O sangue é meu. É o sangue que abre as portas desse lugar, da vida e da morte. A vida é minha. Assumo-a e as minhas decisões, convicções e as consequências. Chego aos 37,5 anos sem nenhuma razão - a única razão é o amor. Nada mais. Penso que o longo e penoso processo de insanidade iniciou-se aos 35. Pouco antes delas se irem já havia eu partido. Importa quem foi-se primeiro? Importa precisão a vida? Navegar é preciso, viver não é preciso. Estava doente da cabeça, do coração, do espírito. A doença do mundo que é assassina. O mal silencioso que espreita. Aquele que acomete o homem todo - seu corpo, mente e alma. Todos estão doentes. Uns mais, outros menos. Alguns tem consciência, outros ignoram. É o processo até a cova. Conheci-os todos.
Há os enfermos resignados, os crédulos, os cínicos, os céticos. Uns ignoram, outros conformam-se, outros rejeitam e outros simplesmente não creem. Há os histriônicos que riem - deploráveis. Do que riem? Ignoram o quão inútil é o dinheiro, o poder, o status, o prestigio, diante do amor, da ausência e do fim. Há os que choram e se desesperam e aqueles que soluçam e lamentam. Por fim existem os que lutam e os que abraçam a morte encarando-a. A loucura é um excesso. Covardia, coragem, fúria e piedade. Me compadeço de todos menos de mim. Alguns estão iludidos, outros deslumbrados. Há ainda os entorpecidos, os pragmáticos e os otimistas. Muitos não mereciam passar por essa moléstia, outros devem sofrer as suas consequências no leito de morte, sob o seu escárnio e desprezo magnânimos. Ela ri enquanto os olhos esvaziam. Eu tenho ela por cúmplice. Sofro todos os dias. Ela rouba a minha coragem e eu já não me enfrento, fujo de mim mesmo. Ela me inspira o fim e eu aceito-a como uma compreensiva companheira. Destila-o todos os dias um pouco em mim. Sorvo o seu cálice diariamente e desejo que esse dia seja o ultimo - menos porque suponho que encontrarei a paz, mas, porque já não vejo sentido em nada e coisa alguma que o valha, sobretudo, em mim mesmo. Nada alem de pó. Alguma coisa digna de ser esquecida. Um sopro. Estou há tempos no cemitério dos vivos. Um amontoado de ossos sobre a terra que questiona a a vida e a existência. A sociedade e a natureza. A terra e o universo. O tempo, os sentidos e os sentimentos. O ser e o nada. Nada alem do ter ao ser. Preso à consciência e as condições. Limitado pelo espaço, pelo tempo, pela moral, pela natureza, pela razão, pela força e pelo medo.
No dia em que elas se foram perdi o medo. Com elas se foram alem do medo a razão. A minha especie de doença é aquela que Freud explica e terapeuta algum cura. Pode-se prolongar a vida ao preço de agrava-la e destruir o ser que ainda exista. Ela esteve o tempo todo estampada na minha face. Ela paralisou-a. Após a partida delas a morte chegou e ficou. Ela sabe que logo estaremos juntos. Assim comporto-me com gravidade e sobriedade junto dela. As vezes nos insultamos, noutras ignoramo-nos e cansamo-nos um do outro. Despi-me da armadura de caráter. Ela tornou-se minha amiga e confidente - apenas não admito que ela e nem ninguém fale do meu anjo. Um dia após o sangue ser desperdiçado - que vida não é? - ela enfureceu-se. Veio na madrugada finalizar. Me assustou e se divertiu. Maldita! Porem não mais me assusta - talvez nem queira. Talvez até goste de mim. Talvez seja só presunção, ignorância, preconceito dessa especie insignificante. Parte dos valores de uma cultura decadente e amoral.
O sangue é meu e apenas isso me pertence. Que mais querem aqueles que me tiraram tudo e nada oferecem? Que me importa o juízo abstrato ou o juízo final? Egoísta? Covarde? Meu passado me absolve. Não sou o homem do subsolo. Lágrimas? Sempre correrão e as minhas não secam. Eu sequei, meus olhos não. É preciso tomar a felicidade com a infelicidade... . Nada mais há a temer. O mal supremo também encontra o seu fim. Posso descansar? A moléstia destruiu meu juízo, minha família, meu ser. Neguei, esquivei-me, enfrentei, tombei. Caí e me levantei. Busquei forças, apoio, meios. Ouvi homens de bem, de fé, de ciência. Questionei e fui questionado. Questionei-me. A razão é a doença da consciência. É o pecado mortal. Julguei e fui julgado. Condenei-me e condeno-me. A minha punição é a vida e a absolvição a morte. Só se vive uma vez, perde-se apenas a própria vida. Tudo passa e tudo acaba e, talvez seja melhor consumir-se de uma vez. Estou exausto.
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