"Quanto mais leis, menos justiça." Provérbio alemão
O atual debate público e social
brasileiro sobre violência, democracia, justiça e direitos humanos está
condicionado pelo antagonismo entre os que defendem a volta da Ditadura e o
recrudescimento da repressão na sociedade e, aqueles que se posicionam pelo
incremento da democracia, expansão de direitos e mais poder popular. Se insere
no contexto das campanhas pela redução da maioridade penal e pelo fim do
Estatuto do desarmamento, das leis contra o terrorismo e a da mordaça, do
encarceramento e extermínio da juventude negra e do vertiginoso aumento da
letalidade policial[1],
passando pela ampla repercussão e o reconhecimento do trabalho realizado pela
Comissão Nacional da Verdade, bem como o debate sobre a “Desmilitarização” das
Polícias Militares no Brasil.
Apreende-se a dimensão desse debate
em pesquisa encomendada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República à Universidade de São Paulo, realizada em 2008 em 153
municípios, 25 unidades federativas e aplicada em 2011 entrevistados -
“Direitos Humanos: percepções da opinião pública.” Essa pesquisa revelou dados
interessantes no que diz respeito ao pensamento social brasileiro sobre
violência e direitos humanos a época em que se comemorava os vinte anos da
Carta de 88. De acordo com os dados levantados, 30% dos entrevistados acreditam
que “presos” devem ter seus direitos resguardados completamente e 40% considera
admissível que eles sejam completamente desconsiderados. Setenta e um por cento
são a favor da redução da maioridade penal e nas perguntas com resposta
espontânea, 43% concordam com a afirmação: “bandido bom é bandido morto” e 1/3
que “direitos humanos deveriam ser só para pessoas direitas.[2]”
De fato, essa pesquisa revela
percepções da sociedade brasileira sobre violência, direitos humanos e
democracia. Indicando ainda que a despeito da Carta de 88, a aceitação e o
pleno respeito aos direitos humanos encontram resistências no interior do Estado
e da sociedade. Por fim, aponta características da democracia no Brasil e é na
relação entre ela e a violência na sociedade que se insere essa reflexão.
Nas últimas duas décadas o Brasil passou por diversas transformações de
ordem econômica, política e sociais, combinando estabilidade econômica e
institucional com a expansão do processo de exploração e acumulação
capitalista. No contexto da democracia e da Globalização, o Brasil – como
outros países em desenvolvimento - passou a ocupar uma posição destacada na
estratégia da hegemonia neoliberal. No bojo desse processo, a expansão do
capital deu-se através da abertura econômica, do incremento da produção e de
novos arranjos produtivos – privatizações, fusões, terceirização, precarização
das relações de trabalho. O maior acesso ao crédito, bens de consumo, políticas
públicas focalizadas, corresponde a expansão da concentração privada, do
controle social e da primazia do mercado na política e na sociedade.
Inserido na “roda da fortuna” do capitalismo globalizado, o país foi
alçado a posição de “parceiro” das grandes potências econômicas mundiais. A
abertura econômica promoveu o desenvolvimento de capitais transnacionais e
investimentos públicos em políticas necessárias a sua expansão no mercado
nacional – parcerias público privadas, subsídios, incentivos, concessões,
controle de gastos públicos e liberalização financeira. Esse modelo
político-econômico vigente é o que melhor atende ao atual estágio de
desenvolvimento do capitalismo global.
O modelo neodesenvolvimentista
brasileiro é a versão repaginada do desenvolvimento capitalista
arranjado pela burguesia nacional formada por grandes conglomerados industriais
e financeiros - Camargo Correia, OAS,
Odebrecht, Friboi, Vale, Bradesco, Itaú, Santander, Gerdau, Ambev e o
agronegócio exportador – beneficiados pelo aumento da participação nacional no
mercado externo, combinada com a política de financiamento público e obras de
infraestrutura imprescindíveis à sua expansão. Trata-se de promover as empresas
e os investimentos brasileiros no mercado externo e as camadas populares “beneficiadas”
pelo crescimento da economia – expansão do mercado de trabalho, crédito,
programas de transferência de renda – na ordem do capital, sem romper com as
velhas estruturas estabelecidas no plano da hegemonia global.
