Estas linhas pretendem esboçar algumas
ideias a respeito do frágil processo de democratização no Brasil. Do ponto de
vista formal, ao referir-se a legislação brasileira, em especial ao ECA e aos
PNDHs, são inegáveis os avanços brasileiros nessa matéria – a nossa legislação
de trânsito e o código de defesa do consumidor também são dos mais
sofisticados -, contudo, as contradições, resistências e conflitos no âmbito do
Estado e da sociedade são constantes e prementes. Nas cátedras, gabinetes,
parlamentos, movimentos sociais e na imprensa o discurso recorrente sustenta
que “é uma legislação digna das sociedades europeias desenvolvidas”; paradoxalmente, “a sociedade brasileira não esta preparada para este tipo de legislação.” Duas
constatações: a primeira subestima a sociedade e deposita o fracasso da lei
“perfeita e infalível” nas suas costas e a segunda supõem que ela deve ser
preparada para entendê-la e a ela submeter-se. Esse tipo de discurso,
aparentemente inofensivo, ao sustentar que a sociedade é incompatível com a
lei, pondera que a “sociedade suíça, por exemplo, não precisa de uma legislação
assim tão sofisticada porque lá a realidade é outra.” Nesta lógica, esta
sociedade pode dispensar os rigores jurídicos para reconhecer e assegurar os
direitos das suas crianças, enquanto que “é a sociedade brasileira que deve subordinar-se à lei e não o contrário”.
Há, neste tipo de argumento, o apelo a um
suposto caráter “reformador” e/ou “redentor” da lei. Uma pretensão a submissão
da sociedade a ela, a despeito da sua complexidade e heterogeneidade – o que
sobraria ao indivíduo? –, estabelecendo a prerrogativa do seu caráter
universal, imparcial e impessoal. A primazia incondicional e irrestrita da lei
sobre a sociedade e o indivíduo estabelece de forma arbitrária a ordem legal
como equivalente a justiça. No entanto, ela é abstrata, uma representação da
realidade enquanto que a sociedade é concreta. Por sua vez, como
representação se realiza apenas no espaço jurídico, quando deixa de se
concretizar no campo social. O furor jurídico/legalista pretende que o dogma da
“universalidade” formal da lei ou do direito corresponda a uma “universalidade”
da justiça ou de valores democráticos. A ideologia – relação ideal que se
sobrepõem a realidade – transformada em praticas reproduz as relações sociais
vigentes.
Durkehim quando utiliza as regras do direito
como indicador da presença de um ou outro tipo de solidariedade social, observa
que enquanto as regras e punições impostas pelos costumes são difusas, as pelo
direito são precisas e estáveis organizadas de duas maneiras: repressivas e
restitutivas. Deste modo, sustentado nos usos e costumes difusos, o direito
caracteriza-se como fator externo e objetivo que simboliza elementos de
controle e solidariedade sociais. Marx, por sua vez, demonstra que a
restauração do direito romano no Renascimento foi determinante, lançando as
bases das revoluções burguesas – “o modo de produção da vida material
condiciona os processos da vida política, social e intelectual em geral.” É o
direito o instrumento – sutil, porem não menos perverso - da classe dominante
que organiza a sociedade de acordo com os seus interesses e valores – visão de
mundo. Cristaliza a base subjetiva das elites dominantes cumprindo a sua missão
histórica e civilizadora de preservar a propriedade, o Estado, a ordem, o
status quo. A base material constitui a “estrutura” da sociedade
exercendo influencia direta na “superestrutura” – instituições jurídicas,
políticas, ideológicas.
Por outro lado,
a atitude verificada de apreço exagerado às formalidades legais, ignorando a
sociedade sob a qual se assenta e dirige-se é um traço do fascismo – Estado
autoritário. Nos Estados autoritários prevalece o império das leis – legalismo.
