terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Tradição e contradição: autoritarismo e democracia no brasil

"Quanto mais leis, menos justiça." Provérbio alemão

O atual debate público e social brasileiro sobre violência, democracia, justiça e direitos humanos está condicionado pelo antagonismo entre os que defendem a volta da Ditadura e o recrudescimento da repressão na sociedade e, aqueles que se posicionam pelo incremento da democracia, expansão de direitos e mais poder popular. Se insere no contexto das campanhas pela redução da maioridade penal e pelo fim do Estatuto do desarmamento, das leis contra o terrorismo e a da mordaça, do encarceramento e extermínio da juventude negra e do vertiginoso aumento da letalidade policial[1], passando pela ampla repercussão e o reconhecimento do trabalho realizado pela Comissão Nacional da Verdade, bem como o debate sobre a “Desmilitarização” das Polícias Militares no Brasil. 

Apreende-se a dimensão desse debate em pesquisa encomendada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República à Universidade de São Paulo, realizada em 2008 em 153 municípios, 25 unidades federativas e aplicada em 2011 entrevistados - “Direitos Humanos: percepções da opinião pública.” Essa pesquisa revelou dados interessantes no que diz respeito ao pensamento social brasileiro sobre violência e direitos humanos a época em que se comemorava os vinte anos da Carta de 88. De acordo com os dados levantados, 30% dos entrevistados acreditam que “presos” devem ter seus direitos resguardados completamente e 40% considera admissível que eles sejam completamente desconsiderados. Setenta e um por cento são a favor da redução da maioridade penal e nas perguntas com resposta espontânea, 43% concordam com a afirmação: “bandido bom é bandido morto” e 1/3 que “direitos humanos deveriam ser só para pessoas direitas.[2]

De fato, essa pesquisa revela percepções da sociedade brasileira sobre violência, direitos humanos e democracia. Indicando ainda que a despeito da Carta de 88, a aceitação e o pleno respeito aos direitos humanos encontram resistências no interior do Estado e da sociedade. Por fim, aponta características da democracia no Brasil e é na relação entre ela e a violência na sociedade que se insere essa reflexão.

Nas últimas duas décadas o Brasil passou por diversas transformações de ordem econômica, política e sociais, combinando estabilidade econômica e institucional com a expansão do processo de exploração e acumulação capitalista. No contexto da democracia e da Globalização, o Brasil – como outros países em desenvolvimento - passou a ocupar uma posição destacada na estratégia da hegemonia neoliberal. No bojo desse processo, a expansão do capital deu-se através da abertura econômica, do incremento da produção e de novos arranjos produtivos – privatizações, fusões, terceirização, precarização das relações de trabalho. O maior acesso ao crédito, bens de consumo, políticas públicas focalizadas, corresponde a expansão da concentração privada, do controle social e da primazia do mercado na política e na sociedade. 

Inserido na “roda da fortuna” do capitalismo globalizado, o país foi alçado a posição de “parceiro” das grandes potências econômicas mundiais. A abertura econômica promoveu o desenvolvimento de capitais transnacionais e investimentos públicos em políticas necessárias a sua expansão no mercado nacional – parcerias público privadas, subsídios, incentivos, concessões, controle de gastos públicos e liberalização financeira. Esse modelo político-econômico vigente é o que melhor atende ao atual estágio de desenvolvimento do capitalismo global.

O modelo neodesenvolvimentista brasileiro é a versão repaginada do desenvolvimento capitalista arranjado pela burguesia nacional formada por grandes conglomerados industriais e financeiros -  Camargo Correia, OAS, Odebrecht, Friboi, Vale, Bradesco, Itaú, Santander, Gerdau, Ambev e o agronegócio exportador – beneficiados pelo aumento da participação nacional no mercado externo, combinada com a política de financiamento público e obras de infraestrutura imprescindíveis à sua expansão. Trata-se de promover as empresas e os investimentos brasileiros no mercado externo e as camadas populares “beneficiadas” pelo crescimento da economia – expansão do mercado de trabalho, crédito, programas de transferência de renda – na ordem do capital, sem romper com as velhas estruturas estabelecidas no plano da hegemonia global.

Nesse contexto, a expansão das políticas subsidiárias do modelo de desenvolvimento econômico neodesenvolvimentista - obras do Pan, Copa, Olimpíadas, transposição do rio São Francisco, Jirau, Belo Monte, Minha casa minha vida – coincidem com programas sociais correspondentes, necessários a dinâmica da produção e mercado, articulando controle e repressão social – Pronatec, Prouni, Fies, Bolsa Família, Luz para todos, UPPs, Força Nacional de Segurança. Com efeito, o modelo político-econômico vigente, vem variando desde o populismo autoritário da era Vargas, passando pelo desenvolvimentismo anticomunista – “Aliança para o Progresso” – e o autoritarismo tecnocrático da ditadura civil-militar ad infinitum. Vargas, de um lado, criou a legislação trabalhista, o Sistema S e o BNDES, de outro enquadrou os sindicatos, organizou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e o Departamento de Ordem, Política e Social (DEOPS), encarregados pela doutrinação, controle e repressão. 

            A “democratização” incorporou novos direitos, atores, instituições, demandas, discursos, conceitos, técnicas e valores nas estruturas de poder (campo político) e na sociedade brasileira. Nesse processo, a reivindicação do Estado de Direito e o incondicional reconhecimento dos Direitos Humanos tornam-se requisitos indispensáveis à democracia e a construção da cidadania. Assim, o incremento dos movimentos sociais corresponde ao fortalecimento do judiciário, constituindo-se os primeiros nos interlocutores privilegiados da sociedade civil organizada com o poder público e o segundo o protagonista e mediador desta relação no âmbito do Estado.

A Carta Cidadã de 88 formaliza o reconhecimento aos Direitos Humanos como um dos seus pilares (Artigo 4º da CF/88). Ela possibilita e orienta a criação de instituições, políticas, leis e órgãos relativos à questão dos Direitos Humanos. Estabelece novas relações com a sociedade incorporando setores antes excluídos como interlocutores na construção, defesa, ampliação e promoção de políticas relacionadas aos Direitos Humanos. Deste modo, temos de um lado, a crescente “colonização das relações sociais” pela perene atividade reguladora do Estado – juridificação - e de outro, a judicialização da política e do conflito social (HABERMAS, 1995; SORJ, 2000; KOERNER, 2002).

Nesse contexto, não se pode apreender essas transformações ocorridas no interior do campo político fora das determinações do cenário global – fim da Guerra Fria, Consenso de Washington, Globalização. Desde a era Reagan-Thatcher percebe-se a primazia do capital financeiro sobre o Estado e os domínios políticos (CHESNAIS, 1996). Do ponto de vista objetivo, essa nova configuração do Estado redefiniu o seu papel, de acordo com esse novo contexto global. Assim, percebe-se uma tendência à incorporação dos valores corporativos de mercado no interior do Estado, caracterizando-o, do ponto de vista da sociedade como “prestador de serviços públicos” e, do capital como o seu fiador ou financiador por meio do fundo público e/ou subsídios e incentivos (OLIVEIRA, 1998). Percebe-se a um só tempo o esvaziamento do papel do Estado e do conteúdo ideológico intrínseco ao campo político – seria esse o dito fim da história? Há uma inclinação deliberada que sentencia o fim das ideologias e utopias, substituindo-as por “demandas” focalizadas. Trata-se de uma visão reducionista do papel do Estado e da política conforme as exigências desse novo modelo político-econômico para a sua manutenção e reprodução – “remendo de pano novo em trapo velho” (FAORO,1989).

Com efeito, esta nova configuração do Estado acentuou também contradições, antagonismos, resistências e conflitos no seu interior, no que diz respeito às transformações das relações e dos procedimentos tradicionais de manutenção e exercício do poder. Os procedimentos e valores tradicionais constitutivos das relações que caracterizam a sociedade brasileira são incompatíveis com as redefinições de violência e a afirmação dos direitos humanos e é esta contradição o que se busca apreender. As transformações fundamentais no Estado determinaram modificações substantivas na sua organização e na relação com a sociedade, exigindo novos procedimentos e discursos que nunca foram constitutivos das práticas e paradigmas institucionais - tampouco, do caráter da sociedade brasileira. A democratização se estabeleceu novos arranjos institucionais - políticas de segurança e direitos humanos -, não renovou as práticas e os valores da sociedade brasileira no que diz respeito à promoção da democracia e direitos humanos.
Do ponto de vista objetivo, democracia é um “arranjo institucional” para se alcançar fins políticos. No que diz respeito a sua definição formal, consiste em liberdades e direitos políticos (sufrágio universal, eleições periódicas e livres, pluralidade partidária), direitos e liberdades civis (religião, opinião, imprensa, transito, associação, propriedade, contratos, entre outros), Estado de Direito (Constituição, instituições e garantias legais, judiciário livre e independente, direito a ter direitos). Por outro lado, a definição de democracia não se encerra nos seus atributos formais. No interior da sociedade só pode ser apreendida articulada à cidadania, entendida como a capacidade dos sujeitos de identificarem, valorizarem, defenderem e se apropriarem de todo o patrimônio social – direitos, instituições, cultura, história, meio ambiente.
Conforme o modo como se constitui o Estado brasileiro, alicerçado na ordem patriarcal/patrimonial - que caracteriza o seu processo histórico – lançaram-se às bases às quais se assentariam os padrões para as relações sociais e institucionais. O desenvolvimento do processo histórico brasileiro - em termos da sua estrutura política – deu-se orientado por um modelo que nunca foi democrático. Formado em solo Ibérico – diferente de todos os outros europeus – foi transplantado para a América, variando desde então, do paternalismo autocrático do império ao modelo oligárquico republicano (democracia de elites), passando pelo populismo autoritário até o autoritarismo tecnocrático, encontramos nas suas origens a sua essência patriarcal/patrimonial que o define.

A história recente do Brasil corresponde a uma espécie de reconciliação mais ou menos forçada entre o Estado e a sociedade – Lei da Anistia 6.683/79. A observação do processo histórico latino americano revela que as classes dominantes locais tendem a "militarizar" cada vez mais os seus modelos de dominação – Paraguai, Venezuela, Colômbia, Chile, entre outros. Cardoso (1975) observará nesse processo algumas características particulares no que se refere à definição destes regimes. Definindo-os em termos "autoritário/burocráticos", chama a atenção para o fato de não serem "mobilizadores", "não organizam partidos" e, "(...) limitam as tendências existentes para transformar em doutrinas abertamente autoritárias as bases ideológicas sobre as quais se assentam". De um modo geral, observa que "(...) com o tempo, a apatia é preferida à mobilização, a ordem estatal/militar a político/partidária (...)".

De fato, desde a República experimentamos mais períodos autoritários do que democráticos. O site do exército brasileiro (“A história que precisa virar história – antecedentes e Revolução Democrática de 1964” e datas comemorativas) é emblemático: "Vitoriosas, as tropas revolucionárias foram recebidas com aplausos pela população, que saudava a volta do País à normalidade. Eufórico, o povo vibrou nas ruas com a prevalência da democracia, restabelecida com a vitória do movimento de março de 64". Curioso - para dizer o mínimo - esse conceito de democracia[3].
O Estado brasileiro caracteriza-se pela sua vocação autoritária. A história nos mostra que a tradição autoritária do Estado brasileiro é anterior à politização dos militares. Após a Guerra do Paraguai começa o processo de “politização dos militares e de militarização da política brasileira” (CARDOSO, 1975). Estes são traços que indicam uma tradição política e modelo de organização social de caráter autoritário. Deste modo, trata-se de apontar algumas características do processo histórico brasileiro, destacando aspectos estruturais que definem a sociedade na construção da democracia. Nesse processo, a relação entre violência e Direitos Humanos oscila entre a panaceia e uma acomodação mais ou menos forçada – resistência e negação. No contexto brasileiro, trata-se de um processo funcional e conciliatório marcado por uma tendência a canalizar, amenizar, diluir e escamotear os antagonismos, contradições e os conflitos sociais. Assim, o discurso institucional sustenta a opção política pela “conciliação” à ruptura, pela acomodação ao enfrentamento, incorporação/cooptação à transformação. Em tudo o modelo político brasileiro difere dos países latino-americanos, por isso é imperativo pensarmos a natureza do processo social que caracteriza a nossa tradição ou cultura política.


