Um diálogo do filme “Jogo Bruto” - cujo diretor eu não tenho duvidas que foi influenciado por Sam Peckinpah – levou-me a pensar sobre a realidade do submundo das drogas – vício e tráfico. O diálogo dá-se entre o capo Kominski e o mafioso Luigi Petrovita quando este pergunta ao primeiro se ele já “havia matado?” Ao responder com petulância se desejava “nomes e endereços” vêm à resposta: “por aqui nós gostamos dos espertos, não dos espertinhos!” O submundo das drogas é repleto de ambos e ao contrário do que pensam os especialistas e suas infalíveis teorias, nada é definitivo, homogêneo, instantâneo, linear. Deveriam saber que as razões ou os instintos humanos - como as sociedades - são sempre complexos, imprevisíveis e indeterminados.
Diferentemente do que sustenta o senso comum, as histórias também nem sempre terminam em cadeia, morte ou internação. Embora convivesse com isso – mortes, prisões e internações - e tenha até trabalhado em um presídio, conviver não é viver, porem era isso que assegurava a minha integridade, credibilidade e respeito - não meus conhecimentos acadêmicos ou minha posição social. Por mais especialista que o estudioso de livros ou planilhas se julgue do assunto - sem ao menos conviver com isso - nunca passará de um extravagante pretensioso. A convivência exige observação e certo envolvimento, que nos faz comprometidos com aquilo que está na nossa realidade, seja ela qual for – isso não significa e nem exige empatia ou conivência. Comprometimento tem um caráter humanista, interesse e senso de responsabilidade social. Aprendi com o vício e no presídio com os presos que não basta saber, é preciso entender, não é possível aceitar sem entender muito menos transformar coisa alguma. Saber sobre o sofrimento é diferente de sofrer, talvez, não seja mais do que pensar sobre ele. O fato é que isso não ameniza ou transforma o sofrimento em paz ou harmonia, não alivia a carga de quem vive. Isso eu chamo de solidariedade, aquilo que falta aos nossos técnicos, especialistas e homens públicos.
No submundo das drogas os espertos são os traficantes. Eles são os senhores. Mandam, desmandam, ditam as regras a revelia dos poderes constituídos. Eles são em muitas comunidades ou locais – como em algumas prisões - o verdadeiro e único poder constituído. Manipulam e barganham a adesão da comunidade na medida em que asseguram a ordem local - o convívio sem outros crimes ou perturbações -, sendo por isso respeitados, admirados e temidos. A comunidade sobra à convivência, tolerância ou a cumplicidade forçadas, abandonada pelo poder público é impossível se opor ou resistir. Conviver com o tráfico pode ser contagioso e fazer se sentir-se esperto. Esse é o maior erro que um viciado pode cometer e que eu cometi e sai ileso – até agora. Considero-me por isso um sujeito de muita sorte. Todo viciado, em algum momento, vai julgar-se esperto, na verdade, o mais esperto e eu julguei-me mais esperto que a esperteza. Alias, conforme fosse inconsequente e ousado ignorava a própria sorte, o bom senso e quaisquer limites. Hoje entendo as razões da minha sorte, mas, isso é outro assunto.
A esperteza do traficante não esta apenas na sua relação com a comunidade, que é a sua base de sustentação, mas, também na sua relação com os outros traficantes, viciados e a polícia. Em quinze anos de convivência – período em que ainda me graduei, fiz pós e trabalhei em pesquisas junto a instituições de segurança – com o tráfico acompanhei a trajetória de muitos traficantes. Só conheci dois espertos: o Frajola e o Pelé. O primeiro é um veterano do tráfico, mais de 1/4 de seculo nesse ramo. O segundo tem no mínimo dezessete anos no varejo. Dois fenômenos do crime, sobreviventes em um mundo cuja expectativa de vida não chega a uma década. A observação desses dois ensinou-me muito sobre o tráfico e os traficantes. Ensinou-me, sobretudo, que pensar que se sabe é não saber. Aprendi que para ser mais é preciso parecer menos. Nem de perto parecem traficantes. Não se enquadram nos estereótipos.
Em quinze anos de convivência nunca os vi armados, nem na minha casa ou na deles, muito menos na rua, mesmo sabendo que estavam. Diferentemente de outros “periculosos” mal encarados, mal educados, perversos e que não inspiram confiança ou segurança, pelo contrario, só terror, desprezo e ódio – são cadáveres ambulantes, todos sabem que é questão de tempo até encontrarem a morte violenta. Malandro demais engana-se a si mesmo e "sobe" rápido. Conheci incontáveis assim e todos terminaram seus dias de forma violenta em pouco tempo - os "vida loca" e "bicho solto." Entre tantos cadáveres e presos, o mais velho só foi preso uma vez e o outro nunca passou um único dia em cana, embora tenha matado ao menos três ou quatro. Na comunidade todos sabem quem matou-os e a razão, menos o Estado - sequer constam dos registros policiais ou de saúde. Isso tudo acontece à margem da sociedade e do Estado, entre os excluídos da cidadania. Antes que aqueles que se recusam a deixar as suas zonas de conforto acusem a comunidade de cumplicidade e reclamem da sua suposta indiferença, omissa é a sociedade e o Estado que negam-lhes e ignoram direitos, condições de cidadania e autonomia. A realidade é que ninguém denunciou a morte deles porque eram desconsiderados pela comunidade, porque a margem das convenções da sociedade civilizada que os ignora e explora o crime que eles cometeram merecia a pena que receberam. Porque quem executou a sentença não merece ser punido por fazer o que tinha de ser feito. Concordem ou não - pasmem! -, a comunidade funciona e opera as suas próprias regras. Ela prescinde o Estado e este depende dela. Talvez a ultima homenagem aos mortos seja ao menos não virarem estatística, embora não tenham sequer sepultura. Simplesmente desapareceram, antes apenas existiam - como os barracos e ruas da favela sem nome e números. Eis aí algo que não se aprende em cátedra alguma com nenhum especialista.
Esse fato é ainda a prova incontestável do quanto as nossas estatísticas são confiáveis! Quantos serão os que no período de um ano não viraram estatística? Lamento informar Dr. Especialista, mas as suas mirabolantes estatísticas não são infalíveis! Evidente que apenas quatro mortes não irão comprometer todo um trabalho ou reputação e nem exigirão laboriosas mudanças de método! Porem, se for o caso, alguns milhares de reais podem transformar tudo, posto que do ponto de vista científico tudo isso não seja mais do que questão de metodologia e recursos. Nem de longe refletem a realidade, apenas uma contabilidade macabra e cínica de documentos. Antes de encerrar esse assunto, vou pedir novamente a ajuda dos universitários: “Quais seriam os parâmetros objetivos para se determinar um traficante como grande, médio ou pequeno?” De acordo com o jovem graduado em Direito e ex-Secretário Nacional de Justiça que clama pelo fim da pena de prisão aos "pequenos traficantes", em tese trata-se do sujeito sem antecedentes e que vende no varejo para sustentar o próprio vício. Do ponto de vista objetivo, no entanto, o veterano Frajola se enquadra nesses pré-requisitos!
