quarta-feira, 25 de maio de 2011
Heróis
Brecht disse que “feliz é o povo que não tem heróis.” Ouso dizer: infeliz é o povo que não tem memória. A historia de um país sobrevive na memória do povo. A construção da sua identidade e do seu futuro dependem da sua capacidade de preservar e refletir sobre a sua historia. A historia, como todo o conhecimento é uma construção coletiva, um processo social. Ela é construída pelos sujeitos inseridos na sociedade e na vida publica com o objetivo de criar identidades coletivas – subjetividades -, fortalecer os vínculos entre as comunidades distintas no interior de um mesmo território por meio de valores e ideais comuns. Nesse processo, busca-se preservar e valorizar determinados acontecimentos, fatos e indivíduos de modo a determinar as qualidades e as características de um povo, procedendo a um ordenamento cronológico disso tudo. Desse modo, procede-se o registro cultural, político, econômico, moral, lingüístico, entre outros, dos acontecimentos e o papel de determinados indivíduos que se destacaram em diversas áreas da produção e transformação social.
Todos os registros sempre são arbitrários. Envolvem interesses e valores. Destaca-se ou se omitem acontecimentos, fatos ou pessoas conforme as conveniências e as circunstâncias. Manipula-se a verdade. Pode-se dessa maneira adequar, fabricar e moldar subjetividades e/ou características tanto do ponto de vista interno quanto do externo. Todos os povos e/ou nações fazem isso. Desde a mais remota antiguidade até os dias de hoje. A diferença é que hoje mais pessoas têm acesso à informação e podem produzi-la, independentemente dos interesses e redatores oficiais. Desde a época dos papiros no Egito antigo que os registros reservam-se aos poderosos e as elites, bem como o poder e o seu exercício. Aliás, o poder não pode prescindir do controle e registro porque nisso consiste a sua legitimidade e essa é a sua vocação.
O Brasil é um país jovem. Do ponto de vista formal, existe há menos de 200 anos. Emancipou-se de Portugal em 1822, até então como não era um país não precisava de historia. Por outro lado, foram necessárias algumas décadas até que se percebesse a sua importância para a construção da nação. Um determinado espaço geográfico é um país, o seu povo com as suas características e historia é uma nação.
O Brasil foi atropelado pelo tempo. Quando D. Pedro II começou a construir a historia do país de modo a criar a nação brasileira veio a Republica, com outras idéias e ideais. A historia oficial que temos hoje foi construída pela Republica oligárquica elitista. As elites ilustradas liberais e positivistas da época - políticas, econômicas e intelectuais - encarregaram-se de reescrever a historia nacional, continuando a obra iniciada durante o Império, conforme as circunstâncias e os seus interesses e valores.
Desnecessário dizer que essa elite ilustrada concentrava o poder político-econômico na sociedade. Faoro e Holanda destacam que se caracterizavam pela indolência intelectual, pelo desprezo ao trabalho e regras universais e impessoais, pela falta de originalidade e o mau gosto. Gente assim, a semelhança de um “José Dias” é que escreveu a nossa historia. A historia da Casa Grande dos patrícios, coronéis, senhores, patrões, antes europeizados hoje americanizados, os “bons burgueses”, conforme diria Mario de Andrade. Nenhuma novidade, eles ainda continuam na sua cruzada civilizadora e reescrevendo a nossa historia, conforme os seus valores e interesses adaptados aos novos tempos da cartilha hipócrita politicamente correta, em que tudo se concede e nada se transforma do ponto de vista estrutural. Donos do poder, do Estado, da terra, do capital e da intelligentsia. O Estado desenvolvimentista procede a cooptação paternalista dos setores sociais, sendo mais ou menos valorizados como bases de sustentação governamental em troca do assistencialismo clientelista e da cidadania tutelada. O fim da política se anuncia pelo debate que se desenvolve em torno de demandas e interesses de grupos organizados de pressão em detrimento das questões ideológicas e/ou nacionais. É o Estado prestador de serviços, zelador e a política como mera canalizadora de diferenças e/ou direitos como se fosse possível sem transformar a ordem estabelecida e o status quo extinguir as desigualdades e o conflito latente na sociedade. É demasiado cinismo ou ignorância supor que esse moribundo modelo de produção e organização da sociedade possa aceitar a todos e que todos possamos desfrutar das benesses da burguesia; nem se tivéssemos cinco planetas Terra a disposição!
Os heróis fabricados pela elite do passado permanecem os mesmos, acrescidos de outros adequados a cartilha politicamente correta, porem pouco representativos ou identificados com a imensa maioria da sociedade. Mais como compensação e/ou resposta as demandas de grupos organizados de pressão ou setores sociais, no sentido de elevar a auto-estima dos mesmos, construir e fortalecer identidades coletivas. A ausência de políticas efetivas e transformações profundas ou rupturas, oferecem-se cargos, cotas, compensações pecuniárias, mártires e/ou datas comemorativas. Afinal, comemora-se o quê? A ascensão a classe C, óbvio! Não creio que aqueles que tombaram tivessem se batido para que seus descendentes pudessem entrar na Casa Grande com a benevolência das elites, ter acesso a telefones celulares, transferência de renda ou representantes no parlamento para defender seus interesses privados ou corporativos. Enfim, por tão pouco!
Brecht tinha razão, os verdadeiros heróis estão nas ruas trabalham, lutam e sofrem. São explorados, ignorados, abandonados. Não tem representantes ou defensores, não são minorias por isso não tem quem os represente ou defenda. Tem leis e direitos que desconhecem tanto quanto são ignorados e elas desprezadas; quanto a isso lava-se as mãos. Os heróis do povo não tem historia ou memória, sabe-se apenas que lutam pelas grandes causas, as causas do povo, as causas coletivas, não jogam para a platéia e nem barganham migalhas: Betinho, Chico Mendes, Marighela, Prestes, Apolônio, Astrojildo, João Candido, Luis Gama, Lima Barreto, Graciliano, Anysio Teixeira, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Glauber, Flordelis. Não consta que calculassem, acumulassem ou ostentassem. Nenhum desses hipócritas paladinos dos Direitos Humanos que atualmente freqüentam os altos escalões e gabinetes salvaram ou fizeram tanto pelas crianças quanto Flordelis. Ao contrario, conforme ignorem por conveniência ou desprezo essa realidade, decretam a sua sentença de morte por meio da omissão ou do cinismo politicamente correto pedante e inútil. Matam em cumplicidade e de braços cruzados, em silencio e com a consciência tranqüila.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário