Lima
Barreto morreu em 1922. Mesmo ano em que falecia na França Marcel Proust. Ano
em que os Tenentes se levantavam contra a Republica Velha, os Modernistas proclamavam
o nascimento da arte brasileira e o “partidão” era fundado por trabalhadores
egressos do anarco-sindicalismo em Niterói. Este foi também o ano do centenário
da independência brasileira. Celebrávamos o triunfo do Positivismo tardio,
inscrito em nossos símbolos pátrios. Ainda zelamos pela pátria e apelamos às
leis mais que pelo povo e a política. Idêntica a Republica de elites é a
democracia nominal brasileira do século XXI.
Lima
Barreto era quase um anônimo. Vivia de forma modesta, funcionário publico
subalterno – amanuense -, pretendente a escritor e jornalista – recusado nos
círculos intelectuais aristocráticos. Publicava algumas crônicas e contos em
jornais e revistas da época. Falamos de uma época em que cerca de 70% do pouco
mais de 30 milhões de habitantes eram analfabetos e, se considerarmos em
conjunto as condições culturais, políticas e econômicas da sociedade pode-se
vislumbrar o inevitável fracasso.
Do
ponto de vista da economia o país era agrário, produtor e exportador de
matérias primas e tanto a indústria quanto a urbanização eram bastante
incipientes e restritas. Na sociedade predominava a população semiservil,
analfabeta e rural. Diante desse contexto não espanta que poucos fossem os que
ousavam investir em iniciativas sem mercado – cultura. Consta que a tiragem
média de jornais no Rio de Janeiro – capital da Republica - da época – 3 mil
exemplares - fosse equivalente a que se verificava na Paris de fins do século
XVIII. As obras lançadas naquele período, por escritores consagrados como
Monteiro Lobato, tinham tiragens que não chegavam a uma dezena de milhares de
exemplares – “Urupês” chegou a 08 mil (a média era mil) enquanto no inicio do
século XIX “Aventuras de Robinson Crusoé” alcançava a 50 mil na França.[1] Alias,
não fosse por Monteiro Lobato, escritor e jornalista consagrado, notório
incentivador da literatura e de talentos, Lima Barreto sequer teria publicado
em vida.
Consta
que Lima Barreto era um homem de temperamento difícil, talvez devido a sua
notória genialidade e nenhum reconhecimento. Pobre e mulato, culto em uma
sociedade de fidalgos pedantes, bacharéis arrogantes, políticos e “barões”
soberbos e ignorantes. De tradição ibérica, as elites nacionais eram arcaicas,
incultas, medíocres, autoritárias e avessas a qualquer tendência progressista,
transformação ou ruptura, embora celebrassem a falta de originalidade como
demonstração de ousadia e refinamento – um século depois, mudaram apenas o
continente, ontem Paris, hoje Nova York.
Lima
Barreto era contemporâneo de Freud, Rilke, Fernando Pessoa, Lênin, Prestes,
Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa. Precedeu
os Modernistas e influenciou-os. Foi um homem de vanguarda, um revolucionário,
em todos os aspectos. Um revolucionário político do século XIX, artista e
intelectual do século XX. Viveu a época do abolicionismo, positivismo,
republicanismo e liberalismo tardios. Conheceu as ideias e as lutas socialistas
e libertárias e compartilhava dos seus ideais. Detestava a estética clássica, o
maneirismo parnasiano e a imprensa castiça da burguesia. Dedicou a sua pena a
exposição da realidade social brasileira, retratando a marginalidade e as
mazelas cotidianas, as contradições políticas, econômicas e
sociais. Opunha-se a retórica dominante, cujo objetivo era restringir o
acesso aos menos letrados, oferecendo uma versão palatável dos acontecimentos,
costumes e praticas estabelecidas, legitimando e suavizando a dominação, a opressão e a
exploração.
Com
uma linguagem coloquial, suas obras são impregnadas de realidade e preocupação
com os fatos históricos, os costumes e as injustiças sociais. Lima Barreto
torna-se um perspicaz cronista, expondo com ironia a hostilidade e a mediocridade
dos escritores e do público burguês. Acompanhava com interesse a literatura
francesa e era conhecedor da filosofia greco-romana clássica e dos
renascentistas – Dante, Petrarca. Flaubert, Shakespeare, Rabelais, La Boétie,
Montaigne, Renan, Balzac, Hugo, Goethe são apenas alguns citados direta ou
indiretamente nas suas obras. Lia em francês, inglês, espanhol. Homem de sua
época, no entanto, a sua admiração pela literatura estrangeira não
despertava-lhe sentimento de inferioridade. Valorizava a sua literatura e a de
outros brasileiros. Não era colonizado e nem provinciano como muitos dos seus
consagrados contemporâneos.
