Conheci o
São Carlos, Rio de Janeiro, no final de uma tarde de quarta feira em setembro
de 2013. Estava na campanha dos Correios pelo PCO. Havia visitado pontos de
distribuição em Niterói e Manguinhos durante o dia, panfletando e entregado
jornais o dia todo, dialogando e mobilizando as bases pra Assembleia da
categoria que aconteceria dali há uns dias.
Andar pelo
Rio de Janeiro, desde 2006 é pros fortes! A cidade, desde o Pan, é um canteiro
de obras permanente! O cotidiano é de trânsito, poluição, congestionamentos,
calor, transporte precário. Eu cheio de malas pesadas, sujo, suado e cansado!
Cheguei na pensão, tomei banho e saí comer e tomar uma cerveja. Conforme tinha
pouca grana e não tenha problemas com estabelecimentos simples e comunidade,
logo fui pro pé do Morro São Carlos - estava instalado há dois quarteirões de
lá. O São Carlos fica perto do centro, próximo a Prefeitura, Rodoviária e a
Central. A entrada do morro é um sobe e desce constante de pessoas, vans,
mototáxis. Subi um pouco, vi um estabelecimento simples, poucas pessoas e a TV
ligada num jogo da Liga dos Campeões da Europa - Inter e não lembro o
adversário. Cheguei, cumprimentei geral, sentei e pedi uma cerveja. Acendi um
cigarro e relaxei.
Jogo de
futebol em bar é isso: a cada lance, um debate. Logo eu já estava em meio aos
debates com os frequentadores! Na terceira garrafa as mesas já haviam se
juntado. Enfim, um cara mais ou menos da minha idade perguntou se eu era novo
por ali. Disse que não, que era de Sampa e estava ali em razão do trabalho.
"Desce outra!" Conversa vai, conversa vem, logo surge o assunto:" vamos ficar só
na cerveja?" "E aí?" Perguntei.
Ele era
mais velho, morador antigo da comunidade, Reginaldo, trabalhador ambulante,
cerca de 45 anos, pai de família. Perguntou se eu ia subir ou se ficaria
esperando ele. Não existe esperar, não pra quem conhece a função! Logo
estávamos escalando e nos embrenhando pelo morro. Logo percebi que estava
comigo e só por mim. Que Reginaldo era do tipo gaiato que adora ganhar em cima
de quem quer que seja em casa, não sabe ser anfitrião, ignora o filtro de
classe.
Ao
chegarmos numa boca começou o terror: "é 20, só tenho dez!" Peguei os
dez e dei 40. Cena do louco: " te dei dez antes, você ficou com mais dez
meu!" Saquei na hora qual era a presepada e disse: "Seguinte, vamos
encostar num bar e ver essa parada!" No bar falei: "Tu acha mesmo que
eu subi o morro pra ganhar dez real teu, parça?!!!" Ele me olhou com cara
de besta. Emendei: "Por falta de dez é vinte pra nós beber aqui
agora!" Sentamos e bebemos.
Reginaldo
era sinistro, tava em casa e quanto mais usava e bebia, mais estava disposto a
me testar e me ganhar! Naquelas alturas, no entanto, pra mim só restava ganhar
tempo e me fortalecer no morro - sabe-se lá como! Não havia a menor
possibilidade e sequer sabia como descer o morro o sozinho! O São Carlos não é
uma comunidade grande, mas, é um imenso labirinto. Emaranhado de vielas,
becos, escadarias escuras em que no máximo passam duas pessoas por vez! Armas, muitas armas nas curvas - fuzis, pistolas, granadas, revolveres! É
impossível sem conhecer a área, entrar e sair de lá sozinho a noite! Portanto,
precisaria me arranjar pra sair dali.
Depois de tomar uma cerveja num bar perto da
boca e usar, fomos a um outro em que tinha sinuca e TV. Logo saquei que
era um dos points do morro. Ao chegar, uns caras cumprimentaram ele e a mim
também! Aproveitei o deixa pra me apresentar e os caras me disseram pra ficar a
vontade. Imediatamente falei com o dono e engatei umas ideias com os caras.
Reginaldo a essa altura estava meio bêbado e ficou mais de canto com outras
figuras sinistras. Num certo momento, vi que os caras que eu conversava tomavam
vinho e pedi um vinho, logo Reginaldo veio dizer que estávamos bebendo cerveja.