Na história do ocidente, a consolidação do Estado português constituiu-se em um processo que passou a margem das grandes transformações que abalaram a sociedade europeia feudal – Renascimento, Reforma Protestante e as revoluções científicas que indicaram a racionalização das relações sociais. Freire (1963), Holanda (1963), Faoro (1989) e Prado Jr (1962) entre outros, destacaram a "dominação tradicional" como a marca singular do processo histórico brasileiro derivado da colonização portuguesa. O primeiro enfatizou a tradição patriarcal da família lusitana. Conforme Freire (1963), no Brasil, a empresa da colonização deveu-se a "corajosa iniciativa particular" do colonizador português, que "concorrendo às sesmarias, dispôs-se a vir povoar e defender militarmente, como era exigência real, (...)." Desenvolveu-se aqui uma sociedade "(...) defendida menos pela ação oficial do que pelo braço e pela espada do particular." Assentada na família rural patriarcal constituir-se-ia em uma "(...) força social que se desdobra em política." Argumenta que do século XVI ao XVIII a colonização portuguesa no Brasil se caracteriza pelo domínio quase que exclusivo da família rural e semirrural organizada em torno da monocultura do Engenho – parâmetro para os meios de produção econômica e social. Para ele, a obra da colonização brasileira deveu-se a família e não ao indivíduo e, menos ainda, ao Estado português ou alguma companhia burguesa de comércio. Conforme salienta Faoro (1989), tudo pertencia ao rei: “senhor da terra, da guerra, do comercio.”

O papel central exercido pelas relações familiares no processo histórico brasileiro seria também para Holanda (1963) o que distinguiria a colonização portuguesa das demais na América. Assim, destaca que a sociedade portuguesa, "(...) estreitamente vinculada à ideia de escravidão em que mesmo os filhos são apenas os membros livres desse organismo inteiramente subordinado ao patriarca (...)", caracteriza-se, por um princípio de autoridade originário da esfera doméstica, que vai constituir-se no "(...) suporte mais estável da sociedade colonial." Aí estariam as origens da indiferenciação entre público e privado, quando o ambiente doméstico oferece o parâmetro para as relações sociais e acompanha o indivíduo mesmo quando este já se situa fora dele. Faoro (1989), por sua vez, ressalta que a Península Ibérica caracteriza-se por constituir a sua sociedade "(...) sob os signos da guerra e da conquista". O período turbulento de consolidação do Estado português observa o autor, privilegiou o desenvolvimento de uma "(…) concepção ibérica da natureza humana", uma "(…) cultura da personalidade (...)", que se definia pelo valor dado a autonomia do homem e a ausência de qualquer tipo de dependência. De acordo com os referidos autores, o centro de toda organização na colônia seria a família rural patriarcal, assentada nas grandes propriedades e estabelecida na ordem do Estado patrimonial português mantida pela dominação tradicional. Prado Jr. (1962), por sua vez, destaca nesse processo que “a grande exploração absorve a terra, o senhor rural monopoliza a riqueza e com ela seus atributos naturais: o prestigio, o domínio.” Temos aí a origem da concentração dos poderes econômicos, políticos e do latifúndio. Da Colônia a República estabelecem-se modos de dominação mais sofisticados e sutis, porém, não menos perversos, que de acordo com o modo de produção organizam e definem a sociedade. Identificando-se com o positivismo liberal consolida-se o “bacharelismo”, instrumento de legitimação, manutenção, acesso e concentração do poder político entre as elites oligárquicas para a manutenção do incipiente Estado na corte ao longo do século XIX e durante toda a República Velha.

De acordo com a tradição do modelo português transplantado para a colônia, as relações sociais estabelecidas na sociedade brasileira irão se caracterizar pelo particular e pela dependência – vínculos pessoais, subserviência, submissão. Na Colônia e Império, os estratos sociais pobres e livres, situados entre os senhores e os escravos, dependentes da ordem tradicional constituíram-se nos grupos submetidos a esfera de poder do senhor, a ética da dominação, dependência e violência. Essas eram as bases em que se assentariam os padrões que constituiriam as relações sociais no Brasil: no lugar de servidão, submissão; em vez de organização social, coragem pessoal, vínculos pessoais, a família ao Estado. Desse modo, assinala Franco (1983), a "graça" do fazendeiro era a "alternativa" para o homem livre pobre - todos aqueles que se situavam entre os senhores e os escravos -, suas necessidades mais elementares dependiam sempre das "bênçãos" do senhor a que se submetia e servia. Condicionado pela dependência, a “dominação tradicional” amalgama os laços de subserviência e lealdade que o prende aos mais poderosos. Assim, os procedimentos de caracterização da sociedade e do Estado brasileiro, o modo como se estabelece esta relação, só podem ser apreendidos no interior da ordem da "dominação tradicional" - é sobre relações de poder que estamos falando.

Do ponto de vista histórico, a construção da democracia no Brasil inscreve-se no escopo da Lei da Anistia (Lei 6.683/79) e reconhecimento do Estado democrático de direito assegurado pela Constituição Federal de 88.  Nesse contexto, os parâmetros institucionais para se aferir a violência na sociedade e a construção de políticas de segurança passam pela sistematização das notificações de crimes – registros e estatísticas que mensuram ocorrências de violência e mortes decorrentes de causas externas. A dinâmica da realidade social, por outro lado, não se submete aos rigores científicos, institucionais ou jurídicos e a estatística, por si só não pode determinar a violência, apenas a reflexão sobre a distribuição efetiva das relações de poder no interior da sociedade pode nos indicar.

 No Brasil, a criação da “Delegacia da Mulher” (Decreto 23.769/1985), “Ministério Público” e “Defensoria Pública” (CF/88), “Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)” (Lei 8.069/90), “Lei Maria da Penha” (Lei 11.340/06) resultam das transformações ocorridas na correlação de forças na sociedade, de um lado, produto das reivindicações e lutas sociais, de outro, exigências da democratização. Essas constatações, por sua vez, indicam mudanças ocorridas na definição institucional de violência em decorrência da democracia e que estão sendo incorporadas, não sem atritos, pelo Estado e a sociedade.

A definição institucional de violência estabelecida pelo Estado, assentada nas formas jurídicas, encontra-se na base econômica e material da sociedade. Trata-se da cristalização de representações coletivas estabelecidas conforme o modo como os homens estão organizados no processo produtivo e as relações sociais correspondentes. A dinâmica das relações sociais, porém, não se limita as determinações formais, a violência tanto quanto se manifesta de diversas maneiras pode ser igualmente apreendida – concreta, material, objetiva, física e/ou moral, subjetiva, simbólica, psíquica. A base, embora seja material, é no campo ideológico que ela se legitima, reproduz e reifica.  Assim, muitas vezes escapa ou não se submete as definições formais, aos rigores jurídicos sendo, assim, maleável, flexível, dinâmica, palatável e ambígua, socialmente amparada e tolerada pelas convenções locais, cujo controle quando não escapa totalmente do Estado, ignora os estatutos legais. Por essa razão, a tradição patriarcal/machista brasileira se impõem na nossa sociedade após 30 anos das Delegacias das Mulheres e quase uma década da Lei Maria da Penha. Pela mesma razão se naturaliza a Lei da Anistia tanto quanto a negação aos direitos humanos à toda a sociedade.

Todas as comunidades, independentemente da época, dos códigos jurídicos e do Estado, possuem a sua própria lei não escrita, uma forma de tradição que não pertence a um dado sujeito ou circunstância, já existia antes sem nunca existir de fato[4]. Do ponto de vista objetivo, o Estado é o guardião da ordem e para a sua manutenção não dispensa o uso da violência nas suas mais variadas e perversas formas. Todo Estado é policial e as variações em escalas – em termos classificatórios – não refletem mais do que padrões estabelecidos para efeitos de formalização. Apenas a análise das relações de poder no interior da sociedade e das transformações institucionais decorrentes da democratização é que poderão nos dizer em que medida ela logrou romper ou superar os paradigmas autoritários da nossa tradição política.  A transposição mecânica ou formal das definições de democracia e violência no interior da sociedade, por si só, não transforma os padrões tradicionais estabelecidos de interação e sociabilidade. O discurso formal consiste em uma prática “controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos cuja função é a de dominar o seu acontecimento aleatório, ocultar e omitir a sua materialidade” (FOUCAULT, 2001). Trata-se, portanto, de apreender sequências históricas no desenvolvimento desse processo, apontando seus principais traços estruturais que caracterizam os modos de transformação dos sistemas sociais que definem a democracia brasileira. Assim, a construção da democracia no Brasil desenrola-se numa trama complexa em que “tradição” – autoritária – e “contradição” – democracia – seguem medindo forças mediadas pela violência trinta anos após a restauração do regime democrático.     



BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
Brasil. Presidência da República. Direitos humanos: percepções da opinião pública: análises de pesquisa nacional / organização Gustavo Venturi. – Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010. 272 p. : il.
CARDOSO, F.H. Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Globo, 1989.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Imaginário, 2001.
FRANCO, M.S.C. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983.
FREIRE, Gilberto, Casa grande e senzala. Brasília: UnB, 1963.
HABERMAS, J. Três modelos normativos de democracia. In: Lua Nova, n. 36, CEDEC: 1995.
HOBSBAWM, E.J. Rebeldes primitivos: estudo sobre as formas arcaicas dos movimentos sociais nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. Brasília: UnB, 1963.
MACIEL, D.; KOERNER. A. Sentidos da judicialização da política: duas análises. In: Lua Nova, n. 57, CEDEC: 2002
OLIVEIRA, F. Os direitos do antivalor. São Paulo: Vozes, 1998.
PRADO JUNIOR, C. Evolução Política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense, 1962.
SORJ, B. A nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
VENTURI, G. (org.) Direitos humanos: percepções da opinião pública: análises de pesquisa nacional. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_percepcoes/percepcoes.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2011.




[1] Relatório da Anistia Internacional aponta que as polícias brasileiras são as que mais matam no mundo. Disponível em <https://www.amnesty.org/en/latest/news/2015/09/amnesty-international-releases-new-guide-to-curb-excessive-use-of-force-by-police/> Acesso em 20 out. 2015.  
[2] Recente pesquisa do Instituto Datafolha revela que a média nacional favorável a redução da maioridade penal está em 87%. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1616762-87-querem-reducao-da-maioridade-penal-numero-e-o-maior-ja-registrado.shtml> Acesso em: 20 jun. 2015.

[3] O texto mencionado nesta página foi removido do site do Exército Brasileiro, bem como o dia 31 de março do calendário referente as Datas Comemorativas.  Esse texto foi anotado em consulta ao referido site no ano de 2004, quando cursava a Especialização em Direitos Humanos – USP. Atualmente pode-se encontrá-lo nos sites: http://www.jgpimentel.com.br/ (Capitão da Reserva do Exército Brasileiro José Geraldo Pimentel) e http://www.contasabertas.com.br/website/arquivos/3140.

[4] Esse debate inicia-se com o dramaturgo grego Sófocles, no diálogo entre a jovem Antígona e o tirano Creonte. SOFOCLES, Antígona, Porto Alegre: LP&M Pocket, 1999.

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