quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Origens do Direito: Um olhar sobre a Antiguidade


Quanto mais leis, menos justiça. (Provérbio Alemão)

                A proposta de se pensar o desenvolvimento histórico do “direito” – matéria sobre a qual se fundam os Direitos Humanos - vai nos conduzir a Grécia antiga. O direito[1], nesta perspectiva, situa-se na relação “dialética[2]” entre os fundamentos da justiça e as determinações “legais”. Nos livros I e II da “República”, Platão vai dizer que a (...) “justiça consiste na verdade e em restituir aquilo que se tomou de alguém (...)”. Desde que tal restituição, no entanto, “não seja prejudicial ao depositário – como restituir armas a um louco.” Podemos perceber que a justiça aqui, tem duas finalidades, uma moral – compromisso com a verdade e o bem – e a outra – material – restituir e/ou compensar um prejuízo. No longo diálogo travado entre Sócrates, Glauco e Trasímaco coloca-se em questão o caráter e a natureza da justiça, do homem e do Estado justo e injusto – (..) “a justiça figura entre os maiores bens, os que são dignos de se possuírem em virtude das consequências que deles derivam, mas muito mais ainda por eles mesmos – tais como a vista, o ouvido, o bom senso, a saúde, e quantos outros bens há aí produtivos pela sua própria natureza, e não resultantes da reputação -, exalta então na justiça o que ela tem de vantajoso por si mesma para quem a possui, e, na injustiça, o que ela tem de prejudicial, deixando a outros o cuidado de elogiar os ganhos e a reputação”(...). Em Platão, como se vê, a natureza da justiça não pode ser um “bem para si.” Não pode ser um bem pessoal, um patrimônio individual como qualquer outro, antes é aquilo que organiza a sociedade, sustenta suas relações e busca o bem comum, os interesses de toda a sociedade. Porque o interesse publico deve ter primazia sobre o particular. Por isso também Platão foi considerado como utópico e/ou idealista. Trata-se de buscar por meio do pensamento filosófico, assentar a justiça em bases morais e éticas e, assim, legitimá-la, desvinculando-a do arbítrio e da força. Por isso, deve ser garantida por algo maior e mais forte que os indivíduos – a sociedade e o Estado.

                Aristóteles, por sua vez, na “Política”, começa a sua argumentação nos oferecendo um panorama da sociedade grega, enfocando as relações sociais para demonstrar a absoluta e incontestável superioridade do Estado (o todo) sobre a sociedade e o indivíduo (as partes) – (...) “é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é, por natureza, um animal político.” Adiante, contudo, ressalta que (...) “a justiça é o vínculo dos homens, nos Estados, porque a administração da justiça, que é a determinação daquilo que é justo, é o princípio da ordem numa sociedade política.” Para Aristóteles, o problema da justiça consiste na resolução da equação de uma relação de poder fundamentalmente desigual, posto que as posições sociais justificam-se em termos de “determinações naturais” – Aristóteles recorre a explicações “naturais”, de modo a alicerçar seus argumentos para justificar as posições hierárquicas na sociedade grega e a dominação como, por exemplo, dos homens sobre a mulher e escravos. Para ele, as relações sociais só podem ser apreendidas dentro dos esquemas de dominação estabelecidos pelas relações de poder determinadas por características imanentes das sociedades e do homem – na Grécia antiga apenas o homem livre e detentor de posses ou títulos participava da vida pública/política e possuía a plena cidadania.

                Na Roma antiga também a plena cidadania e o reconhecimento de direitos estava condicionado à posição social - bens, títulos - e a tradição. O pleno direito a cidadania em Roma conferia ao indivíduo a persona civil, tendo “direito” ao nomen, praenomen e ao cognomen que a sua origem lhe atribui. O praenomen traduzia a ordem de nascimento do antepassado que a ostenta. Documentos como a Tábua de Lyon (48 DC), concediam por ordem do imperador Cláudio, aos jovens senadores o direito as imagens e ao cognomina de seus antepassados. Essa é a origem da relação entre tradição familiar e poder político, da apropriação do Estado pela família e da utilização privada do poder publico. O nome, a tradição de família garante a manutenção e perpetuação no poder. Qualquer semelhança com a história e a realidade brasileira não é mera coincidência[3]!

