domingo, 18 de novembro de 2012

Biqueiras III - uma outra realidade.


Crueldade, tristeza, respeito, solidariedade. Frustra a realidade. Odiosa e detestável realidade. Frustra as infalíveis teorias. Lança a desordem, o medo, a insensatez sobre as suas vítimas - cúmplices ou inocentes. Pairam a nuvem e a tempestade. Os raios anunciam-na acompanhados pelo medo e apreensão. O ar muda com o vento das 18hs. As vozes silenciam. O frio. A chuva. O cheiro de terra molhada. O estampido. A pólvora. Sem palavras, sem ódio. A sua boca se mexia, mas, a tensão impedia os ouvidos de escutarem. Não eram lamentações. Aqui pouco importam palavras. Hora de morrer não é hora de falar. Roubou, mentiu, enganou, ameaçou, tramou. Tão rápida quanto a sua existência foi o fim. Não sei o que se deu depois. Mais um sem choro, vela, caixão e sepultura.
Consta que fosse menor. Tramava contra o seu próprio patrão. Roubava, ameaçava, mentia. Como a chuva, às vezes causam algum estrago, algum temor e passam rápido. Como a chuva vem e vão. De tanto desejar matar foi morto. Particularmente não sinto nada. Outrora sentia mais raiva do que compaixão. Olhava-me com desdém, típico dos estúpidos deslumbrados, diferentemente do seu patrão que demonstrava grande humildade, respeito e consideração. Como ele, eu sobrevivi há muitos. Estava sempre a falar como iria assassinar a ex-namorada que o havia deixado por outro. Como mataria os dois. Ora sentia pena, ora raiva. Sempre o ignorava. Bastava olhar para o seu patrão e ele mandava-o sair. Ele entendia meu olhar de reprovação. Entravamos, fumávamos e conversávamos. Falávamos sobre nossos filhos e família. As vezes cheirávamos. Sempre controlava o tempo e as palavras. Deve-se saber entrar, sair, falar, olhar e ouvir. Nunca se pode pensar que se está seguro ou que se tem o controle absoluto. Isso não significa impaciência e apreensão. Bastam bom senso e intuição. Respeito, humildade, atitude.
Quando se esteve próximo da morte. Quando a crueldade torna-se cotidiana. Morre-se um pouco também com os mortos. Ele havia sido roubado pelo jovem e pela ex-mulher. Abriu as portas de casa para ambos. Resgatou-os da rua, acolheu-os, pagou suas dividas, salvou a vida de ambos. Recebeu em troca a traição e o escárnio. Me contou isso tudo envergonhado e transtornado. Havia passado dez anos preso. Estava livre há quatro meses e estava reconstruindo a vida. Tinha planos de ir embora dali e mudar de vida. Queria criar  a filha. Sem querer havia me tornado seu confidente. Outros me diziam que ele falava de mim com respeito e admiração - "cara firmeza." Não sei por que - meu dinheiro é idêntico ao de todos. Nunca passei mais de uma hora com ele, embora fosse a sua casa quase todos os dias. Nunca vi um outro seu cliente em sua casa. Minha regra era ir apenas uma vez ao dia. Basta arriscar-se uma vez. Tentei convencê-lo, sutilmente, a não fazer isso. Apresentei meu ponto de vista com respeito e clareza, após ser requisitado a fazê-lo. Ouviu-me com atenção, mas, já estava decidido. Entendo que naquela situação, se fizesse o que havia lhe dito, talvez perdesse não só o respeito, mas a vida. Entre um jovem estúpido e a filha não há duvida. Mais um ceifado pela cobiça e vaidade inerentes ao crime. No fundo, matou-se. Roubou em um jogo cujas regras são implacáveis e, embora não sejam formais, não são por isso menos claras. Mais um para a cifra negra dos "especialistas". Mais uma vitima do descontrole publico, da omissão e negligência. Mais uma vítima do desprezo e preconceito social. Esse não era negro. O homem, a sociedade e as suas relações são mais complexas do que supõe a moral, a ciência e o direito.
Quando ia a sua casa nunca pegava menos de dez. Muitas vezes mais - 15, 20. Passei duas semanas pegando no crédito. Confiava tanto que nunca anotou nada e acabou deixando passar uns 200 reais - no mínimo. Não sei se sabia ou não - creio que sim, embora como eu, talvez não tivesse certeza e em nome das boas relações comerciais e do respeito nunca disse nada nem me cobrou. Quando fui pagar-lhe deixei 850 reais em suas mãos - antes havia dado 250. Estavam presentes dois dos seus sócios que eu já havia percebido que desconfiavam de mim. Pensavam que fosse pilantra, safado. Insinuavam que ele fosse ingênuo ou otário. Certo dia estávamos sós. Sempre que eu ia lá ele estava armado. Usava uma 7.65 com silenciador ou um 38 cano longo. Nesse dia havia um clima tenso, sinistro no ar. Quase não falava ou me olhava. A arma em cima da mesa, apenas fumávamos. Entendi que estava sob pressão e não sabia como ou se me falava e cobrava. Ofereceu-me limonada - ele não bebia. Perguntei-lhe se já havia matado alguém. Disse que sim. Perguntou se eu ainda queria uma arma. Disse que talvez. Eu estava enjoado, depressivo e indiferente. Perguntei-lhe se podia pegar a arma. Disse que estava carregada. Peguei e coloquei-a embaixo do queixo - pelo peso percebi que estava carregada. Ele me olhou. Perguntou se eu estava louco. Disse que não. Disse que não sabia se queria a arma. Disse que não sabia se tinha coragem de matar, mas que não tinha nenhum medo de morrer. Sorriu e disse que estava engatilhada. Sorri de volta e devolvi-a a mesa. Sorrisos nervosos quebram o gelo. Disse a ele que sabia da sua situação e que não precisava se arriscar ou prejudicar por isso. Sua sócia chega. Disse-me na frente dela que eu podia ir lá quando quisesse e pegar o quanto precisasse; confiava em mim. Essa era a "letra" certa: confiança. A palavra é a lei. Foram dados os recados - o meu e o dele. No dia que paguei-o todos viram. Me abraçou com força. Olhou pro dinheiro, pra mim e pros outros. Chamou-me de irmão e disse que podia contar com ele em qualquer lugar ou situação. Dei-lhe uma camisa de presente. Agradeceu-me com espanto. Deu-me sete porções de graça. Deu-me seu numero particular. Disse-me que nunca tinha conhecido um usuário assim. Lamentava a minha partida, mas, que torcia pra que tudo desse certo na minha vida e para que pudéssemos nos encontrar em outra situação. Chamou sua filha na casa da avó. Despediram-se de mim. Lembrei da minha filha e do que um homem pode fazer pelos filhos. Temo menos a vida e a morte por isso. 
Liguei para ele duas semanas depois. Espantou-se com a minha ligação. Disse que combinará com o rapaz que morava na pensão para virem passar um final de semana na praia. Se vierem, espero poder abrir-lhes a mente e quem sabe os caminhos por aqui para que mudem de vida. A vida deve ser mais do que morte, medo, loucura, abandono, miséria, violência e só podemos contar uns com os outros. A vida é e independe dos controles e/ou descontroles estatais, das convenções jurídicas e rigores legais, dos valores morais e das verdades dos dogmas, das abstrações e padrões científicos, dos entes e instituições diversas. Antes disso tudo existem as razões do espírito e as da natureza que nos fazem simplesmente homens e, ao final e ao principio isso é tudo que nos resta e que compartilhamos. Somos responsáveis uns pelos outros e sempre lamentarei pelas escolhas que outros fizeram e pelas que eu fiz ou deixei de fazer - as vezes a falta de escolha é a unica. Sei apenas que não posso ser indiferente como homem. Que as boas intenções não bastam. Que as teorias e a política não bastam. Que o povo já não se encaixa nos modelos tradicionais. Que a sociedade é alheia e infinitamente distante dessa brutal realidade. Que os que querem ou tem a pretensão de salvar o mundo o fazem em nome da soberba, utopias ingênuas ou cinismo acomodado – ou o mundo ou nada! Que eu não sou bom e nem mau, como todos inclusive eles e, que embora não seja especialista ou estudioso  sobre esse "objeto", sei das minhas obrigações como homem, sociólogo e cidadão. O mais são distinções artificiais ou excêntricas de quem se omite ou não se envolve por conveniência ou covardia. Itu/SP - 2012.


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