sexta-feira, 8 de abril de 2011

das outras misérias brasileiras

Duas coisas são endêmicas no Brasil: a hipocrisia e o preconceito. Percebe-se o vigor de determinadas características - virtudes ou vícios - quando elas resistem e perpassam todos os grupos sociais e as mais diversas situações.  Entre os viciados em drogas o usuário de crack é considerado um pária, não merece nenhum respeito ou consideração. A maconha e a cocaína, por sua vez, não estigmatizam o usuário, na verdade, o maconheiro é sempre visto como um sujeito de paz, bacana, descolado, do bem. Já o "cheirador" é considerado sujeito de "classe", droga de boy ou  de bandido, de sujeito alucinado, doidão, sem limites. Ambos, porem, são respeitados e considerados, tanto entre os usuários quanto no tráfico. Até no mundo cão do vicio e do trafico existe preconceito. Senti isso nas ruas, na família, no tráfico, entre os "parceiros" do vicio, nos CAPS, N.As. Todos te olham com desconfiança, desprezo, repulsa ou piedade. Se existir ainda alguma dignidade em voce, a sociedade termina por retirar-lhe. Quando eu fumava apenas maconha e cheirava, pessoas que me conheciam de longa data e compartilhavam esses vicios comigo passaram a me repudiar quando souberam que estava fumando mesclado - maconha misturada com crack.

Penso que esse preconceito origina-se de um lado, pelo fato do crack estar associado a moradores de rua e mendigos e, de outro, pelo fato dos usuários definharem fisicamente, intelectual e moralmente. No Brasil, historicamente os indivíduos mais vulneráveis da sociedade e as classes mais desfavorecidas são os mais desprotegidos, desprezados, hostilizados, abandonados. Nessa perspectiva, justifica-se o desprezo pelo usuário de crack por ele ser um abandonado - quase sempre sinônimo de vagabundo -, ou por ele ser um fraco, incapaz de resistir ao vício. Aqueles que deveriam receber maior atenção e proteção são exatamente aqueles mais ignorados, senão hostilizados pela sociedade. Houve uma época em que os idosos e as crianças pobres, os mendigos, ébrios, doentes, deficientes físicos ou mentais eram internados e abandonados em asilos - encarcerados. Esse tipo de atitude é sintomática de uma sociedade que se caracteriza pela lassidão moral, pelo caráter fluido no que diz respeito a ética e valores. No Brasil, sempre existem dois pesos e duas medidas. Como diria um escritor inglês, todos são iguais, mas, "uns são mais iguais que os outros." Pode-se perceber ainda, um flagrante traço da mentalidade autoritária que se manifesta na pretensa superioridade moral exposta na relação - assimétrica - entre os "fracos" e "vulneráveis" e os "fortes" e "poderosos." É a lógica da moral burguesa arrogante, que se pretende invencível, invulnerável, infalível. Versão tupiniquim e indigente do "winners" and "losers" americano. Embora seja uma manifestação de superioridade, não passa de um muito mal disfarçado complexo de inferioridade típico da baixa auto-estima brasileira que valoriza tudo o que vem de fora, sobretudo, da Europa e America. Sintoma ainda da falta de originalidade e indolência intelectual constatada por Sergio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, entre outros. Mestre no exercício da dissimulação, o brasileiro disfarça tanto o desprezo quanto a vaidade. Assim, se observarmos com um pouco mais de cautela, aquilo que poderíamos reconhecer muitas vezes como solidariedade, não passa de contundente afirmação dessa pretensa superioridade! Otto Lara Resende, muito generoso, disse sobre os mineiros algo que poderia ser dito sobre todos os brasileiros  - "o mineiro só é solidário no câncer!" Só merece a solidariedade do brasileiro o moribundo ou o submisso, de modo que reafirme a sua pretensa superioridade e alimente a sua vaidade. A solidariedade do brasileiro também é condicionada pela classe que manipula a opinião publica - classe media e elites. O vício da burguesia é drama e o do pobre é crime. O ator da televisão é vítima e o jovem morador de rua é perverso, o primeiro merece respeito, apoio e solidariedade, o segundo desprezo, repulsa, ódio. São incontáveis os exemplos dessa espécie de isonomia e justiça toscas na sociedade - o ator, o cantor jovem, o "mendigo-gato", estudantes universitários, empresários, entre outros. Pra uns é problema social ou de saúde, pra outros é de policia e segurança. A tolerância hipócrita é seletiva com relação a indivíduos - conforme a classe social - e substancias.
Assim, tolera-se e justificam-se as misérias, violências e exclusões cotidianas em nome da solidariedade nas grandes tragédias ou catástrofes pontuais. Deste modo, é bastante natural  para o brasileiro médio que se faça distinção entre "vitimas" e "crimes" ou "criminosos." É inconcebível considerar que todos mereçam o mesmo tratamento e uns não tenham privilégios! Para o senso de justiça e imparcialidade brasileiras, é inconcebível não considerar a classe social de uns e de outros, a cor, a origem, a profissão, a orientação sexual, a crença, entre outros atributos ou características. Isso vai determinar maior ou menor solidariedade. Trata-se como se vê, de um senso peculiar de justiça, que se caracteriza pela elasticidade e imprecisão - por isso não pode ser considerado estritamente um conceito. Por esses motivos pode-se adequar as conveniências e interesses, sendo assim, a antítese perfeita da impessoalidade e universalidade que fundamentam o estado democrático de direito e a república. Para finalizar, hipócrita, em grego, significa ator, que por sua vez é o artista que representa ou dissimula.

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