Nesse contexto, a expansão das políticas
subsidiárias do modelo de desenvolvimento econômico neodesenvolvimentista -
obras do Pan, Copa, Olimpíadas, transposição do rio São Francisco, Jirau, Belo
Monte, Minha casa minha vida – coincidem com programas sociais correspondentes,
necessários a dinâmica da produção e mercado, articulando controle e repressão
social – Pronatec, Prouni, Fies, Bolsa Família, Luz para todos, UPPs, Força
Nacional de Segurança. Com efeito, o modelo político-econômico vigente, vem
variando desde o populismo autoritário da era Vargas, passando pelo
desenvolvimentismo anticomunista – “Aliança para o Progresso” – e o
autoritarismo tecnocrático da ditadura civil-militar ad infinitum. Vargas, de um lado, criou a legislação trabalhista, o
Sistema S e o BNDES, de outro enquadrou os sindicatos, organizou o Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP) e o Departamento de Ordem, Política e Social
(DEOPS), encarregados pela doutrinação, controle e repressão.
A “democratização” incorporou novos
direitos, atores, instituições, demandas, discursos, conceitos, técnicas e
valores nas estruturas de poder (campo político) e na sociedade brasileira.
Nesse processo, a reivindicação do Estado de Direito e o incondicional
reconhecimento dos Direitos Humanos tornam-se requisitos indispensáveis à
democracia e a construção da cidadania. Assim, o incremento dos movimentos
sociais corresponde ao fortalecimento do judiciário, constituindo-se os
primeiros nos interlocutores privilegiados da sociedade civil organizada com o
poder público e o segundo o protagonista e mediador desta relação no âmbito do
Estado.
A Carta Cidadã de 88 formaliza o
reconhecimento aos Direitos Humanos como um dos seus pilares (Artigo 4º da
CF/88). Ela possibilita e orienta a criação de instituições, políticas, leis e
órgãos relativos à questão dos Direitos Humanos. Estabelece novas relações com
a sociedade incorporando setores antes excluídos como interlocutores na
construção, defesa, ampliação e promoção de políticas relacionadas aos Direitos
Humanos. Deste modo, temos de um lado, a crescente “colonização das relações
sociais” pela perene atividade reguladora do Estado – juridificação - e de
outro, a judicialização da política e do conflito social (HABERMAS, 1995; SORJ,
2000; KOERNER, 2002).
Nesse contexto, não se pode apreender
essas transformações ocorridas no interior do campo político fora das
determinações do cenário global – fim da Guerra Fria, Consenso de Washington,
Globalização. Desde a era Reagan-Thatcher percebe-se a primazia do capital
financeiro sobre o Estado e os domínios políticos (CHESNAIS, 1996). Do ponto de
vista objetivo, essa nova configuração do Estado redefiniu o seu papel, de
acordo com esse novo contexto global. Assim, percebe-se uma tendência à
incorporação dos valores corporativos de mercado no interior do Estado,
caracterizando-o, do ponto de vista da sociedade como “prestador de serviços
públicos” e, do capital como o seu fiador ou financiador por meio do fundo
público e/ou subsídios e incentivos (OLIVEIRA, 1998). Percebe-se a um só tempo
o esvaziamento do papel do Estado e do conteúdo ideológico intrínseco ao campo
político – seria esse o dito fim da história? Há uma inclinação deliberada que
sentencia o fim das ideologias e utopias, substituindo-as por “demandas”
focalizadas. Trata-se de uma visão reducionista do papel do Estado e da
política conforme as exigências desse novo modelo político-econômico para a sua
manutenção e reprodução – “remendo de pano novo em trapo velho” (FAORO,1989).