Todavia, a questão não é assim tão simples quanto supõem a minha vã sociologia e experiências. Trata-se, sobretudo, de uma questão de classe, relações de poder, manutenção da ordem publica e social, conforme seja a vocação e finalidades do Direito. Assim sendo, evidente que o jovem professor da FGV clama pelo fim da prisão aos jovens universitários de classe média que fazem uso “recreativo” das drogas – recreativo é figura de linguagem pra minimizar e determinar o uso da classe media que se abstêm de subir o morro ou que só se interessa pela mercadoria disponível nas comunidades e nada mais. "Uso recreativo" pode servir ainda ao jovem problemático - o "rebelde sem causa" de outrora - e envolvido com crime tambem da classe média, como o glamourizado traficante do filme "Meu nome não é Johnny." Nenhuma novidade, classe media, estudante universitário, bons antecedentes - família burguesa -, respalda a denominação “uso recreativo.” Por outro lado, o pobre da periferia, desempregado e que não estuda, ainda que alegue que esteja traficando no varejo “para sustentar o vício” sabe que para ele tal argumento não funciona. Ele não se enquadra nos critérios porque não têm esses requisitos, os "bons antecedentes" necessários. Por fim, quem também conhece a realidade do tráfico como a polícia – e não as teorias ou estatísticas sobre ele – sabe que traficante não admite "uso recreativo" e nenhum uso da parte de quem vende. Assim sendo, a prisão continua sendo para os pobres e miseráveis - porque não se enquadram nos pré-requisitos estabelecidos pela altruísta e ilustrada burguesia - e a administração publica para a intelligentsia elitista manter os seus privilégios e status quo. Evidente ainda que o jovem paladino da justiça seja especialista tanto em trafico e traficantes quanto em todos os problemas sociais acarretados pelo vício, bem como em estatísticas e outros métodos para medir a realidade e que a sua proposta esteja essencialmente fundamentada nos seus sólidos conhecimentos – teóricos e empíricos - acerca dessa realidade que ele não convive, não conviveu ou jamais conviverá. Prova irrefutável disso é que ele sustenta seus argumentos em experiências levadas a cabo em Portugal e outros países da Europa! Como se fosse possível comparar em qualquer aspecto ou circunstância, a experiência portuguesa com a brasileira e as suas respectivas realidades socioeconômicas! Eu que sou só um reles sociólogo, com as minhas irrelevantes experiências e ex-viciado fico me perguntando como um cara dissimulado como o Frajola que não se encaixa em estereótipos, com no mínimo quatro homicídios nas costas, mas, que vive do varejo de drogas, seria qualificado pelo jovem brilhante professor da FGV? Quantos Frajolas escapariam de tão infalível crivo? De qualquer forma, esse já escapou, até hoje nunca foi preso. Me pergunto ainda até quando persistirá o “bacharelismo” nos setores de justiça, segurança publica e direitos humanos na nossa sociedade, a despeito do seu caráter limitado e predominantemente elitista, conservador e reacionário.
Diferentemente dos “bicho solto”, esses dois, ao contrário, são sempre modestos, reservados, discretos, educados, bem humorados, solícitos, porem, nem de longe otários ou ingênuos. Nesses quinze anos conta-se nos dedos das mãos às vezes em que me deram crédito e, nunca mais do que uma porção de droga – para não corrermos maiores riscos ou prejuízos. Nesse ramo, não se deve confiar em ninguém, sobretudo em viciados, apenas em si mesmo e com reservas. Nunca se envolveram em negócios com policiais - isso assegura uma sobrevida e tanto. Na relação viciado e traficante, só o segundo raciocina - adicção é compulsão -, então se for esperto preservará a ambos para o seu beneficio. Assim, a prudência é uma forma de ambição, embora não pareça, preserva o lucro garantindo-o em longo prazo. De fato, isso tudo, nada mais é do que incontestável demonstração de zelo e capacidade de organização e planejamento, visão empresarial. Digo isso ainda porque sempre foram bastante criteriosos na escolha de sócios e subordinados, não se tem noticias que houvessem disputas ou discórdias entre eles, nem desfalques, reclamações ou prejuízos – dos que foram executados consta que estavam roubando ou tentavam tomar a boca. Hoje, lembro-me das vezes em que fui provocado por esses que se julgavam espertos e “bicho solto.” Me lembro que embora algumas vezes tenha ficado furioso, logo esquecia diante da certeza do breve fim que sabia que encontrariam. Igual a eles eu já tinha visto vários antes. Aparentemente, padecem da ausência de qualquer instinto de preservação ou sobrevivência, presas fáceis, vão inconscientemente ao encontro da morte. Semelhante os viciados, são suicidas inconscientes, a diferença é que eles são mais afoitos.
Na administração do tráfico, ambos eram ainda zelosos na administração - nos horários de funcionamento, nas mercadorias, tanto na quantidade quanto na qualidade da droga e local da venda – sempre limpo e organizado em nada lembrando uma boca de fumo. Sem “função” – como esse não é um texto para “especialistas” nem vou explicar o que seja “função”, quem não sabe e se considera tanto deveria saber e, se não souber que vá estudar mais um pouco! Que fique claro, não tem nada a ver com a teoria “funcionalista.”
Hoje me pergunto quem ganha mais: se os traficantes ou os que sobrevivem desse mundo – policiais, judiciário, pesquisadores, administradores públicos, especialistas? Os traficantes ganham muito, sem dúvidas, vendem muito, contudo, também tem elevadas despesas na preparação e distribuição. A manutenção disso tudo envolve muitos riscos e custos. Grandes lucros, nenhuma segurança, maiores prejuízos. Na média, talvez a estabilidade traga mais lucros diretos e indiretos advindos de status, prestígio, privilégios e benefícios que a ilegalidade não proporciona. A administração é sempre generosa com o dinheiro público, complacente com os seus apaniguados. O submundo do vício tornou-se uma indústria, mobilizando amplos setores públicos e privados, movimentando elevados volumes de recursos, a despeito dos usuários de drogas e do comercio ilegal de drogas.
Para os precipitados ou "pragmáticos" - oportunistas, altruístas, legalistas, moralistas - que praticam o silogismo como ciência levantar questionamentos sobre a indústria do vício equivale de forma deliberada a fazer apologia do tráfico tanto quanto criticar as propostas ou politicas publicas mirabolantes a ser reacionário. Não quero mais leis, policias ou prisões tanto quanto politicas mirabolantes e pesquisas infalíveis que em comum compartilham o fato de serem gestadas pela burguesia em gabinetes e a revelia dos seus supostos "beneficiários." Nesse mundo de espertos e espertinhos, sei com absoluta certeza que os viciados não são nem um e nem outro, são as vítimas que pagam toda a conta com suor, lagrimas e sangue. Sei também das minhas responsabilidades - por isso não trato as pessoas e as misérias e tragédias por objetos ou coisas -, por isso pratico o respeito e a solidariedade porque sou antes de tudo homem, pai e cidadão.
Hoje me pergunto quem ganha mais: se os traficantes ou os que sobrevivem desse mundo – policiais, judiciário, pesquisadores, administradores públicos, especialistas? Os traficantes ganham muito, sem dúvidas, vendem muito, contudo, também tem elevadas despesas na preparação e distribuição. A manutenção disso tudo envolve muitos riscos e custos. Grandes lucros, nenhuma segurança, maiores prejuízos. Na média, talvez a estabilidade traga mais lucros diretos e indiretos advindos de status, prestígio, privilégios e benefícios que a ilegalidade não proporciona. A administração é sempre generosa com o dinheiro público, complacente com os seus apaniguados. O submundo do vício tornou-se uma indústria, mobilizando amplos setores públicos e privados, movimentando elevados volumes de recursos, a despeito dos usuários de drogas e do comercio ilegal de drogas.
Para os precipitados ou "pragmáticos" - oportunistas, altruístas, legalistas, moralistas - que praticam o silogismo como ciência levantar questionamentos sobre a indústria do vício equivale de forma deliberada a fazer apologia do tráfico tanto quanto criticar as propostas ou politicas publicas mirabolantes a ser reacionário. Não quero mais leis, policias ou prisões tanto quanto politicas mirabolantes e pesquisas infalíveis que em comum compartilham o fato de serem gestadas pela burguesia em gabinetes e a revelia dos seus supostos "beneficiários." Nesse mundo de espertos e espertinhos, sei com absoluta certeza que os viciados não são nem um e nem outro, são as vítimas que pagam toda a conta com suor, lagrimas e sangue. Sei também das minhas responsabilidades - por isso não trato as pessoas e as misérias e tragédias por objetos ou coisas -, por isso pratico o respeito e a solidariedade porque sou antes de tudo homem, pai e cidadão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário