Algumas expressões tornaram-se corriqueiras de modo a subsidiar a base
subjetiva das democracias liberais. Dentre elas, a de que “existe liberdade de
pensamento e de imprensa porque vivemos numa democracia", "as
eleições periódicas e livres são a expressão da democracia." De fato, do
ponto de vista objetivo democracia é isso tudo e mais independência de poderes,
liberdade de reunião e religiosa, liberdades individuais, judiciário livre,
pluralidade de partidos, entre outras. Denotam, de fato, um caráter definitivo
e unidimensional, dissimulando a realidade e as suas contradições. O pensamento
unidimensional estabelece a democracia formal como a única, verdadeira e real.
De acordo com Marcuse, "elementos mágicos, autoritários e rituais invadem
a palavra e a linguagem." Foucault, Clastres, Ranciére, Deleuze,
entre outros também demonstram o poder do discurso – sua fabricação,
manipulação e acesso ou interdição - nas sociedades modernas – das autoritárias
as democráticas. São as sociedades de massas, segundo os Frankfurtianos e
as do espetáculo, conforme Debord. Atores e entes políticos de todas as
tendências e filiações, da esquerda à direita, compartilham o mesmo ideal: a
defesa da democracia formal ou nominal. A sua defesa, em toda a sua plenitude
retórica e ideológica, assenta-se em um princípio fundamental: o de não
transformar as relações sociais, senão minimizar e amenizar as contradições,
pulverizar e diluir os conflitos - Zizek. A linguagem tornou-se serva da
manipulação nessa sociedade e dos rituais de linguagem.
Há todo um repertório de mecanismos - palavras e imagens - destinados a
transformar a democracia formal no espetáculo da história finalmente completada
– eis o fim da história! A sua manipulação mobiliza diversas instituições,
recursos e meios – a cátedra, o palanque, o palco, a mídia, o púlpito, a rede,
a tribuna e o tribunal, entre outros. Todavia, o vigor teórico e retórico se
mostra-se necessário não é suficiente para escamotear a essência da democracia
real – popular, participativa, direta, justa, fraterna e igualitária.
Em 1989, ou seja, um ano após a Carta Democrática, o sociólogo Herbert
de Sousa, de forma aparentemente contraditória manifesta-se a favor da
concessão de asilo político ao ex-ditador deposto do Paraguai Alfredo
Stroessner. Em artigo na revista Veja (1989), justifica-se optando pela
democracia e consagrando-a afirma: “Não só não faz sentido como também não é ético
escolher as pessoas que devem ser aquinhoadas com esse direito – ao asilo. O
democrata convicto, o batalhador pelos direitos humanos, e o ativista
político de esquerda, que foi perseguido e torturado, todos têm
direito ao asilo. O ex-ditador do Paraguai, general Alfredo Stroessner,
também.” Exemplo máximo de rigor ético e coerência democráticas acima de tudo e
qualquer suspeita!
Paradoxalmente,
os mártires da democracia de ontem revelam-se os seus depreciadores hoje.
Trata-se de uma visão peculiar de democracia que consiste em uma espécie de
intolerância – aberta ou velada – expressa pela indolência ou conveniência e pela
ignorância ou estupidez que a deprecia e a corrói pelas bases no
dia-a-dia. Percebe-se
essa visão pitoresca de democracia que dissimula o desprezo ou a ignorância,
quando se recusa qualquer critica e auto-crítica, opta-se pela manutenção de
praticas e modelos anacrônicos e autoritários em nome de uma subespécie de
“pragmatismo” – grosseiro utilitarismo!
Para alguns “democratas” de hoje,
crítica é golpismo e democracia reduz-se a aplausos e confetes, privilegio e
direito reservado aos escolhidos. O mantra da cantilena grosseira de hoje
dirige-se aos críticos à esquerda e a direita – esta paradoxalmente e
convenientemente chamada de “base aliada”! Militantes históricos da esquerda e
das lutas populares insultados por cobrar coerência ideológica e questionar ou
criticar praticas políticas e alianças, por outro lado, inimigos da esquerda,
da democracia e do povo são alçados ao palanque, ao governo e promovidos a
“democratas” e/ou elevados ao status de “estadista” – alguns “honoráveis
bandidos” do Maranhão, Pará, Alagoas, São Paulo, entre outros. Nessa visão
tosca de democracia, clamam pelo fim do DEM e conclamam pela proibição a
patética – por si só – refundação da Arena. Pensei que na democracia se
privilegiasse a pluralidade de partidos e ideias, alternância de poder?