Com efeito, esta nova configuração do
Estado acentuou também contradições, antagonismos, resistências e conflitos no
seu interior, no que diz respeito às transformações das relações e dos
procedimentos tradicionais de manutenção e exercício do poder. Os procedimentos
e valores tradicionais constitutivos das relações que caracterizam a sociedade
brasileira são incompatíveis com as redefinições de violência e a afirmação dos
direitos humanos e é esta contradição o que se busca apreender. As
transformações fundamentais no Estado determinaram modificações substantivas na
sua organização e na relação com a sociedade, exigindo novos procedimentos e
discursos que nunca foram constitutivos das práticas e paradigmas
institucionais - tampouco, do caráter da sociedade brasileira. A democratização se estabeleceu novos arranjos
institucionais - políticas de segurança e direitos humanos -, não renovou as
práticas e os valores da sociedade brasileira no que diz respeito à promoção da
democracia e direitos humanos.
Do ponto de vista objetivo,
democracia é um “arranjo institucional” para se alcançar fins políticos. No que
diz respeito a sua definição formal, consiste em liberdades e direitos
políticos (sufrágio universal, eleições periódicas e livres, pluralidade
partidária), direitos e liberdades civis (religião, opinião, imprensa,
transito, associação, propriedade, contratos, entre outros), Estado de Direito
(Constituição, instituições e garantias legais, judiciário livre e
independente, direito a ter direitos). Por outro lado, a definição de
democracia não se encerra nos seus atributos formais. No interior da sociedade
só pode ser apreendida articulada à cidadania, entendida como a capacidade dos
sujeitos de identificarem, valorizarem, defenderem e se apropriarem de todo o
patrimônio social – direitos, instituições, cultura, história, meio ambiente.
Conforme o modo como se constitui o
Estado brasileiro, alicerçado na ordem patriarcal/patrimonial - que caracteriza
o seu processo histórico – lançaram-se às bases às quais se assentariam os
padrões para as relações sociais e institucionais. O desenvolvimento do processo
histórico brasileiro - em termos da sua estrutura política – deu-se orientado
por um modelo que nunca foi democrático. Formado em solo Ibérico – diferente de
todos os outros europeus – foi transplantado para a América, variando desde
então, do paternalismo autocrático do império ao modelo oligárquico republicano
(democracia de elites), passando pelo populismo autoritário até o autoritarismo
tecnocrático, encontramos nas suas origens a sua essência
patriarcal/patrimonial que o define.
A história recente do Brasil
corresponde a uma espécie de reconciliação mais ou menos forçada entre o Estado
e a sociedade – Lei da Anistia 6.683/79. A observação do processo histórico
latino americano revela que as classes dominantes locais tendem a
"militarizar" cada vez mais os seus modelos de dominação – Paraguai,
Venezuela, Colômbia, Chile, entre outros. Cardoso (1975) observará nesse
processo algumas características particulares no que se refere à definição
destes regimes. Definindo-os em termos "autoritário/burocráticos",
chama a atenção para o fato de não serem "mobilizadores", "não
organizam partidos" e, "(...) limitam as tendências existentes para
transformar em doutrinas abertamente autoritárias as bases ideológicas sobre as
quais se assentam". De um modo geral, observa que "(...) com o tempo,
a apatia é preferida à mobilização, a ordem estatal/militar a
político/partidária (...)".
De fato, desde a República
experimentamos mais períodos autoritários do que democráticos. O site do
exército brasileiro (“A história que precisa virar história – antecedentes e
Revolução Democrática de 1964”
e datas comemorativas) é emblemático: "Vitoriosas, as tropas
revolucionárias foram recebidas com aplausos pela população, que saudava a
volta do País à normalidade. Eufórico, o povo vibrou nas ruas com a prevalência
da democracia, restabelecida com a vitória do movimento de março de 64".
Curioso - para dizer o mínimo - esse conceito de democracia[3].