Falei que ele não precisava me dizer sobre o que eu estava bebendo e que se ele
não quisesse beber vinho era só não beber. Os caras falaram pra ele: "aí,
deixa o maluco beber o que ele quiser!" Logo percebi que Reginaldo era só
o que eu havia pensado que fosse: um gaiato e oportunista sacana! Adiante, pedi
um cigarro pro dono do bar. Vi que tinha pessoas fumando discretamente, mas,
conforme não fosse dali, resolvi ir a porta pra fumar, pra em seguida ele vir
me dizer que "não precisava sair", que "podia fumar ali."
Cansado, perguntei logo se ele era o dono do estabelecimento! Os caras que
estavam lá riram e me disseram pra ficar de boa. Fumei, voltei pra dentro,
ficamos vendo o jogo do Flamengo, bebendo vinho, cerveja, conversando, fumando -
o dono do estabelecimento apenas exigia que se fumasse perto da porta e com
discrição. Conversa vai, conversa vem, saí com outro cara de lá pra pegar um pó
- ele foi na cola. Chegamos na boca, o parceiro me apresentou pro dono -
"paulista!" O cara me saudou: "e aí paulista, perdido no
morro?!" Respondi que conhecia o Rio desde 2005, que já havia morado e que
tenho uma filha em Niterói, mas, que era minha primeira vez no São Carlos.
Logo ele pegou o pó, serviu-nos, abriu um pacote do dele e esticou as carreiras!
Agradeci e disse que não pretendia usar ali: "em Sampa boca é pra comprar,
não pra usar." Reginaldo logo veio dizer que "paulista é tudo
vacilão!" Ao que o patrão disse que "tava ligado", que
"esse é o movimento certo mesmo!" Emendou dizendo pro Reginaldo que
não tem essa de "vacilão", que boca "é movimento" e a
parada é "comércio, não consumo e que ali ele estava fazendo uma
presença!" Que na "comunidade dele não tem pilantragem nem esculacho,
que tem que saber receber quem chega na humildade e no respeito e que,
quando eu fosse lá, podia procurá-lo: Marcio Carteiro!" Pistola numa mão, outra na cinta, sacola de drogas e dinheiro a tiracolo! Me explicou porque
o apelido dele era carteiro - porque antes ele cuidava da correspondência no morro - e eu disse que meu irmão se chama Marcio! Conversamos um pouco e eu disse que era de Pirituba e ele disse que conhecia. Disse que podia chegar quando quisesse e procurá-lo - "tava em casa!" Reginaldo
se calou e se retirou. Saí com o parceiro que havia descido comigo pra boca. Subimos
pro bar, no caminho, paramos pra cheirar de novo e ele me perguntou como eu
voltaria - porque Reginaldo já havia se afastado. Disse que ia me virar "morro
abaixo." Não me recordo do nome dele, apenas do seu rosto e que a sua
companheira já estava lhe procurando, brigando com ele pra que fosse embora.
Lembro apenas que ele me olhou bem fixamente no rosto e disse: "vou com você até o ponto de mototáxi, pega um, desce e vai pra casa." Insisti em
descer a pé e ele repetiu com a mesma ênfase: "não faça isso, vai por mim
paulista, pega um mototáxi e desce!" Entendi o recado, agradeci, subi na
garupa da moto e cheguei ao pé do morro - saquei que já estavam me ganhando há tempos, muito provavelmente no esquema do Reginaldo. Entrei na pensão, dormi, voltei a
Sampa no dia seguinte. Nunca mais voltei ao São Carlos. Nunca mais revi ninguém
de lá. Só sei que não subestimo as comunidades e as pessoas e nem me
superestimo. Porque a realidade da luta de classes é mediada não por teorias e
a coerência que se impõem é a do respeito e humildade, coisa da ordem da práxis
e solidariedade de classe. E o mais é menos.....
O interessante é o seu estilo de escrita é direto, seco e ao mesmo tempo fluido e atrativo. Você consegue fazer com que o leitor se prenda na história. Suas crônicas se aproximam de um estilo do João do Rio e com um pouco de sacada da realidade de Lima Barreto. Como eu já havia lido a introdução do seu livro, eu identifiquei essa escrita logo de cara. Por saber que você é sociólogo, eu esperava uma escrita acadêmica, porém era uma coisa minha apenas. Você escreve bem e tem uma tendência dentro da prosa a produzir crônicas ou contos. Contudo percebo que as tuas fontes são memoriais e por isso, a crônica combina mais com você.
ResponderExcluirE você sempre generoso, atencioso e profundo nas suas observações Sergio! Só engrandece e qualifica o debate!
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