Evidente que não se trata de questão ideológica, afinal, esta foi superada pela
intelligentsia do establishment - veleidades que cabem no fundo da gaveta do
burocrata do dia. Nem de subestimar a estupidez e a prepotência/ignorância dos
jovens desse movimento, entretanto, também não subestimo o povo, que saberá
como tratar tal disparate. Ao contrário do “humilde” comissariado que
pretende tutelar o juízo alheio, embora negligencie sobre a educação, a cultura
e os “meios” – milhões de analfabetos, dezenas de milhões de analfabetos
funcionais, educação sucateada (escolas, servidores e universidades), índices
de qualidade do ensino vexatórios, recordes sucessivos de investimentos
astronômicos em propaganda nos “meios” e Vale-Cultura (como compensação?), a
despeito da depravada Lei Rouanet (que beneficia apenas os grandes artistas e
empresas), dos monopólios da comunicação e da cultura pautada pelo famigerado
mercado!
Pretende-se inscrever no imaginário
popular a farsa da democracia e da governabilidade. Explico-me: trata-se da
opção pela histórica política da conciliação, ao invés da transformação e
ruptura. Não se trata também de ser contra a democracia. Trata-se de ser contra
este modelo de democracia – representativa, de mercado, desenvolvimentista,
elitista. Existem diversas formas de democracia tanto quanto existem as de
estados e governo. Aqui desde a época do império a da “abertura lenta e
gradual” opta-se pela conciliação entre as velhas oligarquias e os novos atores
políticos. Os primeiros incorporando e domando o ímpeto dos segundos, “remendo
de pano novo em trapo velho” – Faoro. Eis a política “revolucionária” dos que
se pretendem a vanguarda da esquerda no continente!
A pretensa vanguarda da esquerda é
prolífica em eufemismos e substantivos. “Base aliada”, “estratégia política”,
“governabilidade”, meros enfeites de retórica que servem aos interesses do
fisiologismo, conluios e clientelismo, a serviço da acumulação e exploração e
aos desmandos e expansão do grande capital transnacional, dos intocáveis
“meios” e da política temerária nas questões internacionais – na posição
ambígua diante de Washington ao golpe no Paraguai, do apoio retraído a Hugo
Chávez a crise no Oriente Médio, passando pela permanente e vergonhosa
intervenção no Haiti ao apoio a déspotas assassinos e megalomaníacos na África.
Tudo aquilo que condenavam há pouco
mais de vinte anos. Aquilo que vi e ouvi nas campanhas majoritárias de Luiza
Erundina (88), Eduardo Suplicy (92), José Dirceu (94) e Marta Suplicy (98/00)
em São Paulo como militante – fazendo panfletagem e pixação. Dezoito anos
depois de dois governos democráticos consecutivos - porque o do condottiere do
Maranhão e nem o do sinhozinho das Alagoas devem contar (os novos “bons
companheiros da base).” Passados três PNDHs e dezesseis anos chegamos a
Comissão da Verdade em matéria de Direitos Humanos. Do ponto de vista prático,
espaço para “eminências pardas” intelectuais produzirem por meio de toneladas
de papéis e uma infinidade de relatórios restritos, parcerias com diversos
organismos nacionais e estrangeiros à custa do erário aquilo que o bom senso
sabe ou desconfia sobre as misérias praticadas a época do terror - DITADURA.
