quarta-feira, 18 de maio de 2011

Alegorias sinistras


O cenário é desolador. Em 28 anos a taxa de mortes violentas entre os jovens brasileiros saltou 76% entre 1980 e 2008, segundo dados do Mapa da Violência 2011 – Os Jovens do Brasil. Para todos os efeitos, considera-se jovem o indivíduo situado entre 15 e 24 anos. Do ponto de vista da amostra, que é cientificamente justificada, os dados levantados colocam ainda maiores questionamentos e permitem a formulação de hipóteses. Considerando que idade biológica e cultural não tem correlação direta, conforme a dinâmica das unidades familiares modifique-se, muitos indivíduos solteiros situados entre os 25 e 35 anos do ponto de vista social são ainda considerados jovens. Se os incluísse nessa contagem, teríamos apenas mais mortos, nada mais.

Homens negros com idade entre 15 e 29 anos tem uma mortalidade maior que os brancos na mesma faixa etária. Estudo mostra que entre 2001 e 2007 os homicídios foram os responsáveis por 50% dessas mortes - IPEA. Em 2008 morreram 103% mais negros do que brancos. O aumento das mortes decorrentes de acidentes de transito cresce na mesma proporção vertiginosa que a frota de veículos. As mortes de motociclistas, por exemplo, aumentaram 754% em dez anos – 98/08.

O crime organizado expandiu-se e houve um incremento das suas atividades, as facções espalharam-se dentro e fora dos presídios, o trafico e o consumo de drogas ilícitas e licitas é célere – o consumo de crack é epidêmico. O numero de armas de fogo ilegais é incalculável e incontrolável. As mortes decorrentes de confrontos entre as forças de segurança e os criminosos são dignas de uma verdadeira guerra civil. Em 20 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente multiplicaram-se vertiginosamente as ocorrências de maus tratos, abandono, violências e mortes de crianças e adolescentes. Que dizem essas informações e/ou números? No contexto da democracia e da globalização, no que diz respeito às relações exteriores, ratificaram-se todos os tratados e recomendações dos organismos internacionais! Do ponto de vista interno e em decorrência desse processo, estabeleceram-se novos arranjos jurídico-institucionais. Como é possível então, a despeito de todos esses avanços civilizatórios, vivermos esse holocausto cotidiano?

Atrevo-me a fazer alguns apontamentos apenas a titulo de sugerir hipóteses que suscitem outros tantos questionamentos, de modo a propor uma reflexão para além dos espaços acadêmicos restritos aos especialistas e políticos. Porque falamos de mortos e não de números ou teorias. As tragédias merecem mais do que estudos técnicos e propostas a arbitrárias. Essa "onda" de violência não pode ser apreendida fora do contexto democrático e da globalização, porem, ambos os processos estão estreitamente ligados. Trata-se de determinações econômicas e políticas estabelecidas no âmbito global e no qual o Brasil se insere a margem. Resultantes do fim da Guerra Fria, Consenso de Washington e Hegemonia Americana, produtos ideológicos que estabeleceram novos arranjos produtivos e modelos de organização do Estado e da sociedade. Na verdade, nenhuma novidade, apenas a fênix capitalista renascendo mais sedutora, voraz e sinistra. Arrastando atrás de si a mesma infame leva de moribundos e misérias. Porem agora, como a fênix, ressurge com aparência renovada, adequada ao novo contexto de paz, estabilidade e bonança.

Esse novo contexto redefiniu não só as relações entre as nações, mas também entre Estado e sociedade. Redefiniu as relações entre capital e trabalho, entre as empresas e as nações, entre o homem e a natureza. Evidente que essas questões não são recentes, nas nações europeias estão dadas desde o século 19, no entanto, nesse atual contexto são credoras do capital global. É relevante que esse novo tipo de capital impõe essas mudanças de modo que se estabeleçam as condições necessárias para a sua livre circulação, independentemente dos interesses nacionais de qualquer espécie – sejam eles regionais, legais, econômicos, políticos, religiosos, ambientais ou socioculturais.

Algumas questões perecem contraditórias e mesmo mal colocadas. Como é possível essa liberalização do capital global no contexto democrático de amplas liberdades, garantias institucionais, incremento do Estado, expansão de direitos e da sociedade civil? As estratégias do capital vão além das suposições da nossa vã sociologia. Passa como nos ensinou Gramsci, pela formação e cooptação de sólidas bases de apoio junto à sociedade civil e pela apropriação do aparelho do Estado. Nessa estratégia as bases de formação passam necessariamente pelas instituições (de) formadoras dos quadros para manutenção e reprodução desse sistema. Por aí passam as elites intelectuais e técnicas e outros quadros dos movimentos sociais, aí incluídos o terceiro setor, os partidos e sindicatos. A expansão do incremento do Estado corresponde o seu encolhimento em setores estratégicos para a livre circulação e o exercício da exploração e acumulação capitalista. O setor privilegiado desse sistema é o capital financeiro, aquele que menos depende da infraestrutura e do trabalho. Para ele bastam o afastamento do Estado, a regulação frouxa e alguma estabilidade econômica e política.

Para completar esse quadro, a intelligentsia cooptada pelo capital global ou a ele aliada por convicção - "parceiros" - constrói a base ideológica que se sobrepõe a realidade. Nesse sentido, cumpre o papel de amenizar ou suavizar as contradições e antagonismos, contrabalançar os efeitos perversos desse estado de coisas. Prolífica, produz incontáveis leis, normas, estatutos, estudos, pesquisas, planos, projetos, instituições, congressos, conferencias para se contrapor a realidade, como se fosse possível transformá-la sem modificar esse sistema! Trata-se de mero exercício de semântica, enfeites de retórica, tautologia, perfumaria, cosméticos e bijuterias para enfeitar um cadáver. Zelosos no discurso seguem firmes na impotência, convictos na resignação, céleres na inércia, corajosos na apatia. Sofistas, esmeram-se na manipulação; inventam métodos, metodologias, técnicas, teorias e conceitos infalíveis para transformar a realidade, sobretudo, aquela que eles não vivem ou ignoram. Assim, usam e abusam dos eufemismos, paladinos do discurso politicamente correto, canalizam e diluem os conflitos, esvaziando o conteúdo ideológico do debate político na sociedade. Fazem o jogo da burguesia por ignorância ou conveniências, não passam de demagogos e/ou necromaquiadores.

Para finalizar, restam as seguintes questões: Para quem falam os especialistas? Quem pode ouvir o que eles dizem e qual a sua relevância objetiva do ponto de vista pratico, concreto para a sociedade? Para quem falam os movimentos sociais? Qual a relevância deles para o desenvolvimento da cidadania na sociedade e a maior participação política das camadas populares? E os partidos políticos, quem eles representam? Qual a contribuição da classe política na transformação da sociedade, a despeito das prerrogativas constitucionais que estabelece a participação popular como requisito indispensável a cidadania? Nesse quadro de extermínio cotidiano em massa, a morte é mera consequência e a cidadania alegoria sinistra. Demonstrações de solidariedade humana são singelas demais para criaturas tão elevadas.

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