segunda-feira, 30 de julho de 2012

Crackolândias

Estive só uma vez na Crackolândia. Não fiquei nem dois minutos - o tempo suficiente de pegar a droga. Centenas de pessoas abandonadas, desconfiadas e alucinadas resmungando e andando de um lado para o outro. Nunca gostei de multidões. Parei lá por acaso, em uma madrugada. Esperava a estação da Luz reabrir sentado em uma das portas em frente ao parque quando fui abordado por dois usuários - entre ser assaltado e pagar drogas para eles preferi a segunda opção.  Fazia alguns meses que não usava, mas, naquele local, naquela situação e embriagado acabei usando. Na tentativa de esconder dinheiro deles acabei perdendo os únicos 50 reais que me restavam daquela noite. Descobri isso após fumar o meu mesclado, quando pensei em pegar mais uma pedra. A lógica é sempre a mesma: uma ou vinte dá no mesmo. Mais uma recaída. Andei feito um zumbi pelas ruas que havia passado tentando encontrá-lo sem sucesso - o que só aumentou minha raiva e frustração. O mal em si de fumar não era suficiente, precisava ainda conhecer perambular pelo inferno e perder dinheiro.

Por outro lado, conheci outras crackolândias por aí. Estive em uma em Sorocaba, outra em São Vicente, em Santos, no Rio de Janeiro.  A de Sampa é a mais antiga e sem dúvidas a maior, mas, em Santos têm várias e uma das que conheci - a do Morro do José Menino - não deve nada a paulistana. Embora seja menor, o movimento  e o volume de tráfico são imensos e, o numero de traficantes e biqueiras, bem como a organização e estrutura também chamam a atenção. Em algumas horas percebe-se a rotatividade de traficantes - talvez devido o volume imenso do movimento. Todas as biqueiras são atendidas por no mínimo três ou quatro sujeitos - as vezes mais -, precedidos por outros dois em um local de visibilidade estratégica - os campanas -, portando rádios e armas - pistolas ou fuzis. Vi até um G3 uma vez. Situada no pé do morro - as biqueiras, que são quatro ou cinco, ficam no morro -, constitui uma comunidade de homens, mulheres, adolescentes abandonados que compartilham o vício, as privações, o abandono, o medo, o desprezo, a tristeza e o torpor - na medida em que chamamos um coletivo de drogadictos de comunidade. De fato, pela estrutura do local, percebe-se que a imensa maioria das pessoas não são frequentadoras, elas sobrevivem lá. Pode-se ver, entre a mata e árvores, não muito longe das casas do morro, coladas umas as outras, diversas e precárias barracas - de lona, papelão, plástico, panos, nylon - e barracos - de madeira e restos de entulhos - usados como "mocós" para consumo, dormitório, esconderijo. Alguns com cobertores, colchões ou sofás velhos e sujos - o lixo e o cheiro de fezes e urina ao redor compõe o ambiente. Conheci uma garota - ou o que sobrou dela - que sobrevivia lá e fazia programas nesses locais com usuários e transeuntes do entorno - dez o oral e vinte a penetração, ambos negociáveis, dependendo da fissura ou do cliente. Disse-me que pagava cinco reais para tomar banho - quando não era possível tomá-lo na praia. Era mais nova do que eu, mas aparentava ser bem mais velha - pela pele, cabelos, corpo, dentes. Esquálida, sem cor, suja, maltrapilha e com uma prótese mal feita no dente da frente que insistia em cair o tempo todo, deixando-a constrangida, na medida em que ainda restava-lhe alguma vaidade. Disse-me ser de Belo Horizonte e que veio para cá fazendo programas com caminhoneiros. Saiu de casa logo que seu filho nasceu, há seis anos, posto que já fosse dependente química. Conforme não pudesse criá-lo e seus pais não a aceitassem, decidiu sair de casa e veio parar aqui. Nunca mais voltou e nem viu o filho. Nesse dia paguei umas cinco pedras pra ela no decorrer do tarde. No decorrer dessas horas vi jovens, adolescentes, crianças, adultos, idosos. Por incrível que pareça, a maioria eram moças. Magras, sujas, estropiadas. O movimento de usuários e pessoas de rua era muito grande e constante. O povo de rua costumava ficar no entorno da biqueira e dos mocós tentando conseguir algumas lascas de pedra ou alguns trocados, abordando conhecidos e desconhecidos, algumas vezes de forma mais intimidatória. Discutiam entre si, ofendiam-se, ameaçavam-se e tentavam se impor uns aos outros - talvez para intimidar os observadores. É um cenário dantesco, deprimente, aviltante, revoltante. Enoja ver isto e pensar nos incontáveis especialistas - políticos ou acadêmicos - com suas estratégias mirabolantes para vencer, enfrentar, acabar com o crack! Afinal, como diz a propaganda: Crack, é possível vencer! Seria risível, se não fosse repugnante e deprimente! Isso tudo ainda à poucos metros de uma escola infantil, da orla da praia, condomínios, casas simples e humildes do morro. Em local de razoável movimento de pessoas e veículos. Havia um rapaz, cerca de 17 anos, descalço, sem camisa e com um bermudão caindo. Sujo, descabelado, desdentado, mas, altivo. Parecia ser "respeitado" ou "considerado" naquele ambiente - se é que podemos falar assim. Veio falar comigo, logo percebi que estava sutilmente me oferecendo "segurança" em troca de droga. Todas as vezes que eu subia para pegar ele me acompanhava em troca de uma pedra. Falava para os demais que eu era seu "parceiro." Tinha uma grande ferida exposta na perna e outra nas costas, algumas cicratizes pelo corpo. Parecia sinal de tortura ou de algum acidente - queimadura. Para eles eu era um playboy - apenas porque não frequentava lá e ostentava boa aparência para os padrões deles. Não podiam imaginar que conhecia mais biqueiras, comunidades e traficantes do que eles e que, provavelmente, fosse usuário há mais tempo que alguns. Não importa, estava lá só pra fumar um pouco, fumei e fui embora - esgotado, triste, enojado, revoltado.

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