Quando trabalhava no Sistema Carcerário paulista conheci situações hediondas. Testemunhei privações, negações, violações de direitos e violências sem fim, praticadas por servidores e entre os detidos. Nos estabelecimentos prisionais paulistas operam duas facções criminosas – o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Revolucionário Brasileiro do Crime (CRBC). Ambas atuam fora e dentro dos presídios, dividindo e lutando por espaço. Compõem o ambiente além dos custodiados – ligados a facções ou não – a administração publica e setores da sociedade. A administração divide-se entre equipe técnica – psicólogos, educadores, serviço social, médicos e advogados – e a equipe de segurança e disciplina – ASP e AEVP. Transitam nesse ambiente ainda famílias, advogados particulares, policiais, fornecedores diversos. Que fique claro, divisão e luta nesse contexto não é figura de linguagem! Caracteriza-se como um espaço de convivência forçada ausente de solidariedade e compaixão, em que predominam a desconfiança e a hostilidade. É a guerra de todos contra todos. A lealdade determinada por interesse ou corporativismo se impõe à solidariedade. A ausência de companheirismo compensa-se pela cumplicidade.
A dinâmica da realidade cotidiana dos espaços sociais nunca obedece ou se submete aos rigores científicos, institucionais ou jurídicos. O que estabelece e articula as relações, confere significado e sentido as ideias, legitima as praticas, valores e discursos não está escrito em obra alguma, em código algum, nem sequer é falado. É necessário estar lá dentro e conviver para saber. Certo dia encontrei com um jovem no ponto de ônibus do CDP. Cerca de 20 anos, alvará na mão, esperava o transporte para ir para casa. Me reconheceu e começamos a conversar. Passou seis meses lá. Tempo suficiente pra se institucionalizar – mantinha a cabeça baixa, as mãos para trás e o “senhor” no inicio e final de cada frase. Foi preso com um amigo de moto – moto roubada. Sem antecedentes, estudante, afirmou que trabalhava no lava-rápido de um posto – estava de carona. No lugar errado, na hora errada, com a pessoa errada. A cadeia esta cheia de gente assim. Gaiato inconsequente ou deslumbrado com o mundo do crime. Nada sabia sobre as facções no CDP. Caiu no "raio" errado. Aprendeu da pior maneira. Foi "sumariado" e não sabia o que falar. Apenas por dizer que morava em determinada comunidade, que pertencia à zona de influencia da facção rival apanhou durante dias seguidos. Contou-me que um preso cujo nome não me lembro – bandido cruel e famoso -, subia na "burra" e pulava com o cotovelo no pescoço e nas costas dele. Algumas costelas fraturadas, dentes quebrados. Ficou dias sem dormir direito e se alimentar devido aos ferimentos no pescoço. Dormiu no "boi". Na verdade, cochilava e acordava o tempo todo em pânico. O sujeito aplicava-lhe estrangulamentos e ele desmaiava ou perdia os sentidos. Era acordado com água e tapas na cara. Esse tempo só tomou banho gelado e dormia sem colchão. Tudo que lhe era levado nas visitas era tomado. Era intimidado para não falar nada e nem reclamar. Na contagem apenas se identificava – agente algum entra na cela. Tenho certeza que existem criminosos e bandidos e sei a diferença entre eles, não porque li ou me contaram. Eu estava lá. Eu vi. Sei da importância da separação que se impõem entre uns e outros. Sei da responsabilidade do Estado e não me omito em relação a minha como sociólogo, cidadão e educador. Sei que uns não “contaminam” os outros, eles “aniquilam” mesmo – pra continuar com as metáforas biomédicas. Quem pensa deveria conhecer, sob pena de desencantar a teoria, tão perfeita e coerente quando paira sobre a realidade. A realidade estraga tudo. Porem ela se impõem e, conforme dizia Darcy, “um saber que não atua é um saber vadio, diletante e ornamental!”