Ao contrário do que se supõem, os Estados nazi-fascistas eram absolutamente
legais – as "leis de Nuremberg" garantiam o status legal e a ordem. O legalismo, por sua vez, é uma herança da tradição
jurídica positivista. A histórica tradição bacharelista brasileira,
embora tenha traços peculiares ibéricos – elites oligárquicas, patriarcalismo,
patrimonialismo -, têm raízes profundamente Positivistas. No contexto do
Império e a seguir da Republica, a manutenção do poder pelas oligarquias locais
assegurava-se pelo privilegio ao acesso ao poder político e o seu exercício por
meio da formação em Direito, carreiras incorporadas pelo Estado – nos setores
da administração publica, magistratura, segurança, judiciário e legislativo. O
caráter conservador postula a adesão a princípios e valores atemporais –
distintos, porem, muitas vezes e deliberadamente confundidos com universais -
que devem ser preservados a despeito de todas as mudanças sociais e
políticas e, estas, submetem-se
as determinações infalíveis e naturais de uma lenta e gradual
evolução histórica.
No atual contexto democrático, há uma
tendência ao modelo americano, caracterizado por uma sociedade
altamente litigiosa, centrada em elementos corporativistas – associações -
como contrapeso ao poder do Estado. A hegemonia das democracias liberais no
contexto da Globalização estabelece uma maior complexidade das relações sociais
e pulverização dos interlocutores na esfera publica e política. O incremento do
capital no modo de produção privilegiou a sua expansão, concentração e
acumulação, rompendo com os paradigmas keynesianos. A opção pela via jurídica – “estatutária” – revela
esse traço conciliatório e avesso as transformações e rupturas que caracterizam
o nosso processo histórico. Assim, caracterizou-se pela ausência de
movimentos sociais e populares organizados, excluídos e dependentes a margem e
ao redor de elites oligárquicas protagonistas do poder – econômico e político -
e pela manutenção de relações sociais essencialmente assimétricas.Variamos
desde o paternalismo autocrático do Império até a Republica oligárquica,
passando pelo Populismo autoritário até o Autoritarismo tecnocrático. Neste
processo, temos uma organização social “patriarcal” caracterizada pela
“dominação tradicional”, assentada no Estado “patrimonial” de acentuada
tendência a “militarizar” cada vez mais as suas formas de dominação.
A recente democratização brasileira (88)
concedeu e restituiu direitos e, esta aquisição acumulativa gerou novas
identidades, interesses, demandas, atores e discursos no âmbito da sociedade e
Estado. É indiscutível que nesse processo o judiciário saiu fortalecido, resultado
da reivindicação do Estado de direito como postulado da democracia. Percebe-se
nesse processo, a institucionalização dos conflitos e as relações sociais
moldarem-se pela progressiva atividade reguladora do Estado. Assim, vamos ter o
que Habermas vai chamar de “colonização interna da vida social pelo Estado”,
concorrendo para uma maior burocratização do aparelho do Estado,
instrumentalização, hierarquização e controle das relações sociais. Deste modo,
qualquer tentativa de solucionar conflitos, mediar interesses e intervir na
sociedade, passa necessariamente pelo judiciário, porque o direito político
encontra-se nos limites do Estado, o civil é assegurado por ele e os sociais
são adquiridos através dele. Verifica-se aí, uma tendência a “contratualização”
das relações sociais mediadas pelo Estado, gerando novas formas de controle e
manipulação, restringindo muitas vezes o exercício e a aplicação pratica de
alguns direitos. Desenvolvemos uma espécie de “democratismo” de Estado,
assentado em uma “solidariedade institucional” - “instrumental” ou mecânica -,
que pouco ou nada tem haver com uma efetiva subjetivação de valores
democráticos e de cidadania na sociedade. Por outro lado, considerando-se o
nosso processo histórico – e porque não dizer o latino americano? -que
experimentou mais períodos autoritários do que democráticos, a despeito da
desmoralização da ideia de direitos em amplos setores da sociedade, resultado
da enorme distancia entre a realidade discursiva e sua efetiva aplicação
prática, a constante afirmação, expansão e reflexão dos direitos das pessoas,
no âmbito do Estado e, sobretudo, da sociedade é que poderão reverter esse
processo. Pretender transformar a sociedade apenas por
meio de mais ou novas leis e doutrinas jurídicas, ignorando ou negligenciando
as determinações sócio-históricas, pouco difere do crente que o pretende com os
seus dogmas ou crenças. Deste modo, não será o direito ou a lei que colocarão
em xeque as estruturas da ordem social estabelecida. Porque a consolidação da
democracia resulta menos de um sofisticado código jurídico do que da efetiva
participação popular na vida publica e política.
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