Abdias foi grande. Foi um verdadeiro revolucionário. Aquele que sonha, ama, luta e tomba pela causa. Segue sereno porque tem convicção e não se entrega nem se deslumbra muito menos se deixa seduzir, corromper. Gente como ele faz falta, a política, a cultura, a sociedade, sobretudo, em uma época de tanta mediocridade nessas áreas. Apesar da democracia, é demasiado temerário falar em avanços, desenvolvimento, quiçá transformação em todos esses campos da vida dos pobres e dos negros. Falo isso como mero observador, nem sou estudioso das lutas dos negros e nem sou negro. Falo apenas como cidadão, pobre, sociólogo. Com efeito, hoje existem movimentos sociais organizados, articulados com o poder - inclusive com as entranhas do poder. Existem ações de inclusão diversas. Que isso significa diante do tamanho do crime hediondo cometido durante séculos contra os excluídos – aqui se inclui outros estratos sociais alem dos negros? Que isso significa diante da enormidade e variedade demográfica e de demandas decorrentes da modernidade e da democracia – Estado de Direito – para efeitos de cidadania? Que isso significa então, diante da grandeza e da nobreza dos sonhos e lutas de homens como ele?
Abdias foi um grande. Um visionário. Uma das principais qualidades de um revolucionário. Conviveu com os grandes homens do mundo de seu tempo e foi por eles tratado como igual – Camus, O’Neill, entre outros. Tinha a nobreza própria dos homens que estão à frente de seu tempo e comprometidos com causas maiores do que o poder e o lucro. Essa nobreza é que confere a dignidade e a aura superior aos humildes - como ele era - incompreensível para os medíocres! Abdias, entre outras coisas criou o TEN (Teatro do Experimental Negro) em 1944. O TEN promovia cursos de alfabetização e de cultura geral, promovia o saber em um tempo de racismo e exclusão abertas – hoje, em tempos de democracia e ideologia politicamente correta, tudo é mais sutil, porem não menos perverso. A inclusão se dá pela cooptação seletiva e/ou assistencialista clientelista – no varejo – e a exclusão por meio do encarceramento e extermínio – no atacado.
Pior ainda é a alienação pelo apartamento do caráter ideológico intrínseco a política no debate sobre as questões relativas à inclusão. Segue-se pelo caminho da America, diga-se de passagem, da época da Guerra Fria e do Macarthismo – isso basta para efeitos acerca do caráter ideológico desse viés político. Engano? Pode ser. Por outro lado, penso que sem a transformação ideológica que determina as estruturas de poder no interior do campo político, por meio das ações de base na sociedade, nada mudará no que diz respeito às praticas que permeiam as relações entre Estado e Sociedade, Publico e Privado. Os excluídos continuarão no alpendre da Casa Grande e entrarão pela “entrada de serviço” ou pela porta dos fundos, com a benevolência do senhor, enquanto comemora a ilusão de haver conquistado aquilo que a burguesia se apossou e, esta desdenha por conceder o que não lhe pertence! Como é possível aceitar de alguém aquilo que não lhe pertence sem admiti-la e assim lhe outorgar a posse? Os que são incorporados a universidade hoje serão os “prestadores de serviço” dóceis e agradecidos da Casa Grande de amanhã, um mal necessário que a elite branca tolera para a manutenção dos privilégios do mercado determinado por ela. Ontem foram as mulheres.
As “causas” resultam da identificação dos estratos populares e médios com as elites – seus valores, ideologia, hábitos, praticas, padrões. Resultam do cinismo triunfalista e fatalista que sentencia o fim das ideologias – nesse sentido substitui-se ideologia por demandas. Resulta da mudança de paradigma da política e do Estado. Resulta da falaciosa autonomia da sociedade civil organizada – ideia burguesa. As “causas” dos excluídos não se inserem em um amplo debate ideológico ou nacional, funcionam mais como compensação e/ou resposta as demandas de grupos organizados de pressão ou setores sociais, no sentido de elevar a autoestima dos mesmos, construir e fortalecer identidades coletivas, “bem estar social.” A ausência de políticas efetivas e transformações profundas ou rupturas, oferecem-se cargos, cotas, compensações pecuniárias, mártires e/ou datas comemorativas. Afinal, comemora-se o quê? A ascensão a classe C? Não creio que aqueles que tombaram tivessem se batido para que seus descendentes celebrassem o acesso ao consumo como compensação a desigualdade política e cidadania. Tampouco celebrar concessões ou barganhas, que minimizam as contradições, reduzem os conflitos sem potencial emancipatório, conforme se almejava a despeito da imensa maioria de excluídos.