Do ponto de vista objetivo, nada alem de documentos que recomendam
exatamente aquilo que qualquer país civilizado e democrático cumpre, conforme a
justiça e os tratados de direito internacional impõem aos seus signatários –
caso brasileiro. Sem poder de investigação ou judicial, com três décadas de
atraso, que se pode esperar? Alguém acredita ainda que processaria ou puniria
octogenários ou moribundos? Risível! Claro, rever a historia, reconstruí-la,
reescrevê-la nas páginas oficiais, sem duvidas. Porem, quem decide quem
escreverá? Os de sempre – políticos, intelectuais, bacharéis, elites. O caráter
seletivo elitista dessas comissões remonta a época da Anistia e foi denunciado
por setores populares – Abdias Nascimento recorda-se em entrevista
recente (pouco antes de falecer), que “no final dos anos de 70” durante o
“movimento pela anistia ampla e irrestrita”, lideranças “esquerdistas” não
“reconheciam a prisão dos negros por discriminação racial como uma forma de
perseguição política.” Finaliza afirmando que “para as forças de esquerda,
presos políticos seriam apenas os filhos de classe média e alta, quase todos
brancos, que roubavam bancos, jogavam bombas ou sequestravam embaixadores.
Esses, em muitos casos, efetivamente haviam cometido atos de violência,
enquanto não raro negros são presos e torturados sem terem cometido crime
algum.” Qualquer semelhança com a situação dos encarcerados nas atuais
masmorras medievais - que ao menos o Ministro da Justiça teve a decência de
reconhecer - não deve ser mera coincidência! Sem julgamento são apenas 200 mil,
mas, infelizmente, seus nomes não devem constar das listas das comissões
publicas, muito menos daquelas da OAB, desconhecidos e ignorados. Curioso como
na sua imensa maioria coincidem de lado a lado os participantes dessas
comissões – brancos, intelectuais, empresários, profissionais liberais, políticos,
sindicalistas, servidores, aposentados (como o milionário empresário do ramo da
construção civil entrevistado essa semana, Sr. Boris Tabacoff). Poucos ou
nenhum analfabeto, peão de obra, lavrador, ambulante, desempregado, morador de
rua – justamente em um país que se caracteriza pela péssima distribuição de
renda, injustiça social e miséria! Não, não se trata de ser contra a Comissão,
trata-se de alcançar a justiça antes a quem ainda vive e necessita –
encarcerados, excluídos – e, buscar os anônimos antes dos privilegiados e
consagrados pela política e pela sociedade. Enfim, o velho grotesco
e hipócrita espetáculo de indulgencia publica para as elites e
classes medias sob a cumplicidade coletiva diante do extermínio e
encarceramentos cotidianos.
Paradoxalmente
as “lideranças esquerdistas” daquela época são as que ocupam os gabinetes do
poder hoje. Os que eram os jovens universitários de classe media dos rebeldes
anos 60 e 70 proclamam-se os redentores da política – donos do poder, do saber,
da verdade! Infalíveis, incorruptíveis, inexoráveis. Não há a possibilidade de
em matéria de política ou administração publica que outros estejam à altura –
qualquer partido ou individuo! Não aceitam criticas
tampouco comparações - apenas aplausos, ovações privilégios
homenagens e reconhecimentos. Implementaram politicas publicas de distribuição
de renda? São diferentes do PSDB? E isso não é o minimo que se pode esperar de
um partido a esquerda? A boa gestão publica pelo governo não
é também exigência constitucional?
Megalomania
que se verifica ainda na “originalidade” pela opção do modelo
“desenvolvimentista” – obras faraônicas da época áurea da Ditadura! Obras que
beneficiam os velhos novos parceiros do progresso e do poder – as mesmas
empreiteiras e bancos da época dos generais e que e contribuíam efetivamente
para a famigerada Oban. Passados quatro décadas, persistem os lobbys das
empreiteiras e os conluios com os poderosos do dia, os cartéis empresariais e a
acumulação/concentração de capital e poder ao lado da devastação da natureza e
exploração dos trabalhadores ao ponto da extinção de ambos.
Florestan, Darcy, Celso, Paulo, Abdias, Prestes, Betinho, Ianni. Não os
conheci nenhum – Ianni vi-o uma vez na universidade e em uma palestra na
biblioteca Monteiro Lobato em SP. Pertencem ao passado em que os intelectuais
eram engajados politicamente e comprometidos com as causas populares. Época em
que os políticos à esquerda frequentavam as ruas – e não apenas em campanha,
comícios ou eventos. Por isso prefiro a política da rua.
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