Foi
um crítico contumaz da Republica de elites, da sociedade aristocrática, das
oligarquias políticas e das elites ilustradas. Conheceu a miséria, a
exploração, o preconceito, a exclusão e a violência. Um desterrado em sua
própria terra. Sua vida e obra expressam a tragédia que caracteriza os períodos
turbulentos e as convulsões sociais. Em 40 anos de vida testemunhou a Abolição,
a Republica, as revoltas Federalista e da Armada, Chibata, Canudos, Vacina e as
mudanças arbitrárias, profiláticas e violentas promovidas pelos prefeitos
Pereira Passos e Sousa Aguiar no RJ – qualquer semelhança com a atualidade da
política carioca não deve ser mera coincidência! As greves operárias e a
revolta do Forte de Copacabana. A época da Primeira Guerra Mundial
revelou um pacifismo consciente e critico. Recebeu com entusiasmo a Revolução
de Outubro na Rússia. Como João do Rio, simpatizava com os ideais do socialismo.
Não há elementos suficientes para afirmar que, se tivesse vivido mais tempo, se
tornasse comunista, posto que jamais aderisse integralmente ao anarquismo, que era o que estava mais próximo de sua vida concreta. A relação do escritor com a
política era transitória - o que lhe interessava era a literatura. Era, antes
de tudo, porem, um progressista, um crítico social e contestador do status quo, da ordem estabelecida,
considerando-a essencialmente opressiva e manietada.
Ao
lado de João do Rio, suas crônicas retratavam o cotidiano, as belezas,
sutilezas, misérias e os hábitos, contradições e transformações políticas, culturais e
sociais do Rio de Janeiro capital da Republica velha. A grandeza de Lima
Barreto não se resume a sua capacidade de observação. A realidade que
transcende cada palavra e se impõe à técnica, resulta da experiência de quem
vive ou viveu aquilo que escreve - o cárcere, a internação, a violência, o
preconceito, as privações e as ruas. Monteiro Lobato esteve com ele duas vezes.
Em ambas estava embriagado. Na primeira, de tão bêbado e maltrapilho ele sequer
se identificou para não humilhá-lo. Na outra, por ocasião de uma palestra que
iria proferir, foi encontrado por Lobato caído embriagado na sarjeta. Entre
1914 e 1919 vê-se em situação de alcoolismo crônico, sendo internado no
Hospício Nacional, resultando dessa experiência a obra “Cemitério dos Vivos” –
sensível e rigoroso relato da desumanidade dos sanatórios, considerado o
primeiro manifesto antimanicomial. Quando morreu seu funeral foi concorrido,
não pelos intelectuais e as elites ilustradas, mas pelos pobres e anônimos
suburbanos sobre quem escrevia e compartilhava a vida, as angústias e lutas.
Seu corpo ficou na redação de A Pátria, exposto à visitação pública e o
sepultamento foi acompanhado em cortejo por milhares de pessoas. Apenas os
grandes recebem as honras do povo.
- Vae. É lá que elle sempre disse que desejava ser enterrado.
Estavamos na casa de Lima Barreto, na estação da Piedade. Gente boa da visinhança cercava o esquife do romancista. Á porta, um grupo curioso de crianças olhava com attenção os que entravam, medindo todas as coisas com interesse e admiração.
A terde cinzenta e chuvosa tinha uma expressão vaga de humildade infinita, como se sobre ella pairasse invisivel e terna, a alma humilde de Lima Barreto...
Poucas flores. Grupos silenciosos e meditativos enchiam a pequenina sala, onde dormia, em seu leito final, o romancista bohemio dos nossos suburbios. Figuras do povo, dessas que a gente encontra a cada instante pelas ruas, anonymas em sua modestia trabalhadora e honrada, fitavam enternecidas o corpo inanimado de Lima Barreto, como que se despedindo de um companheiro querido, de um amigo, de um irmão...
Depois, o caixão se fechava sobre a physionomia impassivel do morto. As janellas visinhas se enchiam de rostos curiosos, e o enterro saia. Breve, o rodar do trem, rumo á Central. Mais alguns instantes, e o cortejo pequenito e pobre demandava o aristocratico recolhimento de S. João Baptista.
E foi assim que, na tarde de hontem, desceu ao tumulo o corpo de Lima Barreto. (...)"
O Imparcial, 3 de novembro de 1922.
[1] ORTIZ,
Renato, Sociedade e Cultura in: Brasil, um século de transformações. Cia das
Letras, SP: 2006.
http://www1.uol.com.br/rionosjornais/rj29.htm
http://www1.uol.com.br/rionosjornais/rj29.htm
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