quarta-feira, 13 de abril de 2011

Imperdoáveis

Esse é o título do ultimo western de Clint Eastwood e na minha opinião, um dos seus grandes filmes. Penso que ele aprendeu muito com o mestre Sergio Leone para arriscar-se no gênero - Eastwood fez com ele filmes memoráveis. É nítida a influencia do mestre na obra de Eastwood - diálogos enxutos, fotografia e figurinos impecáveis. Além da ambiguidade das personagens - outra marca do mestre -, elas sempre carregam um dilema existencial, uma tragédia humana, demasiadamente humana. Penso que, talvez, nesse sentido ele seja uma influencia ao mexicano Inãrritu, mas, isso já é outro assunto. Assim é como se sentem os usuários de crack no processo permanente de recuperação: imperdoáveis.  Santo Agostinho disse que o pior dos sentimentos é a tristeza - penso que tinha razão. Acreditava que a tristeza conduzia a diversos pecados: apatia, indiferença. ira, preguiça, luxúria, entre outros vícios.

Sentir-se imperdoável é não perdoar-se a si mesmo. É viver em permanente culpa e arrependimento, sentimentos que sempre vêm acompanhados pela tristeza. Tristeza peculiar, que nesse caso se caracteriza pela saudade da ausência de si mesmo. Daquilo que foi e deixou de ser. Evidente que sempre fomos alguma coisa que já não somos mais, todavia, refiro-me a algo intrínseco, algo que diz respeito aquilo que você tem ou considera ser seu valor supremo, aquilo que te é mais caro e sólido: seu caráter. Algo que quase não muda ou varia pouco sob certas circunstâncias. Ledo engano! Nesse sentido, conforme Freud e Reich, o caráter - do grego charakter, que significa marca - é a marca do indivíduo, as características relacionadas aos valores e hábitos que um indivíduo herda e adquire durante o seu processo de formação. 

Portanto, o caráter consiste no conjunto das atitudes habituais de uma pessoa e seu padrão consistente de respostas para várias situações. Em suma, é o modo como o indivíduo apresenta-se ao mundo, expressão dos seus valores, manifestação das suas atitudes - consciência e características hereditárias. Desse modo, caráter tem a ver com uma certa estabilidade da conduta e é exatamente isso o que a dependência química vai perturbar drasticamente.

Aquilo que era estável e te caracterizava para si e os outros vai mudar de modo a torna-lo irreconhecível. O vício é um estranhamento de si mesmo, uma perversão do caráter. Quando ainda não conhecia o crack e havia superado problemas com a cocaína julgava que em qualquer situação, o xis da questão fosse sempre o caráter. Quando pensava como Wilde e Bukowiski e julgava que a perfeição encontra-se  no excesso, posto que a moderação nada exige - grande erro! Assim, considerava inconcebível que alguém após cometer algum ato vergonhoso ou deplorável pudesse alegar efeito do vicio - uso dessa ou daquela substancia. Havia "superado" o pó e julgava-me forte, com uma disposição de caráter inquebrantável. Doce ilusão! Todos têm o seu ponto fraco e o meu é o crack. Sob efeito dele, fiz coisas que considero inconcebíveis diante daquilo que julgava serem "valores" inerentes ao meu caráter, seja como homem, marido, pai, filho, amigo, cidadão. É bom que se diga, quando se trata de crack, descobri que deve se considerar o efeito dele ainda quando não se está em uso - abstinência. Menti, furtei, enganei familiares, amigos, vizinhos, conhecidos, estranhos. Na minha casa, de parentes, amigos, no trabalho e na casa de estranhos. Tudo isso formado, pós graduado, casado e com um anjinho dentro da minha casa. Fiz coisas que hoje entendo, mas não compreendo e custa-me aceitar e muitas vezes até acreditar! Coisas das quais me arrependo e envergonho, tenho consciência de que talvez nunca venha a me libertar - considero-me incapaz de me perdoar e vou carregar essa culpa e arrependimento até o fim dos meus dias ou até julgar haver compensado ou expiado, se entender que possa existir compensação para as coisas que fiz.

Perdi tudo: casa, mulher, filha, respeito, autoestima, dignidade, consideração, credibilidade, vergonha, medo, trabalho e uns poucos amigos. Causei a minha companheira dor, angustia, insegurança, tristeza, frustração, decepção. Fui omisso e negligente em relação a minha casa e filha. Ninguém pode imaginar o quanto isso me custa, o peso disso tudo sob a minha consciência - a despeito do altruísmo, abnegação, generosidade, bondade, competência, comprometimento e ética dos "caros" especialistas. Por pouco não perdi minha saúde, liberdade e vida, embora tenha colocado-as em risco diversas vezes. Frequentei lugares inimagináveis, estive com pessoas que tiveram a humanidade - respeito a si mesmo e a espécie - violentada ou que a violentaram ao extremo. Descobri que as companheiras do viciado são a solidão, a indiferença, o desprezo, a culpa e a tristeza. O carrasco permanente é a consciência, que condena todos os dias matando lentamente.

Decepcionei pessoas que amava e respeitava, que me amavam e respeitavam, que me admiravam. Decepcionei, sobretudo, a mim mesmo. Fui incapaz de manter meu caráter - valores e hábitos -, minha família, casa, trabalho, amigos. O vício é um egoísmo em demasia, uma inconsequência, um desprezo pelo outro e por si mesmo. Digo isso porque muitas vezes fiz coisas, sobretudo, motivado por um desprezo latente por determinadas pessoas, inclusive da minha família - não minha esposa e filha. Pessoas que enganei deliberadamente porque sabia que no fundo também me desprezavam, nesses casos o objetivo era oferecer a outra face - com a mesma moeda. Hoje considero que inconscientemente sentia antes um desprezo por mim mesmo. Enfim, o vicio do crack é subestimado pelo Estado, é um problema maior do que julgam nossos sapientíssimos especialistas e outros oportunistas piedosos. Trata-se de um problema da maior complexidade e emergência, que ultrapassa teorias e números e que não deve ser avaliado meramente em função disso. Subestimado pelo poder publico e especialistas, conforme trate-se de um assunto que não lhes diz respeito senão enquanto mero oficio ou objeto de estudo como outro qualquer.

Tudo aquilo que o Estado e a sociedade não entendem ou aceitam varre-se para para "debaixo do tapete” - como é feito com a sujeira - ou é extirpado – caso de polícia. Tudo aquilo que não se entende ou aceita – sempre o outro –, na nossa sociedade, se exclui ou destrói-se. Enfim, escrevo porque não sou otimista diante dessa realidade com relação a questão do crack. Entendo que muitos ainda vão morrer nas ruas, cadeias, hospitais. Muitos perderão a liberdade e o futuro. Muitas famílias serão destruídas, muitas crianças abandonadas e maltratadas. Muitos discursos serão proclamados, muitos estudos e pesquisas serão feitas – como o são ainda hoje – por inúmeros especialistas e oportunistas, muitas instituições serão criadas – secretarias, gabinetes, centros de estudos, comissões, Estatutos, entre outras – e, sobretudo, muitos recursos públicos se perderão nos tortuosos caminhos da incompetência, indiferença e corrupção, isso é certo, bem como que muitos enriquecerão e alcançarão poder e prestigio. Aos viciados a culpa, as famílias as lagrimas, aos mortos a terra. Que Deus nos perdoe, se puder... .

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