sábado, 21 de julho de 2012

Ciência e Poder

O Secretário era também professor de Ciência Política. Consta que para escrever a sua dissertação de mestrado entrou como investigador para a Policia Civil de São Paulo. Esse trabalho virou um livro prefaciado por um delegado. Quando foi meu professor de Ciência Política I lançou seu segundo livro. O primeiro é ousado, revelador - menos para quem convive com as forças policiais. Antes de estudar e estagiar com elas, conforme tenha nascido e crescido em Pirituba já as conhecia - menos do que gostaria. O segundo livro, como sociólogo e pesquisador, me parece uma colagem bastante rasa de histórias e teorias sobre o crime organizado e as suas relações com a política e o Estado. Sem novidades. Nessa época ele já estava ligado ao Ministério Público, ILANUD, NEV/USP e era assessor parlamentar de um  deputado federal. Quando este elegeu-se prefeito nomeou-o Secretário para Assuntos de Segurança. No ano anterior eu era estagiário de sociologia em um departamento de pesquisas demográficas, socioeconômicas e georreferenciamento. O objetivo era subsidiar o poder público de informações acerca da realidade do município, construir indicadores, estatísticas, etc. Entre tanta informação, nada havia sobre segurança. Assim, comecei a levantá-las por conta própria, estreitando as relações com as instituições policiais da cidade. Desse modo amadureci meu projeto para o Trabalho de Conclusão de Curso e com esses dados abri as portas para um cargo técnico na recém criada Secretaria para Assuntos de Segurança.
Nessa época vivia de ilusões. A ilusão do homem público contra os interesses privados, corporativos e/ou eleitoreiros; a ilusão do pesquisador contra os interesses acadêmicos - a ciência a serviço da sociedade -; a ilusão da ruptura e/ou transformação contra o paternalismo e o status quo; a ilusão da ética contra o patrimonialismo; a ilusão da ideologia contra o fisiologismo e o cinismo travestido de pragmatismo. Punk, revoltado, anárquico, ousado, petulante, sarcástico. Demais para os padrões e os cerimoniais acadêmicos e políticos. Revestido - ou deslumbrado? - pela autoridade conferida pelo cargo, o ex-professor e agora Secretario não abria mão da liturgia e regozijava-se com a continência estúpida prestada pela tropa - GCM. A despeito do desprezo acadêmico pelo senso comum, sem dúvidas que o "poder" revela as pessoas!
 
Havia um Assessor I dele que era  ex-segurança e motorista do ex-deputado e atual prefeito. Soube que havia sido premiado com esse cargo para sê-lo agora do Secretário. Uma espécie de motorista/segurança de luxo - com salário e status de Assessor. Além de não possuir instrução alguma, era um zeloso ignorante - mal educado, mal encarado, mal humorado. Era indisfarçável a sua satisfação em saber que estava mais próximo do Secretário naquele momento do que eu e que, embora eu estivesse me graduando, pelo seu cargo, na hierarquia estava acima de mim e sua remuneração era quatro vezes superior a minha. Além disso, demonstrava gosto por ostentar diariamente a sua arma de fogo - sempre puxava as calças ao sentar-se, de modo a deixá-la à mostra junto ao tornozelo (Freud explica...). Suas qualidades eram a subserviência e a intimidação. Compatível, no entanto, com um Secretário vaidoso e arrogante e uma Secretaria desprovida de ousadia e projetos sociais - apenas o "mais do mesmo" (guardas, viaturas, bases, armas). Bom começo para um Secretário, digamos, intelectual - cientista político.
Na faculdade eu ainda era anarquista. No segundo ano da faculdade fiz um jornal alternativo ao do Centro Acadêmico, portanto, livre das amarras e pautas do movimento estudantil, de caráter insuportavelmente - para eles, evidente! - libertário, científico e cultural. Simples assim, discorde ou oponha-se as ideias ou práticas do movimento estudantil e logo será denominado vendido, pequeno-burguês, ingênuo, oportunista e direita. Para piorar, não pedi a "licença" a eles pra fazer isso e em seguida fui um dos organizadores da Empresa Jr., que, paradoxalmente, muitos depois foram lá sem constrangimentos trabalhar para aprender a fazer pesquisa - a época a faculdade não tinha iniciação científica ou departamento de pesquisa. Conforme tenha sido punk e cotidianamente convivia com os meandros do poder em Guarulhos e as suas comunidades periféricas e, ainda tivesse que passar  - sem receios e com satisfação - ao menos duas vezes por dia pela favela do Piqueri, ao lado de casa, essas tolices e mesquinharias pouco me incomodavam. Diferentemente de muitos do movimento estudantil, eu precisava trabalhar para estudar, eu andava de trem, metro e ônibus diariamente, eu não tinha celular, sou filho de Funileiro e dona de casa - ambos com fundamental incompleto - e, morava desde que nasci em Pirituba. Diferentemente deles, tinha sido ainda ligado a gang's e possuía passagens pelo S.O.S. Criança bem como por delegacias da região. Assisti a diversas prisões e assassinatos amigos e conhecidos envolvidos com o crime - coisas que os idiotinhas burguesinhos "revolucionários" apenas conheciam pelos livros, jornais e TV. Ainda assim me deixei deslumbrar e iludir pela academia e poder publico. De um lado, cinismo e oportunismo, de outro ingenuidade e pedantismo - qualquer semelhança com o movimento estudantil de hoje e os poderosos do dia não é mera coincidência. Faz dez anos que isso tudo passou. Fim da ilusão.  

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