quinta-feira, 14 de abril de 2011

CARMA


Faz um ano que ela se foi. Eu não me despedi dela, não tive coragem. Preferi deixá-la ir, como se fosse até ao quintal e logo retornasse. Assim que saiu pela porta espreitei-a pela janela, tinha de vê-la nem que fosse de relance. Vi-a saindo pelo portão correndo toda arrumada, inocente e satisfeita, enquanto começava o meu tormento. 

Essa é uma das ultimas e mais caras lembranças que tenho. Ela se despediu de mim. Lembro-me de ser acordado por um ursinho branco e um olharzinho feliz por detrás dele, um sorriso puro, lindo. Ela me acordou docemente, oferecendo-me seu urso. Naquele instante vi uma pureza e beleza que nunca havia visto antes e tenho certeza que jamais verei de novo. Desconcertou-me, confundiu, me intimidou. Nem tive mais coragem de abrir os olhos ou me despedir. No entanto, lembro-me dos cheiros, das vozes, do silêncio, do peso do bumbunzinho dela em cima de mim enquanto se arrumava! Essas lembranças estimulam minha imaginação e me confortam - às vezes sufocam.

É a primeira vez que consigo escrever sobre isso. Sinto-me tão mal e triste tanto quanto naquele dia, no dia seguinte, hoje. Tentei expressar minha tristeza, frustração, arrependimento, angústia outras vezes, mas, fui incapaz de fazê-lo. Escrevi uma ou duas cartinhas para ela, hoje já não me é permitido fazê-lo. Poucas palavras, letras grandes, para que se forem guardadas ela um dia poderá lê-las. Hoje nem essa alegria posso sentir. Posso apenas, na medida do possível lhe falar, mas, as cartas são o registro definitivo daquilo que se sente e que muitas vezes não podemos ou conseguimos verbalizar. Algumas pessoas não podem entender isso ou simplesmente não se importam. Escrevo na solidão da vigília das intermináveis noites frias acompanhadas pela culpa, pela tristeza e pela lembrança. Nessas horas a distancia é infinitamente maior, vai além do espaço, mede-se no tempo. A cada instante eu penso em como ela respira, como ela sonha, como ela ri, como ela fala, como ela transpira, como chora, pensa, dorme. Será que em algum momento ela ainda pensa em mim? Como ela pensa em mim? Quando? Por quê? Quem eu sou nos seus pensamentos? Só sei que nem me atrevo a especular sobre as razões disso tudo. Esse deve ser o prazer de quem se ocupa com o sofrimento alheio; não é o meu caso. Não culpo, não julgo, não entendo. Apenas aceito e sofro. Me resigno hoje apenas em sofrer, não sei o que o amanhã me reserva. Não me atrevo mais a fazer planos ou criar expectativas, tudo o que tinha me foi retirado, perdi, se foi, que importa se foi assim ou assado? Depende do ponto de vista. Só sei sofrer. Só sei que a saudade e as lágrimas são inesgotáveis. Coisa digna de gente, quem nunca sentiu isso é que deveria chorar enquanto é tempo.

Às vezes me pego sonhando com um futuro distante – em alguns anos vou lhe contar e conversaremos sobre a música dos anos 70. Às vezes pensando no curto prazo – em alguns anos assistiremos tal filme. Já não tenho mais noção exata de tempo - ele voa, “salta” porque só posso experimentá-lo subjetivamente, minha realidade concreta é uma dor e uma lembrança, meu presente é o passado e o futuro é sonho. O tempo para mim mudou muito, já não é mais como era antes dela partir. Cada dia que passa é um dia fora da vida dela. Será uma lembrança do que não vivi. É um dia a mais de tristeza para mim, de impotência, de derrota. Cada dia assim é uma lembrança que deixou de existir, é um nada. Tudo o que eu represento hoje e quem sabe no futuro, talvez não seja mais do que uma criatura como qualquer outra em uma foto. Alguém de quem ela não têm lembranças, vínculos, afeto, respeito, memória ou história. Já não penso tanto, nem sonho muito, sinto minha dor sem pensar nem sonhar. Que será o amanhã para ela? O meu eu sei, será o que sinto todos esses dias desde que ela se foi. Todas as minhas esperanças converteram-se em frustrações que só aumentaram o meu sofrimento. Cada dia aumenta mais a distância no espaço e no tempo, até apagar-se por completo o caminho e a lembrança. Por isso refaço sempre ele na esperança de que permaneçam as pegadas e, assim, o caminho de volta. Temo pelo dia em que ela não me reconhecerá mais e nem eu mais a ela. Desespero-me quando vejo como muda longe dos meus olhos! Quando penso como o tempo transformará ela em uma pessoa que não me conhece e da qual eu nada colaborei para vir-à-ser. Desejo apenas que ela saiba que foi à responsável por todo esse amor inesgotável. Que mesmo sem saber, mesmo a distância e na minha solidão, mesmo na incerteza e impotência, na culpa e na dor, o amor que ela me faz sentir é maior do que tudo e preenche todo o meu ser, transborda o coração. É um amor que se sente no sangue, palpita, supera a razão, o tempo. Isso é uma dádiva, uma graça que só de sentir já me sinto abençoado, espero ser digno de agradecer, compartilhar e retribuir. A propósito, CARMA são as iniciais que formam o nome dela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário