segunda-feira, 18 de abril de 2011

Providência


Em 2006 estive no Morro da Providencia no Rio de Janeiro. Passei uns dias trabalhando e morando na Associação de Moradores. Trabalhei com o meu amigo Cristiano, que a época militava no MH2O - Movimento do Hip Hop Organizado -, o fotografo da comunidade Mauricio Hora e o ator e raper Thogun. Nessa época, estava passando por uma fase profissional e pessoal bastante difícil, vivendo numa situação desconfortável, trabalhando e morando naquele local - não me refiro a comunidade, mas, a sede da Associação.

Após algumas semanas, porem, você acaba se familiarizando com tudo. Digo familiarizando porque penso que acostumar-se é diferente. A associação ficava próxima a uma boca de fumo. Eram sempre três ou quatro traficantes posicionados vinte quatro horas por dia em uma laje em cima de um bar. Dois sempre com o fuzil nas mãos ou pendurado às costas. Os disparos eram cotidianos.

Certa vez chegaram três paulistanos do MH2O de SP para fazer um trabalho na comunidade. O Cristiano foi recebe-los na Novo Rio. Os caras eram da Cidade Tiradentes - periferia da zona leste de São Paulo. Por isso sentiam-se seguros na capital carioca, embora soubessem que o crime do Rio é diferente do de Sampa. Quando voltavam, resolveram passar em frente a "boca" para eles começarem a se familiarizar com a realidade local. Ao chegar na entrada da Br. da Gamboa, o Cristiano indicou a boca avisando: "é só passar reto sem ficar olhando, ok?" Quando estavam quase a frente deles, uma viatura entrou na rua e aí eles descobriram a diferença entre lá e Sampa. Imediatamente dois dos rapazes apontaram os seus fuzis na direção da viatura, dispostos para o confronto. Viram-se entre eles e a viatura  e, se ela parasse ficariam no meio do fogo cruzado. Ela não parou. Seguiu reto como todos. O coração dos camaradas paulistanos é que quase parou. Um deles era um negro de 1,90 que chegou na Associação pálido, tremendo e atordoado. Eu acompanhei tudo da laje da Associação. A essa altura eu já estava familiarizado com fuzis e tiros. 
Ao lado dessa boca ficava um ponto de internet grátis da prefeitura. Uma vez usava a net quando os caras começaram a disparar. Consta que foi só para manter o armamento em dia e lembrar a todos que eles estavam ali - por incrível que pareça, com o tempo se esquece. O barulho dos disparos de AK-47 e FAL é ensurdecedor. Quando eles começaram todos se jogaram no chão. Eu não. Não estava acostumado e, na verdade, demorou para eu entender que estavam disparando ao meu lado. Uma garota empurrou a porta de vidro. Achei engraçado, não pode deter sequer um tijolo. Puro reflexo! Instinto de sobrevivência em estado bruto. Depois que os tiros silenciaram todos saíram com muito medo e cautela. Percebi imediatamente que a rua estava deserta e silenciosa. Não se ouvia nem os pássaros. Fui embora tentando me colocar entre os carros e os postes - receando que os disparos recomeçassem. É incrível como depois de um tempo, eles também se incorporam a paisagem como os pássaros, os cães, os postes e as crianças nas ruas. Só se lembram deles quando atiram. E você adquire estratégias de sobrevivência como meios de se evadir, de passar despercebido e se proteger. 

Na esquina oposta ficava uma escola de educação infantil, ao lado do Cemitério dos Ingleses. A realidade é sempre mais interessante do que as teorias, tanto quanto a literatura. Isso tudo em um quarteirão - comunidade, morro, cemitério, escola infantil, tiros e o tráfico. Andava sempre as tardes, nos finais de semana e até a noite pela histórica rua do Livramento. Adentrava pelas suas travessas e apreciava o casario antigo, testemunhas impassíveis da historia, deteriorados pelo tempo e pela omissão publica, muitos abandonados ou ocupados, vitimados como a povo pela sanha da especulação imobiliária. Quando queria um pouco mais de paz e tranquilidade ia caminhar pelo cemitério. Adoro história e depois de um tempo sempre me fazia acompanhar por quem quisesse. Sentia-me um privilegiado por descobrir esse tesouro ali ao lado e precisava que compartilhar. O cemitério abriga túmulos dos séculos XIX e XX, muitos ingleses e, diversos de veteranos das Guerras - Primeira e Segunda. As lápides dos marinheiros e aviadores trazem os símbolos da Royal Navy e da Royal Air Force. Túmulos simples e ricos em história – datados de 1914 à 1945. Muito me aprazia pensar naqueles distintos cavalheiros sepultados ali, longe das famílias e do solo do império britânico. Batidos na guerra imperialista e burguesa nacionalista. Mortos por uma causa que jamais, enquanto trabalhadores, lhes dizia respeito. Cooptados pela velha e sórdida demagogia patriótica que dissimula interesses de classe por detrás de valores ou ideais nacionais. Espécie de romantismo barato, capaz de mobilizar milhões ao alistamento voluntário, a Grande Guerra é considerada a ultima do século XIX e a primeira do século XX. É irônico - e triste - que toda essa história esteja ali ao lado de uma comunidade (primeira favela da cidade e do país) e instituições de ensino, todos abandonados, esquecidos, ignorados. É trágico saber que muitos morrem ali ao lado por nada, de forma tão violenta e estupida quanto os soldados ali esquecidos. É triste saber que esses jovens que morrem hoje tombam iludidos como os milhões da Grande Guerra - os primeiros pelo status, os outros pela pátria, duas categorias inerentes à burguesia. Assim tomba o lumpen, ignorando e ignorados pela historia, a sociedade e a pátria. Sem lugar em qualquer um deles, talvez na estatística. Conheci um professor de História aposentado que tomava cerveja comigo às vezes em um bar ali perto - na rua do Livramento. Conversávamos sobre essa época e ele me contava sobre os lugares que Machado de Assis frequentava e sobre um certo parente do Lima Barreto que conheceu e que morava por ali. Gostava de me falar sobre os lugares que ele havia frequentado. Contou-me quando o Monteiro Lobato, que publicava-o, certa vez veio encontrá-lo e não pode conversar com ele, impossibilitado que estava pela embriaguez. Espero um dia conhecer a sepultura dele - do Lima, não do professor. Assim suportava a rotina da violência absurda e indiscriminada, embriagando-me também, sobretudo de memória, cultura e historia. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário