Eu era louco, insano, deliberadamente inconsequente. Pensava como Wilde: "a moderação é fatal, nada cai tão bem quanto o excesso!" E como Bukowski: "qualquer um pode ser sóbrio, é preciso talento pra ser bêbado!" Essas ideias norteavam a minha conduta ousada e irresponsável. Antes de conhece-los, porem, eu já era assim impetuoso e desmedido. Entre muitas historias, lembro de uma absolutamente inconsequente e surreal! Quando cheguei a Nova Iguaçu em fevereiro de 2005 me instalei em uma pousada com outros dois paulistanos que trabalhavam comigo. Quando recebemos nosso pagamento, na primeira semana de março, conforme ambos viriam a São Paulo me incumbiram de receber para eles - a prefeitura os estava enrolando para pagar. Contrariado, mas, solidário, resolvi pegar o pagamento deles. Entretanto, conforme estivesse sozinho e me enturmando, aceitei o convite de uma jovem simpática que trabalhava com a gente e resolvi sair pra conhecer a noite da cidade - com 7 mil no bolso! Saímos e fomos em uns três bares e uma boate - Rio Sampa. Bebi incontáveis cervejas e alguns Smirnoff Ices.
Quando estávamos no barzinho mais famoso da cidade -Abracadabra - fui apresentado a dois colegas dela. Loucos se identificam e logo estava no carro de um deles dirigindo-nos a uma boca na Dutra. Chegamos a um conjunto habitacional espécie de Cohab. Fiquei no carro enquanto ele desceu para buscar o pó. Foi a primeira vez que vi fuzis tão de perto desde o dia que havia me apresentado no exercito, 12 anos atrás. Saímos e logo cheiramos duas carreiras. Guardei um papelote no bolso. Farinha boa, amarelada, forte. Chegamos a Rio Sampa e tome mais cerveja. Tinha uma banda cover tocando rock nacional - Cazuza, Legião, Ira, Engenheiros, Capital, Lobão, Titãs. Conforme seja discreto, se alguém desconfiou de algo até hoje, nada disse. Alias, tudo isso sempre me foi muito natural - que estivesse drogado em diversas situações. Porém, não sou otário e nem comecei ontem, então estava sempre atento e mantendo a discrição. Assim, logo que entrei no banheiro saquei um segurança esperando para pegar algum usuário mais afoito. Nem me atrevi, fiquei na minha e saí.
Logo em seguida me deu os "cinco minutos". Quando me dá os "cinco minutos" é a hora de ir embora. Então me levanto, aceno e vou sem dar maiores explicações. Dito e feito! Saí, paguei minha conta e fui embora.
Chegando na rua imaginei que o caminho de volta fosse para o lado que me virei naquela hora. Não sei porque mas achei que o rumo que tomei estava certo. Fui caminhando pela pista local da Dutra até uma passarela que cismei que devia atravessar. Atravessei, atravessado! Do outro lado, fui caminhando pelas ruas já me considerando meio perdido, porem, completamente perdido! Nessas horas suponho que o instinto se impõem. Penso: "ande, continue em movimento, não demonstre estar perdido." Foi o que fiz. Parei apenas em um telefone público, estiquei mais uma carreira disfarçadamente e segui. Num determinado momento, as ruas desertas, sentei no meio fio e cheirei outra. Continuei sorrateiro até perceber uma via férrea ao meu lado. Lembrei-me de uma ferrovia no caminho da pousada aonde estava e pensei: vou segui-la! Fui caminhando lentamente e cabisbaixo, ao levantar a cabeça, estava as portas de uma favela. Adiante vi uma elevação com uns três caras armados em cima. No instante que eu olhei passaram-se mil coisas pela minha cabeça e tive duas certezas: "são do tráfico e não posso parar". Nessa fração de segundos entre levantar a cabeça, ver e pensar eu continuei andando como se conhecesse o local, de modo que permaneceram onde estavam. Acho que se parasse seria o meu fim. Segui como se fosse da comunidade e andei perdido naquela favela como se soubesse aonde estava. Entre inúmeras ruas e vielas não encontrei ninguém, nem um cachorro vadio, graças a todos os Santos e Deuses.
Em alguns momentos pensei que não fosse conseguir sair dela, porem, pensava no caminho de volta pra sair do mesmo jeito que entrei, porém, saí sem saber como - quando percebi já estava as portas do asfalto novamente. Diante da tensão, não cheirei mais e a essa altura o dia amanhecia. Logo encontrei em uma rua uma senhora lavando a calçada. Perguntei a ela como fazia para chegar a pousada do Padre Renato em Miguel Couto e ela me explicou. Andei mais uns 30 minutos de ônibus. A pé não ia chegar nunca. Cheguei lá já dia amanhecido, passei na padaria, comprei pão, tomei café, banho e fui dormir. São, salvo e com quase todo o dinheiro - menos o que eu havia gastado do meu. Quando meus colegas chegaram paguei todos. No dia seguinte a garota foi a pousada saber como eu estava. Contei a ela que me julgou completamente louco! Ficamos juntos outras vezes depois. Não sei mais dela, perdi o contato.
Desde então tenho tentado não abusar tanto da sorte e nem de mais nada ou ninguém..... Nas ruas os conhecimentos teóricos pouco ou nada valem, a sobrevivência exige outras competências, sobretudo, bom senso, humildade e um pouco ousadia e sorte. Duas semanas depois aconteceu a chacina da baixada naquele trecho da Dutra que havia passado dias antes, quando trinta pessoas foram assassinadas por PMs. Hoje não confio em mais nada - nem no bom senso, na ousadia ou na sorte....
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