sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

PENSÃO



A pensão era simples, rústica, precária. Um casarão antigo de aproximadamente um século. Ficava no centro de Itu, rodeado de história e igrejas católicas centenárias. Aproximadamente uma dúzia de quartos e apenas dois banheiros precários. Cerca de vinte homens moravam no local. Igualmente rústica era a proprietária. Mulher astuta, de muitas palavras e pouco assunto. Bom dia era excesso de cortesia e educação. Observava tudo, falava de todos e nada permitia. Aos hospedes apenas uma geladeira velha, uma televisão e um chuveiro. Cartazes do tipo “Gervásio o cordial” completavam o quadro de boas vindas e conforto do estabelecimento.   Eis o lugar que por absoluta necessidade, proximidade e falta de opção estive por três meses na cidade de Itu trabalhando para o Senai.
Convivi nesse período com alguns dos homens mais dignos que conheci.  Ex-moradores de rua, ex-alcoolatras, ex-drogadictos, ex-presidiários, ex-pais, ex-maridos, ex-filhos. Explorados, excluídos, estropiados, desprezados, revoltados, abandonados, injustiçados, perdidos. Migrantes, errantes, resistentes, resilientes. Os homens mais fortes que conheci, mais honrados, solidários, verdadeiros e altivos. “Quem nunca esteve em uma cela fria não conhece o calor da liberdade”, dizia o filho de um professor, preso oito anos por homicídio. Sessenta e um anos, uma espécie de Harvey Keitel mais rústico. Homem de poucas palavras, olhar duro, severo, desconfiado, porém, humilde, deferente. Embora fosse sofrido, não revelava ódio ou sofrimento no olhar. Discreto, relacionava-se pouco com os demais, porem, compartilhava tudo. Bebia apenas vinho e nessas ocasiões não dispensava a minha companhia. Olhava-me com respeito e uma reservada admiração, tanto quanto eu ele. Ouvia mais que falava e sempre com atenção. Sabia que era um homem perigoso, mas, não era cínico e covarde, como muitos "doutos" e respeitáveis que conheci.

O outro havia cumprido doze anos em regime fechado. Foi preso após roubar um carro. Baleado três vezes no assalto, quase perdeu a vida. Paulistano do Capão, 41 anos e pai de um casal de filhos. Livre há dois anos viveu por nove meses nas ruas de Itu e estava há seis na pensão. Educado, gentil, humilde, embora pouco instruído, era culto, articulado e discreto. Vestia-se sempre de modo impecável e era muito mais vaidoso e cuidadoso do que eu. Conforme fosse paulistano e tivéssemos quase a mesma idade, conversávamos bastante – sobre os filhos e esposas. Compartilhávamos o gosto musical, além das lembranças da capital, as tristezas, solidão, frustrações e decepções diversas. Pouco tempo depois eram também os vícios. Ele me contava sobre a vida de preso e eu sobre o trabalho de educador em cadeias. Ele me falava sobre a adolescência e parte da juventude no Capão e eu sobre Pirituba, baixada santista e RJ. Quase nunca falava sobre sociologia ou ciência, apenas quando era questionado. Aprendi mais com ele do que ele comigo. Nunca havia entrado na internet, mas conhecia boa musica e bons filmes. Apresentei a ele o mais que pude e ele a cidade e os seus caminhos e descaminhos. Apaixonou-se por Morphine e Cartola.

Meu vizinho de quarto era de Campinas, morava havia cinco anos em Itu. Sobrevivia trabalhando em obras, como quase todos os outros. Era borracheiro, separado, um filho em MG. Deixou sua cidade após sair da cadeia e ter um irmão morto. Isso tudo levou sua família ao fim. Sujeito humilde e divertido. Sofria a sua solidão sem se queixar e disfarçava-a por detrás da fala dócil, do sorriso fácil e do álcool. Bebia todos os dias e com frequência usava drogas. Estava quase sempre acompanhado por um pernambucano que morava desde 2001 na cidade. Veio do Recife após a morte da mãe e envolver-se em uma briga sendo duas vezes baleado. Duas figuras sofridas, abandonadas, ignoradas, mas, que com malícia e altivez sublimavam isso tudo a despeito da magoa, do açoite e desprezos da vida e da sociedade. Eu não entendia e só podia admirar tamanha desenvoltura e nobreza de espírito. Como minha alma era insignificante, grotesca diante da vida. Como eu era presunçoso e estúpido diante de tanta sabedoria no que diz respeito a viver. Aquilo que nos importa a todos e nos iguala e que tampouco sabemos e tão poucos nos ensinam.

Aos domingos quando a senhoria não cozinhava, ele assumia a cozinha e todos compartilhavam como uma família a refeição. Todos colaboravam – com alimentos ou trabalho. Eu colaborei apenas duas vezes. A depressão era pior aos domingos. Nunca me levantava antes das 14hs. e as vezes somente após insistência dos companheiros. Diversas vezes fizeram churrasco aos quais faziam questão da minha presença sem nunca haver colaborado com nada.

No dia fatídico bebi, conversei, desabafei, refleti. Entrei no quarto embriagado e entorpecido. Destruí um aparelho de barbear com um cortador de unhas – essa imperícia e o excesso de álcool foram fundamentais para o meu fracasso. Pensei um pouco, vi algumas fotos, chorei, solucei, revoltei-me e serenei. Estava decidido. Alguma dor, algum sangue, alguma tristeza, alguma ausência, nenhuma novidade sobre a Terra. Apenas mais uma vida que se apaga nas sombras da noite. “Uma simples sombra que passa; uma historia contada por um idiota, cheia de ruído e furor e que nada significa.” Caí sobre a cama sentido aquele liquido quente e espesso saindo com pressa. Senti paz e alivio. Assim adormeci sobre o braço estancando-o e isso fez com que coagulasse a ferida. Acordei com dor e muita sede. Um amigo estava a minha porta. Abri-a atordoado. Chamava-me e já havia ligado diversas vezes. Não consegui esconder o sangue pelo chão, colchão, roupas, tênis, escrivaninha. Ficou atônito e assustado. Abraçou-me e saímos. Chorou, falou-me sobre as tristezas e angustias, sobre a fome, o frio e o medo das ruas. Sobre a solidão e os filhos. Sobre aquilo que somos e devemos ser para além de nós. Além do que queremos ou podemos. Falou com nobreza e sensibilidade da maneira mais singela e verdadeira sobre amor, coragem e sublimação. Um homem que passou doze anos trancafiados em uma cela. Um homem que havia me conhecido há pouco mais de sessenta dias. Depois passou o dia todo comigo, zelando por mim. Exigiu que ligasse pra minha mãe, minha ex, minha filha. Levou-me pro seu quarto e me protegeu de expor-me aos outros. Assistiu comigo Era uma vez no oeste, Savior, Falcão negro em perigo, 21 gramas, São Paulo S.A. e Wyatt Earp, tudo para me impedir de ficar só e me vigiar. Quando adormeci ele deitou-se e dormiu no chão. No dia que parti me abraçou com lágrimas nos olhos feito um irmão. Nunca conheci pessoa tão digna e jamais poderia imaginar encontrá-la num local como aquele. Passei quatro anos na universidade e mais dois na pós e tenho absoluta certeza que nenhum dos meus colegas de faculdade fariam o que ele fez por mim naquele dia. Não se envolveriam, pelo contrario, por dever de oficio e consciência analisariam e julgariam os fatos. A pusilanimidade serve a reputação. É tudo o que são e têm e ninguém pode oferecer aquilo que não possui. Tenho consciência que jamais poderei pagar, por isso espero apenas poder retribuir e devo estar à altura disso.  



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