segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Suburbanos



Negão era o seu apelido e o que mais gostava. Desde criança somos amigos. Nunca brigamos. Brincamos, andamos de skate, furtamos, pixamos, trabalhamos, fomos punks, tocamos – na banda punk Dekadencia HC -, lutamos boxe e por fim usamos drogas diversas juntos. Ele é dois anos mais novo. Nunca tivemos diferenças. Faz 4 anos que não nos vemos e tenho grande consideração por ele. Encontrei-o no FB, fiz contato algumas vezes. É relapso nisso então não fiz mais. Deixei-o de lado, outros eu removi. Dispenso relações artificiais, inclusive no mundo virtual. Isso nada altera a nossa amizade concreta. A base é sólida.

Éramos os mais abusados. Pixando, furtando, lutando, tocando, brigando, consumindo. Nossa afinidade se encontrava nos excessos. Nada nos impedia ou constrangia.  Nada, porem, havia de gratuito ou dissimulado. Por detrás de cada ação uma convicção. Não há justificativa para a violência gratuita como não há para a exploração, a crueldade, o desprezo e a exclusão social. Existem explicações que ajudam a entendê-las e emoldurá-las, tornando-as mais aceitáveis ou suportáveis, sobretudo, para quem não as viveu ou precisa conviver com elas. Não era esse o nosso caso, por isso não há lugar para mea culpa quando se trata de sobreviver.

Os pequenos furtos eram nos supermercados – em uma época em que não havia câmeras, alarmes e ainda não éramos todos tratados como suspeitos. Chocolates, salgadinhos, doces. Quando pixavamos raramente atacávamos domicílios – quando isso acontecia era em condomínios e o pixo reservava-se a caixa d’água ou a cobertura. Mais resultado da ousadia que da consciência – respeito pelo morador. Porque pobre não mora em condomínio e dispensávamos a mesma solidariedade e consideração que a burguesia nos ofertava: nenhuma. Assim os alvos preferenciais eram condomínios de classe media e alta, edifícios empresariais e prédios comerciais. Pixavamos prédios e via publicas também, quase sempre em regiões nobres da cidade – Itaim, Cerqueira Cesar, Campos Elíseos, Jardins, Pompéia, Lapa, Pinheiros, Sumaré, Vila Olímpia, Santana.

Quando fomos pegos na Avenida 9 de Julho pela GCM em 1992 fomos bastante insultados e intimidados. Retruquei que pior que o vandalismo juvenil era a corrupção política e os desvios de recursos dos colarinhos brancos. Fui chamado de revoltado, rebelde sem causa e subversivo – isso no período democrático! Como sempre a democracia não sai da sala de aula dos quartéis, das paginas dos manuais, livros e códigos.

Pixamos também muitos muros pela via férrea – de Pirituba a Mauá. Sempre a pé e quase sempre pela madrugada. Uma época diferente – entre 1990 e 1992. Embora estivéssemos cometendo uma infração, apenas uma vez fui agredido – mais pela minha petulância que pelo prejuízo material. Apenas uma vez fomos abordados por homens armados que se identificaram como seguranças, tomaram nossas latas de spray e mandaram-nos embora – na Avenida Brigadeiro Luis Antonio com a Avenida Brasil (eu, meu irmão, Coruja e o Negão).   Nem um tapa, ameaças, gritos ou intimidação. Apenas alguns questionamentos. Receio que hoje não escaparíamos ilesos. Subimos a pé para a Avenida Paulista e pegamos o primeiro Mercado de Pirituba (917-H). No ponto final conversamos com o cobrador, o motorista e o fiscal e saímos sem pagar. Estava exausto pela caminhada e adormeci no tampo do motor próximo a porta traseira do carro. Andamos da Avenida dos Bandeirantes até a Paulista. Em Pirituba compramos pães, mortadela e um refrigerante para comemorar a aventura antes de irmos pra casa.

Na Avenida Santo Amaro o Negão entrou em um boteco para comprar uma lingüiça. Não sei se hoje teria essa coragem ou teríamos a sorte de sairmos ilesos de um estabelecimento daqueles. Lembro-me que era uma espelunca com os tipos mais mal encarados e desconfiados. Completava o abuso a ousadia e a cara de pau. Andávamos com as latas de spray na cintura ou na jaqueta.

Pixamos ainda a fábrica abandonada das Indústrias Matarazzo em frente ao Parque Antarctica. Aquelas ruínas deviam ter perto de cem anos naquela época – 91/92. Duas das três chaminés da fabrica. Em uma delas subimos por fora e na outra por dentro. Na primeira o Negão subiu na frente, na segunda fui eu.  Na primeira, ao chegar lá em cima, parte da borda cedeu e caiu quase levando ele e quem mais estivesse abaixo – eu e meu irmão. Cada uma deve ter cerca de 30 metros de altura. Devido à experiência com a primeira decidimos subir por dentro na segunda. Decidimos que nessa eu subiria a frente. Lá em cima era possível ver todo o campo do Palestra Itália. Cobertos de fuligem, eu meu irmão e o Negão. Pra pixar eram necessários dois – um pra segurar a lata e o outro pra usar o rolo. Fomos eu e o Negão. Conforme tivesse subido primeiro - com muito medo de descer - convenci-o com esse argumento estúpido a ir à frente. Depois que se começa a pixar e se concentra nisso se esquece de tudo – do perigo, do medo, da morte e da vida. Entreguei a minha vida a uma escada de ferro atravessando uma chaminé secular de tijolos, com muitos degraus frouxos e retorcidos do lado interno devido o calor. Arriscamo-nos ainda andando pelos trilhos e pulando diversos muros antigos. Depois nos arriscamos andando no interior de uma fabrica velha, escura e abandonada. A seguir entrando na caldeira e fornalha e depois subindo por dentro da chaminé e descendo por fora. Os degraus terminavam cerca de uns três metros antes do chão completando a descida por uma corda que levamos para isso. Lá de cima era possível ainda ver que éramos vistos por pessoas na Avenida e no Viaduto próximos. Transeuntes chamaram a policia que entrou no local quando saíamos. Não imaginaram que vínhamos pela ferrovia então não puderam nos pegar. Conforme a pixação tivesse sido feita com cal, arriscamo-nos pra exibir a nossa “marca” por uns poucos anos – antes de completar cinco anos já não era mais legível. Pouco tempo depois entraríamos pro movimento punk. Aos dezoito anos o Negão foi preso em Goiás no CEPAIGO uns meses antes do Leonardo Pareja ser assassinado. Foi pra lá fugindo de um acerto com um PM após ser pego traficando pra sobreviver. Quando voltou a SP em meados de 96 começava a nossa escalada no mundo das drogas. Hoje ele é pai, trabalhador e isso basta pra quem sobreviveu ao que vivemos – muitos ficaram pelo caminho do pixo, das gangs, das drogas e do crime. Pouco sei sobre ele agora, apenas que compartilhamos uma época em que havia cumplicidade, ousadia, suor e sangue nas relações sociais.  


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