                Desde então o senado romano passou a compor-se de um número determinado de patres representantes das pessoas, das imagens de seus ancestrais. Assim, a “pessoa” - possuidora destes “direitos” – torna-se um fato fundamental do direito[4]. No relato feito por Tito Lívio da revolta dos plebeus romanos na região do Aventino, na embaixada de Menênio Agripa, os patrícios não compreendem como Agripa pudesse imaginar que saíssem palavras da boca dos plebeus quando logicamente só poderiam sair ruídos! A posição dos patrícios, no entanto, consiste em que não há porque discutir com os plebeus pela simples razão de que estes não falam. Não falam porque não possuem a persona civil, são seres sem nome, privados de inscrição simbólica na polis - qualquer semelhança com amplos setores da população brasileira também não é mera coincidência!

           Em ambas as sociedades, o “direito” - a existir, a palavra, a ser reconhecido enquanto pessoa política ou jurídica - era o direito a estar revestido de um Estado. As relações sociais e/ou públicas eram a mesma coisa, no entanto, estavam restritas aos cidadãos e/ou aos patrícios. O caráter pessoal do direito estava estabelecido, portanto, o direito ainda não era universal. O direito estava restrito a uma pequena parcela de privilegiados na sociedade. Para Clastres “falar é deter o poder de falar.” Somente o “exercício do poder assegura o domínio da palavra: só os senhores podem falar.” Assim, “os súditos” e todos os que não estão em igual condição devem submeter-se “ao silencio do respeito, da veneração ou do terror.” O poder é o meio cujo fim encontra-se no privilégio da palavra. “O desejo da palavra”, afirma ele, “encontra sua realização na conquista do poder.” Em todas as sociedades e em todas as épocas, verifica-se que “o homem de poder”, constitui-se na “única fonte de palavra legitima.” É nestas circunstâncias que a palavra adquire o status de “ordem”, emprestando a autoridade do poder constituído.

                O privilégio da palavra, a produção e a manutenção do discurso – “em todas as sociedades e em todas as épocas” –, para Foucault, trata-se de um instrumento indispensável para o exercício do poder. O discurso pronunciado consiste em uma prática “controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo numero de procedimentos cuja função é a de dominar o seu acontecimento aleatório, ocultar e omitir a sua materialidade.” Entre estes procedimentos ele destaca a “exclusão” e a “interdição”. Com efeito, em parte alguma nem ninguém, “tem o direito de dizer tudo, não se pode falar de tudo em qualquer circunstância; qualquer um não pode falar de qualquer coisa.” Haverá sempre, conforme ele afirma, “o tabu do objeto, o ritual da circunstância e o direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala.” Assim, é relevante pensar que é a partir dos registros policiais que tem origem o processo de construção institucional da ideia / conceito de violência na sociedade no contexto democrático, a despeito dos índices de mortes violentas beligerantes que caracterizam a nossa realidade.




[1] Entendido como noção de homem simplesmente, inseparável da pessoa humana.
[2]Capacidade de dialogar com método, de modo em que se constrói o raciocínio a partir da observação das contradições dos argumentos e/ou fatos.
[3] http://congressoemfoco.uol.com.br/noticia.asp?cod_canal=21&cod_publicacao=36713Quase 300 deputados têm parente na política. Relações de família com outros políticos são a realidade de quase metade da Câmara. http://congressoemfoco.uol.com.br/noticia.asp?cod_canal=21&cod_publicacao=36670. Dois terços dos senadores têm parentes na política. Dos 85 parlamentares que exerceram o mandato este ano, entre titulares e suplentes, 57 têm alguma forma de parentesco com outros políticos. Acessado em 11/04/2011 - 07h00

Referências

ARISTOTELES, Vida e Obra, Política, (Livros I, II, III) in: Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1999.
CLASTRES, Pierre, A sociedade contra o Estado, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
FOUCAULT, Michel, A ordem do discurso, São Paulo: Imaginário, 2001.
MAUSS, Marcel, Vida e Obra, in: Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1978.
PLATÃO, A República (Livros I, II, III), São Paulo: Martin Claret, 2002.
_______, Diálogos (Defesa de Sócrates, O Dever), São Paulo: Cultrix, 1963.

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