O Estado brasileiro caracteriza-se
pela sua vocação autoritária. A história nos mostra que a tradição autoritária
do Estado brasileiro é anterior à politização dos militares. Após a Guerra do
Paraguai começa o processo de “politização dos militares e de militarização da
política brasileira” (CARDOSO, 1975). Estes são traços que indicam uma tradição
política e modelo de organização social de caráter autoritário. Deste modo,
trata-se de apontar algumas características do processo histórico brasileiro,
destacando aspectos estruturais que definem a sociedade na construção da
democracia. Nesse processo, a relação entre violência e Direitos Humanos oscila
entre a panaceia e uma acomodação mais ou menos forçada – resistência e
negação. No contexto brasileiro, trata-se de um processo funcional e
conciliatório marcado por uma tendência a canalizar, amenizar, diluir e
escamotear os antagonismos, contradições e os conflitos sociais. Assim, o
discurso institucional sustenta a opção política pela “conciliação” à ruptura,
pela acomodação ao enfrentamento, incorporação/cooptação à transformação. Em tudo
o modelo político brasileiro difere dos países latino-americanos, por isso é
imperativo pensarmos a natureza do processo social que caracteriza a nossa
tradição ou cultura política.
Na história do ocidente, a
consolidação do Estado português constituiu-se em um processo que passou a
margem das grandes transformações que abalaram a sociedade europeia feudal –
Renascimento, Reforma Protestante e as revoluções científicas que indicaram a
racionalização das relações sociais. Freire (1963), Holanda (1963), Faoro
(1989) e Prado Jr (1962) entre outros, destacaram a "dominação
tradicional" como a marca singular do processo histórico brasileiro
derivado da colonização portuguesa. O primeiro enfatizou a tradição patriarcal
da família lusitana. Conforme Freire (1963), no Brasil, a empresa da
colonização deveu-se a "corajosa iniciativa particular" do
colonizador português, que "concorrendo às sesmarias, dispôs-se a vir
povoar e defender militarmente, como era exigência real, (...)."
Desenvolveu-se aqui uma sociedade "(...) defendida menos pela ação oficial
do que pelo braço e pela espada do particular." Assentada na família rural
patriarcal constituir-se-ia em uma "(...) força social que se desdobra em
política." Argumenta que do século XVI ao XVIII a colonização portuguesa
no Brasil se caracteriza pelo domínio quase que exclusivo da família rural e
semirrural organizada em torno da monocultura do Engenho – parâmetro para os
meios de produção econômica e social. Para ele, a obra da colonização
brasileira deveu-se a família e não ao indivíduo e, menos ainda, ao Estado
português ou alguma companhia burguesa de comércio. Conforme salienta Faoro
(1989), tudo pertencia ao rei: “senhor da terra, da guerra, do comercio.”
O papel central exercido pelas
relações familiares no processo histórico brasileiro seria também para Holanda
(1963) o que distinguiria a colonização portuguesa das demais na América.
Assim, destaca que a sociedade portuguesa, "(...) estreitamente vinculada
à ideia de escravidão em que mesmo os filhos são apenas os membros livres desse
organismo inteiramente subordinado ao patriarca (...)", caracteriza-se,
por um princípio de autoridade originário da esfera doméstica, que vai
constituir-se no "(...) suporte mais estável da sociedade colonial."
Aí estariam as origens da indiferenciação entre público e privado, quando o
ambiente doméstico oferece o parâmetro para as relações sociais e acompanha o
indivíduo mesmo quando este já se situa fora dele. Faoro (1989), por sua vez,
ressalta que a Península Ibérica caracteriza-se por constituir a sua sociedade
"(...) sob os signos da guerra e da conquista". O período turbulento
de consolidação do Estado português observa o autor, privilegiou o
desenvolvimento de uma "(…) concepção ibérica da natureza humana",
uma "(…) cultura da personalidade (...)", que se definia pelo valor
dado a autonomia do homem e a ausência de qualquer tipo de dependência. De
acordo com os referidos autores, o centro de toda organização na colônia seria
a família rural patriarcal, assentada nas grandes propriedades e estabelecida
na ordem do Estado patrimonial português mantida pela dominação tradicional.