Sempre comparo essas experiências às teorias, estudos e pesquisas acadêmicas que tenho acesso – por causa do meu trabalho ou formação. Comparo-as também as leis, políticas e propostas das instituições publicas e policiais. Aos discursos, debates, palestras proferidas nos seminários e congressos ou entrevistas na mídia. Quase sempre oscilo entre a indignação e o riso, diante de tantas bobagens, cinismo e arrogância que percebo nisso tudo. São tantas incoerências, contradições, preconceitos, tolices e desonestidades que dá até vergonha, raiva ou pena! É tão grande a distância disso tudo da realidade das ruas e das prisões! Ela só não deve ser maior que o desperdício de recursos investidos e o alheamento natural de quem fala ou estuda aquilo que não vive ou viveu. Isso eu sei por que vivi. Não é ensinado em livros, jornais ou nas cátedras. Isso é o que os bons moços (as) e intelectuais dos “centros ou núcleos de estudos” espalhados pelas grandes universidades e que movimentam elevados recursos também não veem, não conhecem, não se interessam, sequer imaginam, embora falem com a autoridade e arrogância emprestadas pela universidade e esta ou aquela teoria – sempre infalível! -, a despeito da “fatal realidade.” Há pouco vi um especialista criado nos bancos escolares da USP - graduado e doutor em Direito -, pouco mais de 30 anos, falando sobre violência e Direitos Humanos. Nenhuma novidade – Rawls, Bobbio, Dahl, Comparato, Dallari, Foucault, Kant, entre tratados e convenções internacionais que o Brasil é signatário e que são solenemente ignorados cotidianamente! “A Constituição assegura (...).” “O Ministério Público (...).” “As Ouvidorias (...).” “As Comissões de Direitos Humanos (...).” Enfim, saí de alma lavada. O mundo é bem mais brilhante do que imaginava. Conheci uma realidade que não conhecia. Evidente que estive - durante anos - nos lugares errados até o momento – presídios, comunidades, delegacias. Entre tantos lugares no Brasil, eu fui parar justamente naqueles que o Ministério Público e as Comissões não frequentam! Sem dizer que a superficialidade do debate compensa-se pela empolgação de quem fala sobre aquilo que vive ou é comprometido. Impressionante como esses indivíduos cooperam para criar uma "aura de encantamento" por meio de frases de efeito, enfeites de retórica e números; raramente igualada em volume à realidade.
Para quem falam essas pessoas? Para si mesmo ou seus pares. Sobre o que falam essas pessoas? Sobre autores nacionais ou estrangeiros, suas pesquisas ou teorias. Os verbos conjugam-se apenas na primeira pessoa. Quando se trata de ciência falam sobre “objetos”, quando é política são quase sempre “números.” “Coisas” dignas de tornarem-se “conhecimento” ou “informação.” Convenhamos, uma honra para quem vive ignorado! Devido à curiosidade intelectual, pretensão científica ou exigências formais para justificar investimentos é que determinados grupos sociais recebem a atenção da academia – como se esses grupos fossem carentes da atenção da pequena burguesia ou das elites ilustradas. Não passam de objeto de estudo como outro qualquer. De acordo com os pressupostos científicos, jurídicos e de classe, tais grupos e/ou indivíduos são identificados e classificados, elevados a ordem social. Incluídos como objetos de estudos, extratos vulneráveis, populações marginalizadas, conforme as exigências impostas pela cartilha politicamente correta ou pelo rigor formal denominam-se “sub-culturas”, “excluídos”, desfavorecidos, marginais – para a polícia vagabundos! - ou simplesmente “gente diferenciada.” Nenhuma novidade, são os bárbaros, selvagens, bandidos, subversivos, sub-raças ou subespécies de ontem, com uma roupagem adequada aos novos tempos – como pensavam os Sepúlvedas e Rosenberg’s de outrora. Desisti de continuar frequentando esses meios, para mim não é possível auferir lucros ou prestigio em cima dessa realidade aviltante. Sou cético quanto à capacidade e o interesse da academia ou da ciência em oferecer alguma contribuição para mudar isso. Talvez estude, mas, não vou colaborar com a indústria da morte, de lado nenhum, legal ou ilegal, ambos são corruptos e imorais. Tudo ciência ou negócios, nada pessoal, portanto, mas para mim é.
É, parece q a décima primeira tese de Marx foi pelo ralo mesmo...
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