Abdias escreveu sob influência de Camus – de quem foi amigo – “O negro revoltado”, obra que pautou o 1º Congresso do Negro Brasileiro em 1950. Seu texto foi rejeitado por todas as editoras por décadas – qualquer semelhança com o “padrão global.” Junto com o poeta negro e ativista cubano Solano Trindade debateram as questões relativas ao papel do negro na sociedade e foram apoiados e reconhecidos por Darcy Ribeiro, Sergio Milliet, Carlos Drummond, Florestan Fernandes, entre outros. O TEN foi, no seu tempo, atacado pela elite ilustrada branca da época. O Globo em editorial chegou a afirmar que o TEN era uma tentativa de “resgatar o espírito de Palmares!” Mal sabiam que não se tratava de uma revolta, antes uma revolução! Foi ainda o primeiro movimento a denunciar a alienação da antropologia e da sociologia nacional, retratando o negro, de forma caricata ou histórica acrítica, como se tratasse de elemento estático na sociedade – qualquer semelhança com a tradição americana não é mera coincidência! Qualquer semelhança com o tratamento dispensado aos negros pela Rede Globo de Televisão hoje também não é mera coincidência!
Os anais do Primeiro Congresso não deixam duvidas quanto os seus objetivos e teses: "O I Congresso Negro pretende dar uma ênfase toda especial aos problemas práticos e atuais da vida da nossa gente de cor. Sempre que se estudou o negro foi com o propósito evidente ou a intenção mal disfarçada de considerá-lo um ser distante, quase morto, ou já mesmo empalhado como peça de museu. Por isso mesmo o Congresso dará uma importância secundária, por exemplo, às questões etnológicas, e menos palpitantes, interessando menos saber qual seja o índice cefálico do negro, ou se Zumbi suicidou-se realmente ou não, do que indagar quais os meios de que poderemos lançar mão para organizar associações e instituições que possam oferecer oportunidades para a gente de cor se elevar na sociedade.” Pode-se perceber o seu caráter dinâmico, crítico, emancipatório e revolucionário. Trata-se não só de buscar amenizar a situação do negro ou inseri-lo na sociedade branca, elitista e racista, mas, de transformar essa sociedade, buscando por meio de estratégias coletivas reordenar as relações sociais e de poder - “organizar associações e instituições” (...). Desnecessário chamar a atenção para o caráter ideológico dessa proposta. Construir estratégias para formar “intelectuais orgânicos” não se confunde com “elites intelectuais negras”, conforme reivindicam alguns deslumbrados com o mundinho branco pequeno burguês oferecido pela Rede Globo. Hoje muitos ainda preferem as questões “palpitantes” – confesso que adorei essa expressão!!!
Em entrevista recente, Abdias lembra que “no final dos anos de 70” durante o “movimento pela anistia ampla e irrestrita”, lideranças “esquerdistas” não “reconheciam a prisão dos negros por discriminação racial como uma forma de perseguição política.” Finaliza destacando que isso “continua acontecendo hoje.” Acrescento apenas que as lideranças esquerdistas daquela época são as que ocupam os gabinetes do poder hoje. Os que eram os jovens universitários da classe media dos rebeldes anos 60 e 70 proclamam-se os redentores da política! Os “bons burgueses” defensores dos excluídos e da classe operária! Acredite, quem quiser. Continuando, afirma que “para as forças de esquerda, presos políticos seriam apenas os filhos de classe média e alta, quase todos brancos, que roubavam bancos, jogavam bombas ou sequestravam embaixadores. Esses, em muitos casos, efetivamente haviam cometido atos de violência, enquanto não raro negros são presos e torturados sem terem cometido crime algum.” Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não é mera coincidência!
Finalizo com as suas próprias palavras, alertando os jovens negros para “estudar, aprender, conhecer e se preparar para, então, se engajar: agir, criar, interagir e participar da construção das coisas.” Nisso consiste a alma do revolucionário, aquilo que o anima, posto que não se deslumbre ou seduz com o efêmero poder, nem com barganhas, tampouco com os belos discursos altruístas da burguesia. A transformação só virá se vier de baixo para cima, e ela tem pouco ou nada a ver com “maiores oportunidades” – sejam quais forem! - em um sistema falido, injusto e excludente por natureza.
Coincidentemente hj presenciei uma cena de racismo e preconceito contra um amigo negro.
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