Prado Jr. (1962), por sua vez, destaca nesse processo que “a grande exploração
absorve a terra, o senhor rural monopoliza a riqueza e com ela seus atributos
naturais: o prestigio, o domínio.” Temos aí a origem da concentração dos
poderes econômicos, políticos e do latifúndio. Da Colônia a República
estabelecem-se modos de dominação mais sofisticados e sutis, porém, não menos
perversos, que de acordo com o modo de produção organizam e definem a
sociedade. Identificando-se com o positivismo liberal consolida-se o
“bacharelismo”, instrumento de legitimação, manutenção, acesso e concentração
do poder político entre as elites oligárquicas para a manutenção do incipiente
Estado na corte ao longo do século XIX e durante toda a República Velha.
De acordo com a tradição do modelo
português transplantado para a colônia, as relações sociais estabelecidas na
sociedade brasileira irão se caracterizar pelo particular e pela dependência –
vínculos pessoais, subserviência, submissão. Na Colônia e Império, os estratos
sociais pobres e livres, situados entre os senhores e os escravos, dependentes
da ordem tradicional constituíram-se nos grupos submetidos a esfera de poder do
senhor, a ética da dominação, dependência e violência. Essas eram as bases em
que se assentariam os padrões que constituiriam as relações sociais no Brasil:
no lugar de servidão, submissão; em vez de organização social, coragem pessoal,
vínculos pessoais, a família ao Estado. Desse modo, assinala Franco (1983), a
"graça" do fazendeiro era a "alternativa" para o homem
livre pobre - todos aqueles que se situavam entre os senhores e os escravos -,
suas necessidades mais elementares dependiam sempre das "bênçãos" do
senhor a que se submetia e servia. Condicionado pela dependência, a “dominação
tradicional” amalgama os laços de subserviência e lealdade que o prende aos
mais poderosos. Assim, os procedimentos de caracterização da sociedade e do
Estado brasileiro, o modo como se estabelece esta relação, só podem ser
apreendidos no interior da ordem da "dominação tradicional" - é sobre
relações de poder que estamos falando.
Do ponto de vista histórico, a construção da democracia no Brasil inscreve-se no escopo da
Lei da Anistia (Lei 6.683/79) e reconhecimento do
Estado democrático de direito assegurado pela Constituição Federal de 88. Nesse contexto, os parâmetros institucionais
para se aferir a violência na sociedade e a
construção de políticas de segurança passam pela sistematização das
notificações de crimes – registros e estatísticas que mensuram ocorrências de
violência e mortes decorrentes de causas externas. A dinâmica
da realidade social, por outro lado, não se submete aos rigores científicos,
institucionais ou jurídicos e a estatística, por si
só não pode determinar a violência, apenas a reflexão sobre a distribuição
efetiva das relações de poder no interior da sociedade pode nos indicar.
No Brasil, a criação da “Delegacia da Mulher” (Decreto 23.769/1985), “Ministério Público” e “Defensoria
Pública” (CF/88), “Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)” (Lei 8.069/90),
“Lei Maria da Penha” (Lei 11.340/06) resultam das transformações ocorridas na
correlação de forças na sociedade, de um lado, produto das reivindicações e
lutas sociais, de outro, exigências da democratização. Essas constatações, por
sua vez, indicam mudanças ocorridas na definição institucional de violência em
decorrência da democracia e que estão sendo incorporadas, não sem atritos, pelo
Estado e a sociedade.
A definição institucional de
violência estabelecida pelo Estado, assentada nas formas jurídicas, encontra-se
na base econômica e material da sociedade. Trata-se da cristalização de
representações coletivas estabelecidas conforme o modo como os homens estão
organizados no processo produtivo e as relações sociais correspondentes. A
dinâmica das relações sociais, porém, não se limita as determinações formais, a
violência tanto quanto se manifesta de diversas maneiras pode ser igualmente
apreendida – concreta, material, objetiva, física e/ou moral, subjetiva,
simbólica, psíquica. A base, embora seja material, é no campo ideológico que
ela se legitima, reproduz e reifica.
Assim, muitas vezes escapa ou não se submete as definições formais, aos
rigores jurídicos sendo, assim, maleável, flexível, dinâmica, palatável e
ambígua, socialmente amparada e tolerada pelas convenções locais, cujo controle
quando não escapa totalmente do Estado, ignora os estatutos legais. Por essa
razão, a tradição patriarcal/machista brasileira se impõem na nossa sociedade
após 30 anos das Delegacias das Mulheres e quase uma década da Lei Maria da
Penha. Pela mesma razão se naturaliza a Lei da Anistia tanto quanto a negação
aos direitos humanos à toda a sociedade.
Todas as comunidades,
independentemente da época, dos códigos jurídicos e do Estado, possuem a sua
própria lei não escrita, uma forma de tradição que não pertence a um dado
sujeito ou circunstância, já existia antes sem nunca existir de fato[4].
Do ponto de vista objetivo, o Estado é o guardião da ordem e para a sua
manutenção não dispensa o uso da violência nas suas mais variadas e perversas
formas. Todo Estado é policial e as variações em escalas – em termos
classificatórios – não refletem mais do que padrões estabelecidos para efeitos
de formalização. Apenas a análise das relações de poder no interior da
sociedade e das transformações institucionais decorrentes da democratização é
que poderão nos dizer em que medida ela logrou romper ou superar os paradigmas
autoritários da nossa tradição política.
A transposição mecânica ou formal das definições de democracia e
violência no interior da sociedade, por si só, não transforma os padrões
tradicionais estabelecidos de interação e sociabilidade. O discurso formal
consiste em uma prática “controlada, selecionada, organizada e redistribuída
por certo número de procedimentos cuja função é a de dominar o seu
acontecimento aleatório, ocultar e omitir a sua materialidade” (FOUCAULT,
2001). Trata-se, portanto, de apreender sequências
históricas no desenvolvimento desse processo, apontando seus principais traços
estruturais que caracterizam os modos de transformação dos sistemas sociais que
definem a democracia brasileira. Assim, a construção da democracia no
Brasil desenrola-se numa trama complexa em que “tradição” – autoritária – e
“contradição” – democracia – seguem medindo forças mediadas pela violência
trinta anos após a restauração do regime democrático.
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[1] Relatório
da Anistia Internacional aponta que as polícias brasileiras são as que mais
matam no mundo. Disponível em <https://www.amnesty.org/en/latest/news/2015/09/amnesty-international-releases-new-guide-to-curb-excessive-use-of-force-by-police/> Acesso em 20 out. 2015.
[2]
Recente pesquisa do Instituto
Datafolha revela que a média nacional favorável a redução da maioridade penal
está em 87%. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1616762-87-querem-reducao-da-maioridade-penal-numero-e-o-maior-ja-registrado.shtml> Acesso em: 20 jun. 2015.
[3]
O texto mencionado nesta página foi removido do site do Exército Brasileiro,
bem como o dia 31 de março do calendário referente as Datas Comemorativas. Esse texto foi anotado em consulta ao
referido site no ano de 2004, quando cursava a Especialização em Direitos Humanos
– USP. Atualmente pode-se encontrá-lo nos sites: http://www.jgpimentel.com.br/ (Capitão da Reserva do Exército Brasileiro José Geraldo
Pimentel) e http://www.contasabertas.com.br/website/arquivos/3140.
[4]
Esse debate inicia-se com o dramaturgo grego Sófocles, no diálogo entre a jovem
Antígona e o tirano Creonte. SOFOCLES, Antígona, Porto Alegre: LP&M Pocket,
1999.
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