”
e as “casas de família”, inclusive nas periferias em troca de comida e abrigo. Sem
direitos, sem voz, sem dignidade, sem escolha. Ignoradas, aviltadas, maltratadas,
exploradas – inclusive sexualmente. A ultima vez que soube de Senadá foi ao
final da década de 90 e a cena da Sinhá com a sua "mucama" deu-se há dez dias no Aeroporto
Internacional de Guarulhos, no interior do ônibus pro traslado entre os portões
1 e 2 para os 3 e 4 e no saguão pro check-in, mas, bem que caberiam numa crônica
do século XIX.
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