domingo, 11 de novembro de 2012

Biqueiras - I

São Paulo: 1988 a 2010.
Pirituba, Favela do Piqueri: Edson é o traficante mais antigo vivo da região. Traficou nesta comunidade de 1988 - ou antes - até 2001. Pode-se argumentar que a comunidade reduzida - menos de 200 famílias - o tenha ajudado a controla-la e manipula-la facilmente, sem duvidas, entretanto, como consumidor e depois amigo, percebi que se tratava, sobretudo, de uma relação de cumplicidade, confiança e respeito mútuos. Nunca matou, não agredia nem intimidava. Nunca o vi armado, embora soubesse, muitas vezes, que estivesse. Era muito respeitado e sabia fazer amigos e negócios. Se pode-se dizer isso, era um bandido correto. Ninguem reclamava dele - moradores, usuários, concorrentes. Fui a casa dele diversas vezes e ele a minha duas - em dois churrascos. Sabia entrar e sair. Ninguem dava nada pra ele ou desconfiava. O ano de 2004 inteiro eu frequentei a sua biqueira. Na verdade, era o bar do Alberto. Todos os dias, após as 18 hs ele dava expediente lá. Quando eu chegava sentava-me à sua mesa e compartilhávamos a cerveja - cada um pagava a sua. Era sempre eu e mais um ou outro que ele convidava ou permitia sentar-se a sua mesa. Não me sinto privilegiado nem envergonhado por isso. Conhecemo-nos muito antes disso e sempre respeitei a todos na comunidade e fui também respeitado. Todos sabiam o que ele fazia lá, mas, nunca faltou com o respeito com ninguem e fazia tudo na maior discrição. Se alguém começasse a se comportar de forma inconveniente no ambiente, logo de forma discreta ele o convidava a retirar-se e nunca mais voltar. Se voltasse era bastante constrangido para desculpar-se. O sr. Alberto não permitia drogas no bar e nem o seu uso - mas eu usava e quase ninguem percebia. Sentava-me sempre do lado de fora, o que facilitava o porte. Quando o bar fechava ele ia para a sua outra biqueira, a loja de conveniência do posto 24 hs na marginal Tiête e eu o acompanhava. Uma vez estávamos lá a mesma mesa, nós a esposa dele e mais um rapaz. Duas blazers - acho que Tático Móvel - chegam. Madrugada, entre duas e três da manhã. Conforme estivéssemos juntos desde as 18 ou 19hs, bebendo e cheirando, pode-se imaginar como estávamos,  entretanto, na rua prevalece a atitude - a policia enquadra pela "atitude suspeita." Desse modo, continuamos como sempre estivemos, sentados, conversando, bebendo, sem chamar a atenção de forma alguma - seja na linguagem, na postura, atitudes. Entraram na loja de conveniência, no banheiro, abordaram e revistaram alguns rapazes e nem se aproximaram da nossa mesa, apenas olharam. Nunca deixei de olhar para eles sem demonstrar coisa alguma. Nunca deixei flagrante na rua - a não ser no bar do baixinho na favela do Piqueri, porque ele não admitia que se entrasse lá com droga alguma. Estava com o meu no bolso e ele com o dele sei lá onde, nunca perguntei e nem me interessa. Só sei que nunca fui abordado com ele, embora sempre estivéssemos juntos e com drogas. Foi preso apenas uma vez, nunca foi baleado e tem quase 50 anos.
No bar do baixinho eu pegava com o ele, depois com o Tio e o Fabio. Nunca entrei com droga lá, embora sempre parasse para pegar drogas e beber. Pegava minha droga, deixava próxima do muro da ferrovia e quando queria usar saía, pegava, usava no banheiro do bar, tornava a sair e escondê-la.  Quando eles estavam no bar era sempre uma situação à parte. Quase sempre começavam tomando cerveja e acabava em churrasco. O bar, a sinuca, o churrasco, o pessoal e as drogas faziam a movimentação e a alegria de todos - comunidade, comércio, trafico, usuários, etc. Marketing social? Responsabilidade social? Controle social? Não sei. Conceitos do repertório dos especialistas. Só sei que nunca vi confusão alguma, armas ou ouvi queixas. Nunca senti medo, receio ou raiva lá. Sequer fui alguma vez abordado pela polícia. Nunca vi uso de drogas também em público, próximo de idosos, crianças ou mulheres. Atitude.
Frequentei muito a biqueira do Luiz Favela e do Maurinho também. O Favela era amigo de longa data, então frequentava a casa dele tanto para comprar quanto para uso. Um rapaz divertido, chapava fácil bebendo e era mais novo do que eu uns cinco anos. Um cara do bem, digno, sujeito homem. Sua primeira prisão - Carandiru - foi porque assumiu o porte de drogas de um rapaz que apanhava feio da polícia com drogas que pertenciam a ele - o rapaz ia morrer de apanhar mas não ia entrega-lo. Ele tinha a parte frontal da cabeça achatada devido um tiro - foi baleado 4 vezes. Íamos em algumas baladas e bares juntos. Quando fomos pegos e eu assinei um 16, saíamos da casa dele. Estávamos com o Fabio, o Rafael e o finado Mikinha. Fomos em duas viaturas para o 87º DP e eu assinei um 16. Por isso fiquei dois anos comparecendo ao Fórum da Lapa. Sempre que ia a casa dele podia pegar e usar ali mesmo. Muitas vezes conversando e usando nem pagava nada. Várias vezes me entregavam a arma pra enrolar um baseado, esticar uma carreira, atender o telefone ou colocar uma musica. Tinha crédito e também podia pegar o quanto quisesse para pagar quando pudesse. Deixei de ir lá quando me mudei e depois que o filho dele nasceu - não aceito uso perto de crianças. Soube que foi preso em 2009 e como esta na sua segunda cadeia por tráfico, creio que passará mais uns dias guardado. Seu filho esta com a irmã dele e, o Maurinho, quando o vi em 2010 estava cuidando de tudo.
As outras biqueiras que conheci - Mangue na Brasilândia, a da Passarela, favela do Spama, a do Retão com o Pi e a do Cingapura em  Pirituba - eu frequentava muito raramente. O Pi era uma figuraça e um cara muito firmeza - conversava sempre e nunca me deixou na mão, mesmo devendo e sem dinheiro. Fumávamos em uma mata perto da linha do trem - ele dizia que ali era a sua chácara. Nas outras os traficantes estavam sempre armados, desconfiados, em choque, aterrorizando e, por isso, sempre se mudando - ora presos, mortos, expulsos. É um ditado certo: muito bandidão, sem humildade sobe logo. Essas lições eu não aprendi na faculdade, nem com teorias e "especialistas".

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